Crianças palestinas definham com o cerco imposto por Israel, que alastra rapidamente doenças. Fragilizados pela desnutrição, pequenos podem estar sendo condenados à morte pela destruição dos hospitais do enclave
por Peoples Health Dispatch – Quinta, 29 de fevereiro de 2024
Do People’s Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda
Na tarde de terça (27/2), um representante da ONU afirmou que “um quarto da população de Gaza” – cerca de 600 mil pessoas – “está à beira da fome”. Ele revelou também que, na falta de ajuda humanitária, uma parte dos habitantes do enclave vem se alimentando de “folhas, feno para burros e restos de comida”. À noite, o Ministério da Saúde de Gaza confirmou a morte de 6 crianças por “desidratação e desnutrição”. A reportagem que se segue, do People’s Health Dispatch apresenta em mais detalhes o que têm vivido os palestinos, um povo agredido. A leitura é forte – e ressalta a urgência imediata de um cessar-fogo na Palestina. (G. A.)
Os indicadores nutricionais das crianças da Faixa de Gaza estão caindo em um ritmo sem precedentes desde o início dos ataques israelenses em 7 de outubro do ano passado. Sem um cessar-fogo, uma grande fome devastará o enclave a partir de maio, alertou o Programa Alimentar Mundial (PAM).
Em um novo relatório baseado em dados coletados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela UNICEF, o Cluster Global da Nutrição identificou que que 15% das crianças de até 2 anos na parte norte de Gaza passam por desnutrição aguda e 3% delas estão definhando – seus músculos se atrofiam e sua massa corporal decresce rapidamente, pela total falta de alimento.
Os números na parte sul, que inclui Rafah, cidade para onde foi deslocada a maior parte da população de Gaza, são algo menores, mas ainda representam uma situação muito pior que a de antes de 7 de outubro. O relatório indica que, em janeiro, 5% das crianças de até 2 anos em Rafah estavam passando por desnutrição aguda. Antes, menos de 1% das crianças de até 5 anos de toda a Faixa de Gaza viviam esse quadro.
O cenário geral de desnutrição está criando a tempestade perfeita para um surto de doenças transmissíveis, que pode elevar o número de crianças mortas por Israel a um patamar ainda mais devastador. A maioria das crianças só têm tido acesso a uma alimentação pouquíssimo variada, e seus corpos estão ficando mais vulneráveis a sintomas que poderiam ser tratáveis, como a diarreia. A falta de água potável, que afeta todos os lares de Gaza, diminui mais ainda a chance de tratar essas condições.
As crianças não são o único grupo afetado pela falta de comida. Pais, e mesmo mães grávidas, estão “pulando refeições” para alimentar seus filhos. Cerca de 95% das grávidas e lactantes de Gaza não estão comendo o suficiente. Quando comem, são alimentos de baixo valor nutricional, o que piora os efeitos da anemia e prejudica a saúde materna.
O PAM documentou muito dessa situação, mas seu trabalho de entrega de ajuda humanitária no norte de Gaza foi suspenso, já que as forças de ocupação não garantem condições de segurança para essas atividades. A ajuda que entra pelo sul de Gaza é apenas uma fração do que é necessário, e os efeitos da desnutrição estão se exacerbando por conta da destruição da infraestrutura de saúde.
Para Israel, hospitais são alvo
Nenhum hospital ou centro de saúde foi poupado nesse processo, e também foram registrados ataques contra a infraestrutura civil onde os trabalhadores da saúde e seus familiares buscam abrigo. No mais recente desses ataques, as Forças de Ocupação de Israel (FOI)* alvejaram uma casa onde se encontravam 64 membros da Médicos Sem Fronteiras (MSF) com suas famílias. O prédio estava claramente identificado com uma bandeira da MSF e as FOI haviam sido informadas de sua presença, mas mesmo assim o atacaram, matando várias pessoas.
De acordo com a MSF, as ações de Israel “demonstram um completo desprezo pela vida humana e uma falta de respeito pela missão médica. Isso torna impossível manter as atividades médicas e humanitárias em Gaza”.
Com a persistência dos ataques das FOI, as bombas são seguidas por ordens de evacuação e cercos, que comprometem ainda mais a saúde de doentes e feridos. Ao comentar os recentes casos de evacuação de hospitais em Gaza, a representante da MSF Guillemette Thomas revelou que pacientes sem a menor condição de se deslocar estão sendo obrigados a fugir a pé, de cadeira de rodas ou até amarrados em camas hospitalares.
Essa situação eleva o risco de infecção e reduz as chances de recuperação, afirmou Thomas. “Isso pode ser extremamente perigoso para eles. Quando uma pessoa com uma fratura na perna começa a andar, ela compromete as possibilidades de recuperar sua mobilidade e pode sofrer consequências que ameaçam sua própria vida”.
Mesmo depois da maioria dos pacientes, médicos e refugiados fugirem, as forças israelenses continuam cercando os hospitais. No dia 22 de fevereiro, após um mês de cerco e bombardeio sobre o hospital Al-Amal, em Khan Younis, as FOI acabaram por danificar os equipamentos de comunicação da instituição, que são utilizados pelo Crescente Vermelho Palestino para contactar e despachar equipes. Esse é só mais um exemplo de uma série de ações de Israel contra o Crescente Vermelho Palestino, que se segue ao sequestro de vários de seus funcionários, à destruição de ambulâncias enviadas para o resgate de crianças e à realização de incursões no hospital al-Amal, que inutilizaram materiais hospitalares e veículos.
A destruição do hospital Nasser
No hospital Nasser, a situação não é nada melhor. Mesmo depois que a OMS e as demais organizações finalmente conseguiram adentrar o complexo hospitalar para evacuar uma parte dos pacientes que haviam ficado para trás após a violenta incursão israelense, mais de 100 pacientes incapazes de se mover e uma dúzia de trabalhadores da saúde que lhes ofereciam cuidado ainda não conseguiram sair.
A agência de saúde da ONU só recebeu permissão para entrar no hospital Nasser no início da semana passada, após várias tentativas serem bloqueadas pelas forças de Israel. “Antes dessa missão, a OMS recebeu duas negativas consecutivas ao tentar acessar os hospitais para fazer avaliações médicas, o que atrasou transferências urgentes de pacientes. Pelo menos cinco pacientes morreram na Unidade de Tratamento Intensivo antes que as transferências fossem possíveis”, disse a organização em um pronunciamento.
Ao voltar do hospital Nasser, funcionários da OMS afirmaram que o cenário de destruição era indescritível. “Gaza se tornou uma zona de morte”, disse o diretor-geral da OMS Tedros Adhanom Ghebreyesus.
* As forças armadas israelenses se autodenominam Forças de Defesa de Israel (FDI). Contudo, seu papel muito mais voltado para a ocupação ilegal de territórios da Palestina do que para uma suposta “autodefesa” da entidade sionista leva movimentos populares e instituições humanitárias a denominarem-nas Forças de Ocupação de Israel (FOI), como escolheu fazer o autor desta matéria e a tradução decidiu respeitar.
Fonte: Outra Saude / Foto: Ibraheem Abu Mustafa