Terça, 2 de janeiro de 2024
O ano de 2023 trouxe novo fôlego para os defensores da integração da América Latina, mas termina com eventos pouco animadores: a eleição do atual presidente da Argentina, o ultraliberal Javier Milei, e as tensões entre Venezuela e Guiana por Essequibo estão entre os principais indícios desse futuro instável para a região, segundo analistas.
Especialistas ouvidos pelo podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, concordam que o clima começa tenso em 2024 para o continente latino-americano como um todo.
“Certamente não será um período em que teremos um Mercosul mais aprofundado do ponto de vista político e social, como a gente teve no início deste século. Ou pensar, por exemplo, no resgate da Unasul [União de Nações Sul-Americanas], que era algo que a gente esperava que fosse ser mais liderado pelo Brasil ao longo de 2023”, comenta a professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernanda Nanci.
Nanci, que também é coordenadora do curso de relações internacionais do Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro (Unilasalle) e do Núcleo de Estudos de Atores e Agendas de Política Externa (NEAAPE), pondera, no entanto, que o pragmatismo do governo de Milei não abrirá mão do comércio exterior com o Brasil, apesar das “discrepâncias ideológicas” do ponto de vista político:
“Milei efetivamente não defende o multilateralismo, a aproximação com a China ou a aproximação com o Brasil no plano do discurso. Mas o Brasil é parceiro essencial da Argentina na região e o comércio exterior argentino depende das relações com o Brasil, assim como depende das relações com a China, que também foi extremamente criticada por Milei durante seu processo eleitoral”, avalia.
O cientista político e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Jefferson Nascimento também crê que o governo de Milei será bem diferente do que ele prometeu quando era candidato, mas opina que a presença de uma direita ultraliberal pode impactar negativamente outros países da região. Isso porque, com a expectativa de crescimento do produto interno bruto regional de menos de 2%, outros governos terão menos margem de manobra para promover políticas de redistribuição de renda:
“Isso pode impactar na taxa de aprovação dos governos, nas dificuldades de reeleição e na própria dificuldade de governabilidade, que é algo que já está dado. Se a gente pegar os países da América Latina, grande parte deles estão passando por grandes dificuldades de construir maiorias sólidas no Congresso, de aprovar propostas”, analisa ele.
Nanci acrescenta: “Certamente não será um ano fácil para a região, com baixos níveis de crescimento econômico e com todos os problemas sociais que temos acumulado”.
Essequibo e eleições na Venezuela
Principal ponto de tensão na agenda diplomática, a região de Essequibo tornou-se motivo de dor de cabeça para o Brasil, sobretudo devido à imensa região de fronteira com a Venezuela e também com a Guiana, destacaram os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
As eleições presidenciais previstas para ocorrer na Venezuela também estão entre os principais eventos latino-americanos de 2024, muito por conta da relação com as agendas do multilateralismo e da integração regional.
Para Nascimento, o protagonismo venezuelano ao longo do século XXI na América Latina, principalmente nos governos de Hugo Chávez, foi preponderante para os movimentos de integração, com criações de instituições como Petro Caribe e Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e mecanismos de integração com os países do Cone Sul.
“Então analisar o que vai acontecer na Venezuela neste ano é fundamental para entender seu impacto na América Latina”, argumenta o acadêmico.
Acordo Mercosul-União Europeia: ainda dá para ter esperança?
Para Nanci, o acordo do Mercosul com a União Europeia (UE) não sai porque da forma como está sendo proposto hoje só atende aos interesses da Europa.
“É mais uma imposição do que os europeus querem com as cláusulas do que atendendo às necessidades dos países sul-americanos. Não é fácil, estamos falando de 20 anos de acordo. A questão é que esse acordo envolve inúmeros interesses discrepantes da União Europeia e do Brasil, do Mercosul, principalmente de latifundiários, da área da agropecuária”, reflete ela.
“O Paraguai agora vai assumir a presidência rotativa e já disse que se depender do Paraguai não haverá movimentos para fechar o acordo com a União Europeia. Caso esse acordo não seja fechado agora, o que realmente não vai acontecer”, acrescentou Nascimento, que concorda que o acordo como está parece pouco provável de sair do papel.
Bolívia no Mercosul
A entrada da Bolívia no bloco em 2023 ocorre em um momento de baixo crescimento econômico, além de problemas políticos internos, segundo os entrevistados.
“Não acredito que fará grande diferença para o bloco nem em termos econômicos, comerciais, nem em termos políticos. O Mercosul está muito esvaziado, enfraquecido. Eu não acredito que a entrada da Bolívia, que é um país que também não está pujante na região neste momento, vai ser o suficiente para fortalecer a integração na sub-região”, declarou Nanci.
Nascimento, que também é membro do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL) da UERJ, concorda que o contexto não é favorável para grandes avanços no bloco. Ele cita como exemplo o Uruguai, que vem pressionando para firmar um tratado bilateral com a China sem o restante do grupo, o que descaracterizaria o Mercosul, segundo ele.
“O próprio Paraguai também apoia uma liberalização maior do Mercosul. Acho que o Brasil terá um papel importante, e o presidente Lula deve fazer esforços para manter o grupo unido e coeso”, opinou o cientista político.
Focando no copo meio cheio: pauta ambiental deve ser fortalecida
Apesar do balde de água fria no sentimento integracionista, alguns avanços em 2023 devem ser potencializados neste novo ano, segundo os entrevistados, relacionados principalmente ao meio ambiente e às mudanças climáticas.
“O Brasil fez esse resgate de tentar se posicionar como liderança que trata do tema do meio ambiente na região […], tem buscado liderar a integração nesse sentido, na discussão de formas de combater em conjunto com os outros países o desmatamento ilegal, lidar com os efeitos de mitigação das mudanças climáticas”, disse a professora da UFRJ.
Para Nascimento, os eventos climáticos extremos vêm se tornando cada vez mais evidentes e frequentes, e essa é uma agenda que “se impõe de forma bastante avassaladora e vem crescendo de importância de forma muito rápida”.
Ele mencionou a energia eólica, a solar e as reservas no triângulo do lítio, entre Bolívia, Chile e Argentina, como perspectivas positivas na transição energética da região. Mas advertiu:
“É preciso também que esse processo de transição energética inclua ouvir essas comunidades que vão ser mais afetadas, porque não basta você perguntar apenas lá na frente, na substituição de combustíveis fósseis, se isso também está afetando aqui no presente essas comunidades.”
O cientista político apontou ainda algumas contradições por parte do Brasil em relação a essa agenda, como posições dúbias quanto ao uso de combustíveis fósseis, a possibilidade de explorar petróleo na Amazônia e o anúncio da participação na OPEP+ (Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados), além dos recentes leilões da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
“Há algumas contradições que precisam ficar mais evidentes, porque já o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, vem tendo um discurso mais firme a favor da eliminação do uso de combustíveis fósseis”, comenta.
Os entrevistados foram unânimes ao argumentar que 2023 foi um ano de retomada, com passos importantes como o ressurgimento da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), o resgate do Mercosul e a entrada da Bolívia no bloco, e que, apesar dos desafios, o Brasil, sobretudo, terá um papel fundamental na missão de integrar e fortalecer a região.
“Em 2024, sinceramente, acho que o Brasil deveria reforçar a sua capacidade de ser uma potência na região. O Lula falou muito sobre a retomada da integração regional no discurso de posse, em vários outros discursos que fez quando encontrou com os países, com os representantes dos países, seja na OTCA [Organização do Tratado de Cooperação Amazônica], seja na ONU, e por aí vai, de que a integração na região era um elemento central. Acho que falta uma posição mais firme sobre o que vamos fazer, qual é a nossa proposta para a integração na América do Sul e na América Latina e Caribe”, conclui Nanci.
Fonte: Sputiniknews