Em pré-venda, livro da sobinfluencia edições resgata textos e entrevistas inéditas do psicanalista catalão que revolucionou o modelo de cuidado nos serviços de psiquiatria e inspirou as lutas antimanicomiais no Brasil. Sorteamos dois exemplares
por Raíssa Araújo Pacheco – Sábado, 14 de outubro de 2023
Em 1936, cidades, fábricas e corações ferviam: explodia a memorável guerra civil espanhola, contexto em que vicejaram iniciativas como a coletivização de cidades, autogestão de fábricas e serviços e, em algumas cidades, até mesmo a abolição do dinheiro.
Mesmo com todas as contradições – assim como todos os processos históricos –, a guerra civil espanhola abalou antigas estruturas em busca de construir novos mundos. Médicos, psiquiatras e psicanalistas também participaram dessa construção, contribuindo para expandir os horizontes de um campo basilar à vida: a saude mental.
Dentre esses profissionais, estava François Tosquelles, um catalão nascido em território ocupado e dominado pelo Estado espanhol, portanto, asilado desde o nascimento. François é descrito, muitas vezes, como um “marxista libertário” devido ao seu envolvimento na política e por ter sido um defensor da autogestão e do combate às hierarquias.
François era médico de formação e nutria grande interesse na psicanálise, além de ser uma figura essencial, inovadora e radical no campo na psiquiatria, graças ao seu modelo de cuidado comunitário, integrando pessoas comuns no trabalho com a loucura. Infelizmente, seu legado foi esquecido na correnteza da história.
No desejo de corrigir essa injustiça e iniciar uma reparação histórica ou “política, ética e epistemológica”, nas palavras de Paulo Amarante, a sobinfluencia edições, em parceria com a Ubu Editora, lança, esse ano, a obra Uma política da loucura, uma compilação de textos e entrevistas inéditas do psicanalista, organizados por Anderson Santos e publicados pela primeira vez em português.
“A obra, além de ser um evento da memória, é também uma ferramenta que contribui para a construção coletiva de um outro mundo possível e por uma sociedade sem manicômios!”
Outras Palavras e sobinfluencia edições sortearão 1 combo [Aula+Pôster+Livro] de Uma política da loucura, de François Tosquelles e organizado por Anderson Santos, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 16/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
“A guerra civil, diferentemente da guerra de uma nação contra outra, está relacionada à não-homogeneidade do eu. Cada um de nós é feito de pedaços contrapostos, como uniões paradoxais e desuniões. A personalidade não é feita como um bloco. Se fosse, viraria uma estátua. É preciso registrar uma coisa paradoxal: a guerra não produz novos doentes, ao contrário, durante a guerra há muito menos neuroses e até psicoses que se curam, em relação à vida civil.”
A citação acima é de Tosquelles que, durante a efervescência da guerra civil, foi médico-chefe dos serviços psiquiátricos da frente sul da Catalunha e responsável pela “experiência que viria a ser internacionalmente conhecida e reverenciada sob a denominação de psicoterapia institucional”.
Tais práticas, como afirma Paulo Amarante, “forneceram algumas das bases mais importantes para o processo brasileiro de reforma psiquiátrica” e são baseadas na “reconstrução dos processos de vida, das relações sociais, das práticas de cooperação, ajuda mútua, reconhecimento, solidariedade, pertencimento, etc.”
Os grupos de cuidado desenvolvidos pelos psiquiatra eram formados por pessoas comuns, proporcionando uma prática que fortalecia o protagonismo dos pacientes na gestão de suas condições e no enfrentamento de suas angústias.
As experiências desenvolvidas sob a orientação de François fugiam da ideia de um “poder do médico”. Wander Wilson pontua, para Tosquelles, profissionais como médicos e psiquiatras “eram formados para ter medo da loucura”.
“A guerra civil comporta uma mudança de perspectiva sobre o mundo. Geralmente os médicos têm na cabeça a estabilidade de um mundo burguês (viver sozinhos, fazer dinheiro, ser cientistas). Ora, numa guerra civil, como foi a nossa, o médico tinha de poder aceitar a mudança de perspectiva sobre o mundo; poder aceitar que fossem os clientes quem determinasse sua clientela, que ele não era onipotente. Ocupei-me, portanto, da psicoterapia daqueles homens normais. Não daria para fazer psiquiatria conservando uma ideologia burguesa e individualista. Um bom cidadão seria incapaz de fazer psiquiatria, ela comportava uma anti-cultura.”
François afirmava que seu trabalho durante a guerra civil era também um combate à ideologia burguesa. Sua origem e os acontecimentos que atravessaram tanto sua vida, quanto as regiões que percorreu, sem dúvida influenciaram sua decisão de participar do BOC (Bloco Operário e Campesino) e, futuramente, da fundação do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista).
Para Paulo Amarante é “fundamental observar que o trabalho de Tosquelles demonstrou ser possível uma transformação profunda do campo psiquiátrico a partir da ressignificação das relações entre as pessoas, independentemente de suas inserções na instituição, da própria instituição, entendida como o conjunto de práticas, saberes, concepções e dispositivos que produzem e reproduzem formas de ver e agir”.
“Tosquelles transportava para sua prática na instituição psiquiátrica, os princípios libertários e democráticos pelos quais lutava no campo da luta política em geral. […] estabelecendo conexões com a política, a cultura e o social, considerando o teatro, o cinema, a arte e a escrita como ferramentas fundamentais para o trabalho na instituição”.
Vale ressaltar que o catalão influenciou importantes personalidades revolucionárias como Frantz Fanon, que foi seu aluno. De acordo com Sevalho G e Dias JVS: “A experiência com Tosquelles foi relevante para a estruturação do conhecimento que Fanon desenvolveria ao assumir a direção do hospital psiquiátrico de Blida-Joinville, na Argélia”.
Mas não só, Félix Guattari, Horace Torrubia, Jean Oury, Lucien Bonnafé, Roger Gentis, Yves Racine, surrealistas, militantes comunistas e anarquistas foram influenciados por suas ideias libertárias e antifascistas.
De cunho intrinsecamente político, o legado e a obra de Tosquelles nos alerta que o manicômio não se restringe ao espaço delimitado pelas paredes institucionais, sua estrutura hierárquica pode ser vista em relações para além desses limites, portanto, os enfrentamento que precisamos fazer às estruturas necessitam transbordar as instituições.
Fonte: Outros Quinhentos