Ricardo Westin
Publicado em 6/10/2023
Em 1823, meses após a Independência do Brasil, o deputado Arouche Rendon (SP) lembrou num discurso que São Paulo, sua província, tinha um território gigantesco. Para provar que não exagerava, ele citou duas vilas paulistas localizadas em pontos remotos:
— Há a vila de Curitiba em cima da serra e a vila de Paranaguá na marinha. Ambas distam 100 léguas da capital da província.
Em 1843, o senador Carneiro Leão (MG) discursou sobre os planos do governo imperial de importar frades capuchinhos da Itália para catequizar indígenas na Floresta Amazônica:
— No Pará, conviria que se fixasse o centro das missões na Cidade do Pará [atual Belém] ou na Vila da Barra do Rio Negro [atual Manaus] e que daí se mudassem esses religiosos [para o interior] quando cumprisse.
As duas falas fazem parte do acervo histórico do Arquivo do Senado, em Brasília. Embora elas sugiram o contrário, o deputado e o senador não eram ruins de geografia. O Paraná e o Amazonas não existiam nos primórdios do Brasil independente. Curitiba e Paranaguá se localizavam mesmo em São Paulo, e a vila que mais tarde seria Manaus ficava de fato no Pará.
O Paraná foi desmembrado de São Paulo em 1853 — completou 170 anos no mês passado. O Amazonas se separou do Pará na mesma época, em 1850 — o 173º aniversário foi em agosto.
Foram as duas únicas províncias criadas nos tempos do Império. Para que essa redivisão interna do Brasil fosse feita, os paulistas e os paraenses tiveram que abrir mão de praticamente a metade de seus territórios.
O historiador Vitor Marcos Gregório, que é professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e fez uma tese de doutorado sobre a criação das duas províncias, explica que essa medida no reinado de D. Pedro II foi motivada por fatores internacionais e domésticos.
De acordo com ele, a Floresta Amazônica brasileira corria o risco de ser invadida pela Inglaterra e pela França. As maiores potências militares da época sonhavam com expandir as colônias da Guiana Inglesa e da Guiana Francesa até as margens do Rio Amazonas, tomando terras do Brasil. Na época, o traçado das fronteiras amazônicas ainda era nebuloso.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, que já mostravam inclinação ao imperialismo, pressionavam para que a navegação no Rio Amazonas fosse liberada para navios estrangeiros, o que o governo brasileiro não aceitava. Temia-se que os americanos, insatisfeitos, acabassem invadindo a Amazônia.
— O governo imperial entendeu que a criação da província do Amazonas iria, por um lado, estimular o povoamento dessa parte da Amazônia e, por outro, levar o poder público e as forças de segurança para perto das fronteiras. Foi uma maneira de proteger a integridade do território nacional — afirma Gregório.
Na esfera doméstica, pesou na decisão de dividir o Pará o trauma da Cabanagem, a maior revolta social da história do Brasil, que explodiu em Belém em 1835 e só acabou em 1840, com um saldo estimado de 40 mil mortos (em torno de 25% da população da Amazônia).
Atribui-se a longa duração da Cabanagem à vastidão territorial do Pará. Grande parte dos insurgentes fugiu para o interior da província, de onde continuou conspirando contra o governo. As autoridades paraenses não dispunham de meios para alcançar os rebeldes embrenhados nos confins da Amazônia.
Quanto ao Paraná, a questão internacional que motivou a criação da província foi a instabilidade na região do Rio da Prata. Por causa da influência brasileira na política do Uruguai, eram tensas as relações de D. Pedro II com o Paraguai e a Argentina. Por isso, o governo imperial julgava prudente dispor de uma nova autoridade provincial que cuidasse de perto da tríplice fronteira.
No aspecto doméstico, a emancipação do Paraná foi um desdobramento indireto da Revolta Liberal de São Paulo, ocorrida em Sorocaba em 1842, e da Revolução Farroupilha, que se estendeu de 1835 a 1845 e chegou a proclamar as províncias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina independentes do Brasil.
O historiador do IFPR acrescenta que São Paulo já vivia a pujança do café nesse momento, e a elite da região de Curitiba, dedicada ao cultivo da erva-mate, ressentia-se da atenção exclusiva que o governo paulista dava aos cafezais e desejava a emancipação. Ele afirma:
— O governo imperial e a elite curitibana fecharam um acordo que foi bom para ambas as partes. Curitiba cumpriu a promessa de não apoiar os liberais de Sorocaba nem os farrapos. Os dois grupos rebeldes acabaram derrotados. Em troca, o governo imperial recompensou Curitiba apresentando no Parlamento um projeto de lei prevendo a criação da província do Paraná — afirma.
A criação, portanto, não foi automática nem imediata. O projeto de lei teve que ser discutido e aprovado pela Câmara e pelo Senado e sancionado pelo imperador D. Pedro II. O mesmo processo ocorreu na emancipação do Amazonas.
Os documentos do Arquivo do Senado mostram que, nos dois casos, os debates parlamentares foram acirrados.
Na época, o atual Amazonas correspondia à comarca do Rio Negro. Os defensores da emancipação no Senado argumentaram que a comarca, incrustada na floresta, ficava afastada demais da capital do Pará e só deixaria de ser um vazio demográfico e econômico quando passasse a contar com um governo provincial próprio.
Um desses defensores foi o senador Paula Souza (SP), que afirmou:
— É certo que a comarca do Rio Negro existe muito longe da capital da província e por isso lhe podem faltar recursos, mormente não havendo ainda navegação por vapor. A comunicação da capital do Pará a esse lugar é demasiadamente retardada. Creio que é de muitos meses.
O senador mineiro Carneiro Leão concordou:
— A grande distância que vai da Cidade do Pará à cabeça da comarca do Rio Negro tem demorado todas as providências e feito com que pouco se atenda às necessidades daquela comarca. Acontece muitas vezes que um presidente [cargo equivalente ao de governador] do Pará comunica a sua posse para aqueles lugares e, quando vem a resposta, o presidente já está mudado.
Quando algum colega afirmou que criar instituições provinciais e contratar servidores públicos custaria demais aos cofres imperiais, o senador Saturnino da Costa Pereira (MT) pediu a palavra para rebater o argumento. Ele garantiu que os gastos com a emancipação se pagariam em pouco tempo:
— Quem não semeia não pode colher. Será mais um suprimento que tenha de fazer o Império enquanto as rendas do Rio Negro não crescerem. Portugal avançou grossos capitais para engrandecer e povoar o Brasil, que lhe era totalmente desconhecido. Portugal e nós, seus descendentes, vemos o lucro que apareceu desse avanço de despesas. Sem essa criação nova [a província do Amazonas], perder-se-á para sempre aquele precioso território, para ser habitado por homens selvagens e feras das matas.
Outro defensor da criação do Amazonas, o senador Visconde de Abrantes (CE) disse que a porção ocidental do Pará tinha condições de superar a decadência que amargava no Império, já que vivera momentos áureos no passado:
— A comarca ou capitania do Rio Negro, ainda em 1819, exportou o valor de 170 contos de réis fortes em gêneros e produtos que passarei a mencionar: tabaco, salsa, café, cacau, cravo fino, anil, quina, breu, óleo de copaíba, algodão em rama, manteiga de tartaruga etc. Existiam vários estabelecimentos fabris, cujos produtos eram exportados até para o estrangeiro. Havia cordas de muito valor e outros artefatos, inclusive louça para o consumo da província do Pará. A maior parte desses estabelecimentos não existe hoje. Por que, senhores? Porque o Rio Negro não tem sido administrado.
Nesse momento, pouco se exploravam as seringueiras. O ciclo da borracha, responsável pelo renascimento da prosperidade amazônica, só ocorreria a partir da década de 1870, para alimentar as fábricas da Europa e dos Estados Unidos na Segunda Revolução Industrial.
No Senado, um parlamentar avaliou que seria inviável criar uma província com tão poucos habitantes. O Visconde de Abrantes discordou:
— Não se trata de organizar uma província em sertão absolutamente ermo. A comarca do Rio Negro, pela última estatística, contém 23 mil habitantes livres e calcula-se que as tribos indígenas excedem de 120 mil almas, sendo todas essas tribos de índole pacífica e mui suscetíveis de civilização. Não me parece que deva ser o projeto rejeitado só porque a população não é grande.
Recorrendo a uma comparação, o senador prosseguiu:
— Quando foi criada a província de Mato Grosso, qual era a sua população? A estatística atual dá para a população livre de Mato Grosso 36 mil almas. E eu pergunto: qual seria a população de Mato Grosso há 40 anos ou na época em que foi elevado em capitania geral ou em província? Hoje deve ter duplicado. As mesmas circunstâncias que levaram o poder de então a organizar ali uma província com tão mesquinha população são as mesmas ou talvez menos poderosas que as que hoje aconselham a elevação do Rio Negro.
As tensões internacionais também apareceram nos debates parlamentares. O senador Bernardo Pereira de Vasconcelos (MG) apontou o perigo:
— Para mim, é indubitável que o governo inglês tem por objetivo apoderar-se do gigante Amazonas e dentro de pouco tempo expelir de suas margens os ribeirinhos, exercer a mais pesada inspeção em todos os barcos, visitá-los, detê-los, capturá-los até a pretexto de negreiros e assim acabar nossa navegação interna, como tem já acabado a de longo curso e a de costa a costa. As folhas [jornais] inglesas não ocultam o pérfido pensamento de seu governo. Elas asseveram que o Amazonas deve pertencer à Inglaterra.
O senador Carneiro Leão alertou:
— Há pretensões sobre parte do território que atualmente ainda está ocupada por posse, mas essa mesma posse desaparecerá se nós não a tornarmos mais efetiva, procurando guarnecer esses pontos da nossa fronteira, e se não pusermos ali uma administração local que mais depressa possa ser instruída das tentativas de usurpação que se fizerem.
Segundo os papéis históricos do Arquivo do Senado, o adversário mais ferrenho da criação do Amazonas foi o senador Vergueiro (MG).
Além de afirmar que a área não tinha população nem arrecadação tributária suficientes para tornar-se autônoma, ele argumentou que a abertura de instituições e repartições governamentais na pequena Vila da Barra do Rio Negro provocaria efeitos colaterais nefastos na alta sociedade local:
— Talvez tenha reinado até hoje a paz naquela comarca. Passando a província, hão de se devorar uns aos outros os seus habitantes com intrigas, que é o que acontece nessas províncias pequenas. Uma família quer preponderar e disso resultam rivalidades e depois desordens continuadas, o que não acontece numa província que seja populosa e ao mesmo tempo civilizada. Não sei do estado de civilização do Rio Negro, mas, a avaliar-se a sua civilização pela sua localidade, suponho que não pode estar muito adiantada.
Enquanto estudavam o projeto de lei, os senadores receberam duas representações remetidas por autoridades paraenses pedindo a criação do Amazonas — uma assinada pelos vereadores da Câmara Municipal da Vila da Barra do Rio Negro e a outra encaminhada pelos deputados da Assembleia Provincial do Pará.
Com o apoio dos próprios paraenses, o projeto de divisão do Pará foi transformado em lei em 1850 sem enfrentar maiores dificuldades.
O atual Paraná correspondia à comarca paulista de Curitiba e Paranaguá. Para os defensores da emancipação, essa comarca deveria ser elevada a província por já ser desenvolvida e povoada e ter renda suficiente para manter-se por conta própria — argumento diametralmente oposto ao empregado pelos apoiadores da criação do Amazonas.
Em 1850, o senador Batista de Oliveira (CE) apresentou uma emenda ao projeto de lei de emancipação do Amazonas prevendo a separação simultânea do Paraná. Num discurso, ele apresentou seus motivos:
— Primeiramente, suponho eu, pelas informações que tenho, que a comarca de Curitiba não só possui uma população maior do que a do Alto Amazonas, como uma indústria mais desenvolvida do que essa parte do território do Pará. Em segundo lugar, a comarca de Curitiba tem um bom porto de mar em Paranaguá, o qual deve muito contribuir para a prosperidade dessa nova província.
Ao lado do porto, a grande fonte de renda na comarca de Curitiba e Paranaguá eram os impostos cobrados do gado transportado do Rio Grande do Sul para São Paulo e vendido para toda a província numa feira em Sorocaba. Os animais eram taxados pelas autoridades paulistas assim que entravam no território da comarca.
Na avaliação do senador Carneiro Leão, a região de Curitiba só conseguiria se desenvolver plenamente depois de se separar da província de São Paulo. Ele explicou que a emancipação ainda não havia acontecido porque os seus representantes políticos não eram tão numerosos e poderosos quanto os das demais comarcas paulistas. Ele disse:
— Um dos obstáculos à prosperidade da comarca de Curitiba, que está apartada da grande massa da civilização, é a pouca influência que ela tem nas eleições. Não tem meios de se pronunciar para sua elevação a província porque, se na Assembleia Provincial há dois deputados que pertençam a Curitiba, há 33 ou 34 pertencentes a outras localidades que esmagam esse voto legal. Se recorre à Câmara [dos Deputados], raras vezes nela se contempla um curitibano.
O senador acrescentou:
— Daí provém que, não obstante ser pela província de Curitiba que se arrecada a maior parte da renda da província de São Paulo, ela tem estado quase abandonada. O governo provincial não se ocupa daquela comarca. É por isso que os seus habitantes desejam muito a criação de uma administração local que se cure mais de perto dos seus interesses materiais.
Houve resistência na bancada de São Paulo. Indignado, o senador Francisco de Paula Souza (SP) se manifestou com veemência contra a “mutilação” de sua província:
— Qual o motivo por que uma província como São Paulo, que tem alguma história, que tem sido sempre tão útil ao Brasil, há de descer de sua categoria, há de ficar reduzida a província de última ordem? Todos sabem que já se lhe tirou uma parte para o Rio de Janeiro e se pretendem ainda tirar várias vilas. Tirada a comarca de Curitiba, o que resta a São Paulo? Isso fere o amor que os provincianos têm e devem ter à sua província. Se isso fosse em proveito do Brasil todo, bem, devíamos sacrificar o interesse local ao interesse geral, mas não resulta isso da medida de que se trata.
Na tentativa de convencer os colegas a não aprovar o projeto, Paula Souza avaliou que seria injusto diminuir apenas São Paulo e conservar intactas todas as demais 17 províncias do Império:
— Se há o pensamento de reduzir as províncias a pequenas divisões, então faça-se isso por uma medida geral, assim como se fez na França, reduzindo-se as antigas províncias a departamentos, como também se fez na Espanha depois da sua última revolução e como igualmente em ponto menor se fez em Portugal. Isso compreendo eu. Então não haverá ofensas nem desgostos, não se chocarão os ânimos. Ora, estamos nós em posição de dever chocar ânimos? Não é, antes, tão melindrosa a nossa atual posição? Eu, pois, julgo ser inoportuna medida.
O senador Vergueiro, que já era contrário à criação do Amazonas, também se apresentou como grande adversário da emancipação do Paraná. Ele rechaçou o argumentos de que Curitiba tinha porte de capital e vinha sendo escanteada por São Paulo:
— Ainda não há muito tempo, criou-se na cidade de Curitiba um liceu, que, se não está em plena ação, é por falta de mestres que queiram ali exercer o magistério. A Assembleia [Provincial de São Paulo] fez aquilo que estava da sua parte, que foi a criação do liceu e o estabelecimento de ordenados. Não há, pois, motivo nenhum de queixa, não podendo [os curitibanos] alegar que seus interesses são desprezados.
Na direção inversa da tomada pelos deputados provinciais do Pará, que apoiaram a criação do Amazonas, a Assembleia Provincial de São Paulo enviou uma representação aos senadores pedindo que não aprovassem a emancipação do Paraná.
Por causa da oposição dos paulistas, a criação do Paraná foi mais difícil e demorada que a do Amazonas. A divisão de São Paulo poderia ter sido aprovada junto com a do Pará, em 1850, mas os debates no Parlamento se estenderam por mais tempo e a aprovação só ocorreu três anos depois.
O historiador Vitor Marcos Gregório, do IFPR, entende que o processo de criação do Amazonas e do Paraná mostra com clareza que o sistema político representativo, caracterizado por um Poder Legislativo forte e atuante, funcionava plenamente no Brasil já no período imperial:
— Apesar de o país ser uma Monarquia e o imperador dispor do Poder Moderador, o monarca não tinha poderes absolutos e ilimitados. A palavra dele não era ordem. Isso era verdade na época do Antigo Regime, do absolutismo. O Brasil colonial era uma propriedade particular do rei de Portugal, que podia dividir e redividir ao território ao seu bel-prazer. O Brasil imperial, não. D. Pedro II chegou a pedir ao Parlamento a aprovação da província do São Francisco, mas esse pedido nunca foi atendido. A palavra do partido que estava no poder também não era ordem. O governo precisava negociar com o Senado e a Câmara, que tinham liberdade para aprovar ou rejeitar os projetos de lei.
Ele prossegue:
— Se compararmos um mapa do Brasil imperial com um mapa atual, veremos que eles são bastante parecidos. Isso ocorre porque a criação de novas unidades subnacionais não é algo simples e exige muito debate político e negociação. Os parlamentares sempre evitaram mudar no mapa porque sabem que, quando dividem alguma província ou estado, abre-se espaço para que outras unidades passem pelo mesmo processo e a próxima a ser diminuída seja a deles próprios. A tendência é à conservação do território.
No Império, os parlamentares também analisaram projetos que previam a criação das províncias do Tocantins, de Minas do Sul, de Minas Novas e do Oiapóquia (correspondente ao atual Amapá). Sem o apoio do Parlamento, nenhum deles vingou.
Gregório afirma que, quando olhamos o mapa do Brasil de hoje, o traçado nos parece natural. Segundo ele, porém, nada tem de espontâneo:
— Essa sensação de naturalidade vem, em larga medida, do antigo discurso político que transformou o território, aquele “do Oiapoque ao Chuí”, num elemento decisivo da nossa identidade brasileira, do nosso nacionalismo. Esse discurso também ajuda a explicar a tendência à conservação do traçado do território brasileiro. Quando conhecemos a história da criação do Amazonas, do Paraná e de qualquer outro estado, entendemos que nada foi natural ou fruto do acaso. O território que temos hoje é resultado de cálculos, estratégias, negociações, escolhas, decisões.
Fonte: Agência Senado