Pesquisadora Anna Gilmore fala sobre determinantes comerciais da saúde e aborda a polêmica do cigarro eletrônico
Por que as pessoas adoecem? Essa pergunta move a humanidade há milênios e já foi respondida de várias formas. Da crença no castigo divino à descoberta dos vírus e bactérias, as respostas foram se sofisticando. A causa única deu lugar ao quadro amplo. Os desfechos clínicos não seriam mais explicados sem olhar para como as pessoas vivem, onde elas moram, no que elas trabalham, a qual classe social pertencem… Agora, o foco se fecha sobre uma palavrinha: lucro. Quem lucra com o nosso adoecimento? Quem lucra com o colapso do planeta?
Para a pesquisadora Anna Gilmore, é preciso levar em conta os determinantes comerciais da saúde. Em entrevista ao Joio dada em dezembro, durante sua passagem no Brasil para divulgar a série especial da revista Lancet sobre o tema, da qual é organizadora, ela explica qual é o papel das corporações e dos bilionários nesse cenário. E defende que olhemos não para a parte, mas para o todo. “Não é apenas um problema de poucos produtos, não é apenas um problema de poucas indústrias: é um problema de todo o sistema.”
Diretora de um dos mais prestigiados centros de estudos sobre fumo, o Tobacco Control Research Group da Universidade de Bath, na Inglaterra, ela também fala sobre o assunto do momento: os cigarros eletrônicos. E, apesar de ela não ser contra o uso dos dispositivos por fumantes que querem largar o cigarro, acredita que o efeito desses produtos na população como um todo pode ser ruim – ainda mais em países como o Brasil. “Os cigarros eletrônicos têm potencial de serem mais perigosos nos países de renda média e baixa, onde não existem recursos para fazer cumprir as políticas de saúde. Os governos precisam ter cuidado. Adotar uma abordagem preventiva é sensato.”
Confira, a seguir, os principais trechos da conversa.
O que são os determinantes comerciais da saúde?
No sentido mais direto, determinantes comerciais da saúde são as formas pelas quais atores comerciais impactam a saúde. E, aqui, nos interessam particularmente os impactos negativos à saúde, mas, na Série Lancet, damos uma definição muito mais específica: “os sistemas, as práticas e os caminhos pelos quais os atores comerciais têm impacto na saúde e na equidade”. Por saúde, entendemos a saúde humana, é claro, mas, também, a planetária porque essas duas estão intimamente ligadas e as empresas tiveram um grande impacto negativo em ambas. E destacamos, também, a equidade, porque, ao longo do tempo, tornou-se evidente que as corporações impulsionaram a desigualdade. Por exemplo, o salário dos trabalhadores estagnou e as condições de trabalho pioraram – com contratos de zero horas [quando a empresa paga pelas horas trabalhadas, o que causa variações de renda de um mês para o outro] e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, os bônus dos executivos dessas empresas só fez aumentar. Não é que não haja dinheiro no sistema. Há. Mas a distância entre uma ponta e outra está ficando cada vez maior, o grosso do dinheiro vai para os executivos e acionistas, enquanto os trabalhadores são maltratados.
Nos anos 1970, a Organização Mundial da Saúde sacramentou um conceito que também leva determinantes no nome – os determinantes sociais da saúde. A ideia é que deveríamos olhar não para um vírus ou uma doença, mas para o conjunto das condições de vida de uma população. As condições nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham, envelhecem, para, daí, pensar em políticas públicas e sistemas que dessem conta de melhorar a vida das pessoas. Por que é necessário ter um novo conceito?
Porque o mundo mudou muito nos últimos 50 anos. Me refiro particularmente à mudança de uma forma mais controlada de capitalismo, que existiu após a Segunda Guerra Mundial, para uma forma desenfreada de capitalismo de mercado – o neoliberalismo – que começou a dominar o cenário a partir do final da década de 1970. É absolutamente claro que, com o avanço desta forma de capitalismo, os danos corporativos aumentaram.
As corporações tornaram-se maiores e mais poderosas. Vemos cada vez mais corporações verdadeiramente transnacionais. As receitas de muitas dessas empresas são maiores do que os orçamentos nacionais, mesmo quando comparamos com países de rendimento elevado. Esse poder vem acompanhado de muita influência para mudar leis, baixar impostos – o que torna mais fácil causar danos sem pagar por esses danos.
Também vimos as empresas passarem a desempenhar um papel crescente em áreas- chave para o conceito de determinantes sociais da saúde – como habitação, saneamento e educação – e que, um dia, já foram de competência exclusiva do Estado. E, por fim, assistimos à liberalização dos mercados. A evidência é de que essa liberalização desempenhou um papel fundamental na epidemia de obesidade e na epidemia do tabagismo, na medida em que os países de renda média e baixa abriram-se às grandes empresas do setor de alimentos, de refrigerantes, de tabaco…
Quando o debate dos determinantes comerciais surgiu?
As pessoas têm falado sobre esse conceito , ainda que com nomes diferentes, nos últimos 20 anos, mais ou menos. Mas penso que inicialmente o foco estava apenas em algumas indústrias – tabaco, álcool, ultraprocessados, combustíveis fósseis…
Agora, está realmente claro que não é apenas um problema de poucos produtos, não é apenas um problema de poucas indústrias: é um problema de todo o sistema.
Tomemos como exemplo as cadeias de abastecimento: quando as empresas danificam a Amazônia ou derramam resíduos químicos nos rios, muitas vezes estão apenas tentando poupar custos e tomar atalhos para obter mais lucros. Às vezes, não há regulamentação que impeça isso. E, mesmo quando há, parece que as empresas podem simplesmente escolher poluir. Porque, se ela poluir este rio ou desmatar aquela área de floresta tropical, a multa será tão pequena que, em vista do lucro que essa opção gera, ela se torna justificável do ponto de vista meramente econômico.
Tendo todos esses problemas em vista, por que a Série da Lancet argumenta que o conceito de determinantes comerciais da saúde é neutro?
Estávamos tentando ser positivos, mas, neste momento, a situação não é neutra. Dizemos claramente que o sistema atual é patológico – cria problemas de saúde, danos planetários e desigualdades que são totalmente evitáveis. Mas queríamos uma definição neutra, porque precisamos que isso mude. E temos que permitir o potencial de mudança. Precisamos que os atores comerciais melhorem.
Também, porque existem muitos tipos diferentes de atores comerciais. Tendemos a nos concentrar nas corporações transnacionais, porque são elas que causam mais danos, mas, na verdade, existem muitos outros atores – pequenas empresas, agricultores locais, feirantes, etc. – que contribuem positivamente para a saúde, para a sociedade.
Na verdade, se olharmos para as evidências, são essas pequenas e médias empresas que mais contribuem para um crescimento econômico inclusivo e a geração de empregos. No entanto, as corporações engolem essas pequenas empresas ao tirar partido de estruturas transnacionais.
Como você acha que os determinantes comerciais como conceito podem influenciar ou alterar o desenho das políticas públicas?
No nosso trabalho, analisamos a forma como as empresas influenciam as políticas. Demonstramos que, quer sejam empresas de alimentos, bebidas alcoólicas, jogos de azar ou tabaco, todas influenciam as políticas da mesma forma. É como se todos tivessem a mesma caixa de ferramentas táticas. Mas a escolha da ferramenta varia de acordo com o contexto e o país. Muitas vezes é mais fácil para as empresas escapar impunes de mau comportamento nos países de renda média e baixa. Por exemplo, esses países são mais vulneráveis ao que chamamos de “gestão da reputação corporativa” ou iniciativas de responsabilidade social em que empresas financiam iniciativas que, à primeira vista, parecem boas. Mas as evidências mostram que essas iniciativas escondem os danos que essas empresas estão causando, garantem o acesso e a influência das empresas sobre os governos – e, ainda por cima, quase sempre são dedutíveis do imposto de renda das próprias empresas. Ou seja, são financiadas com dinheiro que o Estado poderia estar arrecadando.
Na Colômbia, uma empresa de refrigerantes utiliza a reserva de água local para produzir os seus produtos. A população daquele lugar agora não tem acesso à água. Então, o que a corporação faz? Estabelece um programa de “responsabilidade social corporativa” para fornecer água mineral à população local. Eles tiram algumas fotos que mostram a empresa de refrigerantes distribuindo água como solução para a crise hídrica. E ninguém percebe que o problema foi causado pela empresa.
Aqui no Brasil, as empresas de ultraprocessados deram dinheiro para iniciativas de atividade física nas escolas. Mas o governo deveria tributar estas empresas para que elas paguem pelas doenças crônicas que o consumo de ultraprocessados provoca. Se Lula fizesse isso, o governo teria o dinheiro que precisa. E poderia, então, financiar os seus próprios programas anti obesidade e anti fome. Mas, porque não têm esses recursos, os governos sentem que têm de confiar nas empresas e isso dá a essas empresas influência e credibilidade. De repente, essas corporações são vistas como mocinhos. Não apenas pelo governo, mas pelas pessoas. É uma forma subsidiada de marketing. E a questão fundamental é, claro, que eles estão trabalhando ombro a ombro com os tomadores de decisão – presidentes, ministros, etc. – para controlar toda a agenda alimentar. Eles podem impedir que uma política pública seja colocada na mesa de discussão. É muito importante que as pessoas vejam esses problemas porque é muito fácil para as empresas escaparem impunes destas manobras de gestão de reputação.
E o que deveríamos fazer a nível global?
Dentro do sistema ONU, um grupo de trabalho intergovernamental tenta desenvolver um tratado sobre empresas transnacionais e direitos humanos. E essa é uma forma de levar esta agenda adiante. Porque envolve tantas questões que precisam estar sob o mesmo guarda-chuva. Temos um tratado separado sobre o controle do tabaco – a Convenção-Quadro da OMS para o Controle do Tabaco – que, em muitos aspectos, tem sido incrível. Mas não acho que queremos travar essa luta para aprovar um tratado para alimentação, outro para o álcool, e depois um terceiro para os jogos de azar e assim por diante. É melhor ter um tratado abrangente, e ligado aos direitos humanos. Porque estas são, em última análise, questões de direitos humanos. Temos direito à saúde, ao ar e à água limpos, e esses direitos são violados todos os dias pelas corporações – e também pelos governos que não agem no interesse público. Precisamos responsabilizar governos e empresas.
O foco das suas pesquisas durante muito tempo foi a indústria do tabaco. Até que ponto esta indústria desempenhou um papel na formatação do conceito de determinantes comerciais?
Foram as minhas reflexões sobre o controle do tabaco que me fizeram perceber que precisamos abordar o problema de forma sistêmica. E é isso que o conceito de determinantes comerciais da saúde faz. Tivemos muitos progressos no controle do consumo de tabaco. No meu país, o Reino Unido, temos algumas das melhores políticas de controle do tabaco do mundo. A indústria do tabaco e o consumo de tabaco foram problematizados. Temos grupos de pesquisa fortes, organizações da sociedade civil fortes…
No entanto, a última grande política que implementamos – embalagens genéricas para produtos de tabaco – demorou oito anos para ser aprovada. Oito anos de luta intensa contra a indústria do tabaco.
Se são necessários oito anos para aprovar uma política num país como o meu, que tem todos esses recursos, mesmo que saibamos que todos os dias pessoas morrem pelo tabagismo, temos de mudar o sistema.
Não podemos nos dar ao luxo de continuar esperando. O planeta está morrendo, as pessoas estão morrendo.
E muitas pessoas veem apenas algumas peças do quebra-cabeça. Com a Série Lancet, tentamos mostrar o quadro geral. Por exemplo, as empresas do fumo não influenciam só as políticas de controle do tabaco. Elas trabalham com outras empresas para promover a desregulamentação por um lado, e dificultar a aprovação de políticas de saúde pública por outro.
Todas as empresas promoveram o neoliberalismo. O neoliberalismo não surgiu do nada. Foi um projeto deliberado dessas corporações e dos muito ricos. Eles pressionaram por essa mudança. Financiaram escolas de negócios, criaram think tanks, como o Instituto Adam Smith, e eventos, como o Fórum Econômico Mundial, para promover a economia neoliberal. Deu certo: embora o neoliberalismo tenha sido inicialmente visto como um conceito bastante louco, tornou-se totalmente dominante.
No Brasil, a indústria do fumo pressiona pela liberação dos dispositivos eletrônicos de fumar, que foram proibidos pela Anvisa em 2009 e, depois de anos de reavaliação, continuarão proibidos por uma nova norma, que está em consulta pública. Qual a sua avaliação dos dispositivos eletrônicos?
É complicado. Fumar é extremamente prejudicial: mata dois em cada três usuários. Quase todos os fumantes se arrependem de ter começado e querem parar de fumar. Temos produtos médicos que ajudam as pessoas a parar de fumar, mas, também, sabemos, por meio de estudos, que os cigarros eletrônicos podem ajudar os fumantes a parar de fumar. Na verdade, a última revisão sugere que os cigarros eletrônicos ajudam os fumantes a deixar de fumar e são tão eficazes quanto os melhores produtos farmacêuticos nesse aspecto, embora a maior parte desses estudos tenham sido feitos em países ricos. Acontece que os produtos farmacêuticos são conhecidos por serem seguros, mas ainda não podemos dizer o mesmo dos cigarros eletrônicos. Então, se eu fosse fumante, primeiro tentaria parar de fumar usando produtos médicos.
Mas não podemos olhar para os cigarros eletrônicos apenas da perspectiva individual. O maior problema é o que acontece na população em geral. E aqui existem alguns padrões preocupantes. Estamos vendo um grande número de jovens consumindo cigarros eletrônicos em países onde eles são legalizados. Na Inglaterra e também na Irlanda, alguns dados sugerem que o tabagismo entre os jovens pode estar aumentando após décadas de declínio.
A melhor maneira de entender isso é olhar para a indústria do tabaco. Essa enorme indústria está sob ameaça porque o controle do tabaco tem sido bem-sucedido e as taxas de tabagismo em todo o mundo diminuíram. Durante algum tempo, a indústria não se preocupou muito porque, embora as taxas de consumo de tabaco estivessem caindo, a rentabilidade por cigarro estava aumentando.
Até que se chega a um ponto em que esses lucros começam a ser ameaçados. E, aí, a indústria do tabaco começou a reagir. As grandes empresas de tabaco começaram a vender cigarros eletrônicos e um tipo diferente de produto – um dispositivo de tabaco aquecido, inicialmente o IQOS, da Philip Morris, mas, agora, todas as empresas têm esses produtos de tabaco aquecido.
Nos documentos internos que essas empresas foram obrigadas a divulgar, se vê que elas sabiam que os jovens já não fumavam devido aos riscos para a saúde. Então, eles precisavam de novos produtos para atrair essa clientela – e criar uma nova geração de usuários. É aqui que entram os cigarros eletrônicos e o tabaco aquecido. Eles são absolutamente direcionados aos jovens e são altamente viciantes.
Os dados que você menciona são do governo?
Na Inglaterra temos diferentes conjuntos de dados sobre o tabagismo – alguns do governo e outros não. Aquele que mostra taxas crescentes entre os jovens não é um inquérito governamental, mas está mais atualizado do que os dados governamentais. Uma análise destes dados sugere que a razão para o aumento [do tabagismo entre jovens] pode ser a covid-19 e o confinamento durante a pandemia. Pessoalmente, penso que isso é improvável, porque uma época em que os jovens estão trancados em casa com os pais seria um momento incomum para começar a fumar. A Irlanda também registrou um aumento, dados da Austrália também sugerem isso. Portanto, há sinais de alerta.
Mas temos esse dilema, porque queremos ajudar os fumantes a parar de fumar – e se os cigarros eletrônicos ajudam, então, é bom dar aos fumantes acesso aos cigarros eletrônicos. Ao mesmo tempo, não queremos criar uma nova epidemia de tabagismo.
O Reino Unido é o grande exemplo da indústria do tabaco. Os executivos dessas empresas afirmam, há anos, que o Brasil deve imitar o Reino Unido por ser um país que tem um sistema universal de saúde – que inspirou o nosso SUS – e liberou os cigarros eletrônicos, que são vistos como parte da estratégia de cessação do consumo de cigarros tradicionais…
Sim, a indústria do tabaco e os seus aliados usam o Reino Unido como exemplo. Mas as coisas não vão muito bem no Reino Unido. Não é realmente um sucesso. Sabemos que, no nível individual, os cigarros eletrônicos podem ajudar os fumantes a deixar de fumar, mas o que está acontecendo no nível populacional é diferente. E isso num ambiente altamente regulado e com forte fiscalização.
E sei, por trabalhos anteriores no Brasil, que as políticas de controle do tabaco aqui não são bem aplicadas. Portanto, os cigarros eletrônicos têm potencial de serem mais perigosos nos países de renda média e baixa, onde não existem recursos para fazer cumprir as políticas de saúde. Os governos precisam ter cuidado. Adotar uma abordagem preventiva é sensato.
Mas o problema é que este debate se tornou tão inflamado, com a indústria do tabaco manipulando argumentos e tentando dividir a comunidade da saúde pública, que pessoas como eu são simplesmente atacadas. Mas – como eu disse – eu não sou contra os cigarros eletrônicos, acho que eles podem desempenhar um papel no contexto certo, com a regulamentação certa – contanto que você também tenha políticas abrangentes de controle do tabaco.
Mais: que essas políticas estejam sendo aplicadas e fiscalizadas. Se esse não for o seu contexto, fazer com que os cigarros eletrônicos funcionem será muito mais difícil – podendo ser mesmo impossível. E a ideia de que, de repente, esta é a solução para a epidemia de tabagismo, que tudo o que precisamos agora são de cigarros eletrônicos e o problema está resolvido… Isso é simplesmente mentira.
E você acha que em países de renda alta os cigarros eletrônicos deveriam ser tratados da mesma forma que alguns medicamentos são? Com prescrição médica, etc.?
Sim. Esse é o modelo que eles estão adotando na Austrália, por exemplo. A ideia é que os cigarros eletrônicos com nicotina estejam disponíveis mediante receita médica. E talvez esse seja um modelo que possa funcionar. Na minha opinião, temos de utilizar essas experiências, utilizar esses países de rendimento elevado como laboratórios mesmo para ver o que acontece. Pra ver se há alguma opção regulatória que possa funcionar. Ainda não sabemos.
Fonte: Brasil de Fato