Secretários da Saúde e Ciência & Tecnologia, junto do ex-ministro Temporão, debatem trajetória e perspectivas da proposta. Maior acerto que governo pode ter, eles avaliam, é torná-la eixo central da nova industrialização do Brasil
por Guilherme Arruda – Quinta, 28 de fevereiro de 2024
No histórico evento da Conferência Livre, Democrática e Popular de Saúde, o movimento sanitarista entregou a Lula uma carta-compromisso em que o convocava a defender o “fortalecimento do papel do Estado na indução e sustentação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)” em seu programa de governo. Eleito, o então candidato honrou seu compromisso com a Saúde em seu primeiro ano de gestão ao iniciar a reconstituição de um andaime institucional que poderá levar o CEIS a um novo patamar de relevância e utilidade para a população.
A tarefa, porém, está longe de ser concluída apenas com esta série de decretos, portarias e anúncios iniciais. Nos anos que se seguem, ainda é preciso acumular massa crítica e planejar em profundidade os rumos que tomará esse impulsionamento do CEIS, em especial quando pensado como um dos eixos centrais da nova industrialização brasileira, como propõe o governo.
Um instigante debate promovido na quinta-feira (22/2) pela Fundação Maurício Grabois reuniu José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, Carlos Gadelha, titular da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Ministério da Saúde (SECTICS/MS), e Julieta Palmeira, assessora da Finep no Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), para colaborar com essa construção coletiva de reflexões.
Suas intervenções, que cobriram temas como a história da luta pela soberania sanitária no Brasil, as concepções que estruturam a estratégia do atual governo para o CEIS e a “interministerialidade” necessária para os trabalhos, ofereceram um quadro aprofundado sobre de onde vem e para onde vai o Complexo, que Gadelha definiu como “uma política de reconstrução nacional tendo como vetor crítico a Saúde”.
A luta pela soberania da Saúde brasileira tem história
Em uma fala focada na trajetória das ações governamentais que apoiaram – ou fizeram regredir – a solidificação de uma indústria farmacêutica nacional, José Gomes Temporão, relembrou que, apesar de ter “aflorado com intensidade na pandemia”, esse “é um debate que atravessa décadas da história do Brasil, atravessando tensões entre modelos distintos de desenvolvimento, autonomia e soberania”.
O quadro histórico traçado pelo médico sanitarista merece ser ouvido em sua íntegra. Partiu-se da criação de institutos como Butantan, Oswaldo Cruz e Adolfo Lutz no início do século XX às iniciativas mais recentes como a Farmácia Popular e a quebra da patente do efavirenz, passando por ações do governo Jango e do período da redemocratização.
Essa soma centenária de esforços foi decisiva para que, hoje, o Brasil não esteja partindo do zero ao trabalhar pela consolidação definitiva da produção autônoma de medicamentos, vacinas e outros insumos essenciais para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Por outro lado, lembrou Temporão, já houve momentos em que as farmacêuticas estrangeiras conseguiram impor suas vontades ao Brasil. Entre eles, o pesquisador formado na UFRJ destacou a revogação da Lei de Remessa de Lucros do governo Jango pela ditadura militar e a criação da Lei de Patentes de 1996 por FHC, que significou a “desestruturação da indústria farmacêutica nacional” de então — à diferença, como contou Outra Saúde, da estratégia da Índia para enfrentar o TRIPS.
Ele também frisou que ainda hoje é preciso ficar alerta com a propagação de ideias que tentam impedir a “autonomia da capacidade produtiva brasileira”, muitas vezes financiadas por instituições estrangeiras.
As ações de hoje para impulsionar o Complexo
Carlos Gadelha, por sua vez, lembrou que o governo de Jair Bolsonaro também representou um grande retrocesso nesse âmbito. Ao restarem esvaziados por suas ações o departamento do MS e o grupo executivo responsáveis pelas articulações do complexo econômico-industrial da saúde, “não havia nenhuma institucionalidade interministerial para se enfrentar a vulnerabilidade da Saúde na produção de vacinas, medicamentos e ventiladores” na pandemia, com resultados trágicos.
Porém, considera o secretário, a retomada das ações pró-CEIS “não passa por uma volta ao passado, mas por provocar o futuro”. Nesse sentido, ele frisa que “desenvolver pela Saúde” é o que há de novo na atual abordagem, e que a nova Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, lançada em setembro pelo governo, “não é apenas mais uma política tecnológica e de inovação, mas uma política de reconstrução nacional tendo como vetor crítico a Saúde”.
Hoje, ele aponta, “não há nada mais industrial que um grande hospital” e “não se faz mais nada no campo da saúde sem soberania econômica, tecnológica, produtiva”. Por isso, Gadelha considera que o governo toma um importante passo ao “aliar a soberania ao direito à vida” e criar um “novo projeto nacional de desenvolvimento que tem a vida como ponto de partida e chegada”.
Não é menor, diz o titular da SECTICS, que a Saúde seja uma das apenas seis missões prioritárias do Nova Indústria Brasil. Igualmente inovador, considera o economista carioca, é a decisão de entregar a “coordenação de uma política econômica para um ministério” normalmente visto como voltado para a política “social”, como é o MS.
Porém, afirma Gadelha, mais correto é “acabar com a barreira entre política econômica e social”. “Produzir vacinas, por exemplo, é política econômica ou social? As duas coisas”, ele provoca.
A ‘interministerialidade’ do CEIS
Também concentrando sua fala na análise das ações do atual governo, Julieta Palmeira, assessora da Presidência da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep/MCTI) para assuntos do Complexo Econômico Industrial da Saúde, destacou que o esforço conjunto entre diversas áreas da gestão é uma de suas principais características.
Uma das provas, ela avalia, foi a ampliação do GECEIS, espaço de formulação de ações que estimulem o fortalecimento do complexo, que hoje conta com a participação de vinte e um ministérios em suas atividades – antes, eram quinze. Particularmente importante, acredita a ex-presidente da Bahiafarma, tem sido o engajamento do MCTI nessa tarefa, que se expressou em uma série de ações ao longo do último ano.
Uma delas foi a inclusão do CEIS na decisão que estabeleceu as diretrizes para a nova Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. O texto da portaria nº 6.998/2023 prevê esforços para a “estruturação e expansão de complexos industriais-tecnológicos em áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional, como as áreas da saúde”.
Por sua vez, a própria Finep, enquanto empresa pública do MCTI voltada para o financiamento de projetos de inovação tecnológica, também deve contribuir por meio da injeção de recursos em iniciativas ligadas ao CEIS. Hoje, aponta Palmeira, a Finep é “um importante financiador na área de recursos não-retornáveis” e pretende aportar R$250 milhões para tais projetos.
As perspectivas de futuro
Ao comentar outras diretrizes que os planos do CEIS devem incorporar, Julieta Palmeira frisou a importância de que eles levem em conta a centralidade de “capilarizar o desenvolvimento local”. Para a médica, a inauguração da planta da Hemobrás em Pernambuco foi um primeiro passo nesse sentido, ao levar uma indústria estratégica para fora do Sudeste – mas, para o futuro, é preciso pensar em ainda mais integração.
“Quero ver o Butantan trabalhando com a Bahiafarma e a Fiocruz trabalhando com os institutos científico-tecnológicos de Pernambuco”, ela explica.
O ex-ministro Temporão também demonstrou seu otimismo com o futuro do CEIS. “Temos o SUS e a maior base produtiva da América Latina. Há um grande poder e compra do Estado: 40% do mercado farmacêutico, 95% do mercado de vacinas e 50% do mercado de equipamentos para diagnósticos e tratamentos são compras públicas. Reunimos todas as condições para ter um projeto próprio”, ele avalia.
Já Carlos Gadelha comentou que os trabalhos para o desenvolvimento do CEIS deverão ser pensados a partir de como contribuir a longo prazo para o enfrentamento de dois grandes desafios: a preparação para as próximas emergências sanitárias e crises de saúde pública e a solução dos principais agravos e doenças que acometem a população brasileira.
A concretização dos planos de expansão do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, fundindo o desenvolvimento econômico com a promoção de justiça social e o fortalecimento do SUS público, significarão “Celso Furtado e Sérgio Arouca se dando as mãos”, concluiu.
Fonte: Outra Saude / Foto: Itamar Crispim/Fiocruz