Por Alexandre Gusmão – Sábado, 20 de abril de 2024
“disparo contra o sol/ sou forte, sou por acaso/ minha metralhadora cheia de mágoas/ eu sou um cara” – os versos de O tempo não para são de Cazuza, compositor carioca. E o tempo, cronos, o dono do relógio e senhor da razão, que é cíclico e a ninguém pertence, vive também parado, por isso juntou, uniu em coro, o nosso roqueiro brazuca dos anos oitenta, com Justiniano, o nosso personagem aqui, um lavrador do sertão baiano de Ipirá que viveu por volta dos anos vinte do século passado.
“…extremamente nervoso, ossudo e muito alto” – assim é descrita a figura dentro das crônicas de O Mundo da Minha Infância(1969), do crítico literário ipiraense Eugênio Gomes. Conta o escritor que Justiniano, indignado pela escassez impiedosa das chuvas e já descrente de qualquer providência divina, um pobre coitado que deveria estar ocupado com estrovengas e arados, perdeu a cabeça, armou sua espingarda dita pica-pau e, tal como o poeta, eivado de mágoas, deu um pipôco no sol. Um tiro no sol. Justiniano, como Cazuza, também era um cara. E ganhou a fama. Não por acaso, como o poeta, ele também foi chamado de louco. Cruzasse uma rua depois desse fato, todo menino fazia arrelia e toda beata logo se benzia.
Cheios de mágoa também, porém, sem o conflito divino, são os primeiros versos de Incelênça pra terra que o sol matou, do menestrel contemporâneo das caatingas, Elomar: “levanto meus olhos, pela terra seca/ só vejo a tristeza, que desolação/ uma ossada branca fulorando o chão” – a imagem revolta, a melodia apascenta. As incelências são cantos tradicionais de guarda e sentinela. O que se segue depois é como um dedo em riste mirando o sol: “inté os olhos d’água chorou que secou/ e o sol dessas mágoa/ queimou os imbuzero, os bode e os carnêro, toda a criação/ isso o sol queimou” para terminar, não sem ironia, expondo a injustiça da estrela maior porque poupou sussarana, onça temida, e carcará ladrão, o gavião do sertão – dois predadores. “isso o sol poupou” – ressente o verso final saído da lavra do bode velho conterrâneo de Glauber Rocha, o papa do cinema novo que prenunciou a estética da fome.
Justo não é, Justiniano diria. Tupã, Tupi tá puto, décadas depois, dirá Sodré, o Raimundo da massa, outro ilustre filho da terra também. E o sol sobre a estrada é o sol na cabeça, meu bem. É um sol de marreta e pancada. Culpas & mágoas à parte, o escritor que nos legou histórias dessa nossa gente, em cacos da própria memória, teve parte de sua formação na cidade histórica de Cachoeira, recôncavo baiano. A obra rememora manhãs de bruma, inesquecíveis para ele, ao atravessar a rua da ponte nova para ir ao colégio. O nevoeiro. O Paraguassu. A ponte…
Ao escrever isso aqui vieram lembranças minhas – a sonoridade do choque entre os lastros de ferro e madeira da mesma ponte, ao atravessá-la com toda a família dentro de uma variante azul. O ano era 1985. Um século antes, 1885, importada por inteira da Inglaterra, a danada da ponte foi entregue à população cachoeirana, batizada de Dom Pedro II. Pertence ao tempo de Justiniano, o justiceiro meeiro.
De cachoeira pertencem os poetas Damário da Cruz e João de Moraes Filho. Em travessias, Damário escreveu Navegantes: “De mim exijam pouco… pois o tempo que me resta é louca busca de atravessar o sol”. É dele também o verso: “quanto mais eu sonho com cachoeira/ mais amanheço em Nova York”. Eugênio Gomes anota que, andando por NY, onde morou, ao ver os arranha-céus daquela cidade, vinha-lhe à cabeça o sobrado de um seu Manoel Adolfo, com seu pitoresco telhado de três águas, que se destacava imponente na humilde praça de sua cidade natal, ainda chamada Camisão, nos anos de 1900 e alguma coisa.
No mais recente sucesso da Netflix, Não olhe pra cima, o General Themes (Ron Perlman), o personagem militar responsável pela resposta do governo americano diante de uma iminente catástrofe, protagoniza talvez a cena mais tragicômica do filme. Desesperado pela ameaça de um grande cometa que devastaria a Terra, aos gritos, portando uma pistola, dispara uma sequência de tiros contra o invasor de corpo celeste e calda longa. Que lombra. O sol dessa vez se livrou. Mas há 82 anos no Ceará, o sol não se livrou de um torpedo de vaias disparadas da praça do Ferreira, no centro de Fortaleza. Era 30 de janeiro do ano de 1942, sem combinação prévia ou hora marcada, um monte de gente foi dar o seu berro contra o despontar do astro-rei por detrás das bem vindas nuvens pesadas que caíam em chuvas por gloriosos três dias seguidos. Foi de lascar. O povo não perdoou. Coisa vai ser quando o segundo sol chegar.
João de Moraes, o outro filho de Cachoeira, quase um século e tanto depois do tiro de Justiniano, em seu segundo livro, Portuário, literalmente lançado em minigarrafas nos mares do Caribe, em Cartagena das Índias na Colômbia, é dono do poema Disfarce e Olhe, onde se lê: “o sol bate mais forte na cara do homem que capina a esperança por um prato de comida/ quieta, menino, não dispare contra o sol, ele esfria de cansaço”.
O sol, diz a ciência, se apagará em cerca de 7,5 bilhões de anos. O danado, confirmam ainda os cientistas, antes do fim, vai se expandir e se contrair, só pra contrariar. Penso que talvez de cansaço, não por vingança, quisesse o nosso artilheiro, naquela tarde, nervoso, de espingarda na mão, matar o astro-rei. Vai saber. Deus quem sabe.