Ampliar distribuição gratuita de remédios pelo Estado – conquista do movimento da Aids – é caminho para fortalecer o SUS e os brasileiros, diz GTPI. Mas comprar menos da Big Pharma, via quebra de patentes e indústria nacional, é urgente
Com o texto que agora apresenta a seus leitores, Outra Saúde inaugura uma nova coluna mensal: Saúde não é mercadoria será um espaço construído em parceria com o Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual, o GTPI. Ligado à Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), o GTPI reúne organizações que lutam pelo direito à Saúde e acompanham, em profundidade, os abusos que as corporações farmacêuticas, por meio das patentes de medicamentos que possuem, impõem a populações e governos de países como o nosso. Seu acúmulo sobre a contradição entre a luta pelo acesso a medicamentos e o regime de propriedade intelectual vigente no Brasil e no mundo é valioso – e se conecta diretamente aos temas debatidos diariamente neste boletim.
Nesta primeira coluna, a coordenadora do GTPI e o vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), uma das entidades que impulsionam o Grupo, ressaltam categoricamente: quanto menos patentes farmacêuticas em vigor, menos recursos do Sistema Único de Saúde são enviados à Big Pharma. Não poderíamos utilizar esse orçamento para salvar mais vidas e erguer o complexo econômico-industrial da Saúde? Para o atual momento de reconstrução do SUS, é um debate de primeira importância. Boa leitura! (G. A.)
Título original: A Luta pela Vida: Determinantes Comerciais e a contribuição do Movimento Social de AIDS no Acesso à Saúde
Por Susana van der Ploeg e Veriano Terto Jr., para a coluna Saúde não é mercadoria
O movimento social de AIDS se empenha, desde os anos 1980, em promover e desenvolver os princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS), como universalidade, integralidade e equidade de acesso aos serviços de saúde, sem qualquer forma de discriminação. Destaca-se por ter, no cerne de suas ações, a luta por uma assistência farmacêutica eficaz e acessível. O pleno acesso a medicamentos assumiu papel central na agenda do movimento social de AIDS, pois, mais do que simples recursos terapêuticos, determinam a vida ou a morte. Seus ativistas se engajaram no movimento por sobrevivência.
Com o surgimento dos primeiros Antirretrovirais (ARVs) eficazes no controle do vírus HIV, no final da década de 1980 – notavelmente em um contexto de abertura democrática e promulgação de uma nova Constituição –, a esperança mobilizou a sociedade. Surgiram organizações não governamentais dedicadas à democratização da informação sobre medicamentos, à “pedagogia do tratamento”, ao monitoramento de pesquisas clínicas e ao acompanhamento de novos medicamentos promissores.
A demanda pelo fornecimento de ARVs tornou-se uma das principais bandeiras do movimento de AIDS. A Lei 9.313 de 1996, que garante a distribuição gratuita de medicamentos às pessoas vivendo com HIV/AIDS, representa uma conquista significativa da sociedade brasileira. No entanto, é crucial nos manter vigilantes e mobilizados, pois os avanços e garantias sociais estão sempre ameaçados.
Importantes vitórias do movimento social de AIDS, assim como do ativismo pelo SUS, correm risco. Os retrocessos se materializam pelo fim do piso constitucional no financiamento da saúde, a “PEC do plasma”, que permite a comercialização do sangue humano, e o “PL das Cobaias Humanas”, que destrói o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.
Neste artigo discutiremos problemas e barreiras no acesso a medicamentos no SUS. Em particular, examinaremos como o Ministério da Saúde se encontra refém das corporações farmacêuticas transnacionais. Defenderemos a necessidade dele fortalecer a saúde pública, resistir às pressões e encarar a verdade de que não há voluntarismo (ou boa vontade) por parte das empresas farmacêuticas.
A excelência da resposta ao HIV/AIDS no Brasil se deu com a distribuição pública dos antirretrovirais (Lei 9.313/1996) e com a sua produção nacional, via engenharia reversa, daqueles já lançados no mercado internacional. O Brasil, até 1997, não concedia patentes a produtos e processos farmacêuticos: essa foi a razão do Brasil ter se tornado referência internacional. Desta forma, foi possível, dentro da legalidade, a produção a baixo custo de medicamentos vendidos a preços exorbitantes e proibitivos no mercado internacional, garantindo amplo tratamento às pessoas com HIV/AIDS no Brasil (Chaves et al., 2008).
Entretanto, este cenário nacional de busca pela integralidade e universalidade no acesso ao tratamento entra em conflito com o sistema internacional de propriedade intelectual, implementado pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS). Esse documento vinculante tornou todos os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) obrigados a conceder patentes em todos os campos tecnológicos, incluindo medicamentos e vacinas. Esse acordo é fruto de uma aliança entre o governo norte-americano e corporações transnacionais e impacta severamente o acesso a tratamentos essenciais, especialmente em países pobres (Villardi, Fonseca, 2017).
No Brasil, a legislação atual – Lei 9.279/1996 – foi implementada sob forte pressão do governo dos Estados Unidos e com intenso lobby das corporações farmacêuticas do Hemisfério Norte (Reis, 2015). Diante desse contexto, é difícil aceitar a premissa de que esses atores buscavam genuinamente o bem social dos países.
A patente farmacêutica é vantajosa para essas corporações, pois bloqueia a concorrência e maximiza lucros a partir do monopólio. A decisão sobre produção, venda e precificação fica na mão de uma única empresa. As patentes servem para impedir a produção e não para produzir, são uma forma de colonização e aumento das desigualdades pela dominação do mercado. Assim, a patente não é benéfica para as populações que dependem do acesso a medicamentos e ameaça suas vidas com preços inacessíveis. Elas intensificam desigualdades, deixando os mais vulneráveis à mercê de um sistema controlado por países ricos e corporações transnacionais.
A epidemia de AIDS revelou de forma contundente o descaso das corporações farmacêuticas pela vida daqueles que não podiam arcar com os preços proibitivos e exorbitantes dos antirretrovirais. A ganância e o racismo levaram à morte 10 milhões de pessoas que conviviam com o vírus no Sul Global (ver o filme “Fogo nas Veias”) (Villardi, Fonseca, 2017).
O impacto das patentes farmacêuticas sobre a saúde dos povos não é algo novo, sendo discutido durante as negociações que culminaram no Acordo TRIPS, resultando em salvaguardas da saúde pública. Em 2001, no auge desta crise de saúde global, a Declaração de Doha estabeleceu, de forma explícita, a primazia do direito à saúde sobre as regras de comércio internacional, reforçando o papel destas salvaguardas. Entretanto, a recente e avassaladora pandemia de covid-19 demonstrou, mais uma vez, como os monopólios matam. Também aprofundou o problema de deixar para um organismo internacional de comércio e corporações farmacêuticas as decisões sobre a saúde pública. Além de revelar a importância da produção local de insumos farmacêuticos ativos, medicamentos e vacinas.
Como apontaram Carlos Gadelha e o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, apenas 10 países detêm quase 90% das patentes em saúde global, com as grandes empresas do complexo produtivo sendo predominantemente originárias de nações do Norte Global. Esse cenário resulta em uma forte dependência de importações para atender às necessidades do SUS, o que coloca em risco sua sustentabilidade (Gadelha, Temporão, 2018). Torna países, como o Brasil, em “meros consumidores de tecnologia enquanto outros definem o padrão tecnológico global, exercendo um domínio geopolítico que se desdobra para as políticas sociais” (Gadelha et all, 2018). Não podemos aceitar que laboratórios públicos brasileiros tenham como missão envazar princípios ativos importados.
É preciso criar as condições para desenvolver vacinas e outros medicamentos rapidamente, com pesquisas e muito investimento. Contudo, em vez de investir em ações de saúde que poderiam beneficiar um maior número de pessoas, os governos acabam tendo que destinar uma parte significativa de seus recursos para pagar altos preços por medicamentos. Isso ocorre devido à dependência dos sistemas de saúde pública em relação às corporações farmacêuticas transnacionais, que muitas vezes impõem preços elevados aos seus produtos, limitando assim a capacidade dos governos de fornecer medicamentos de forma acessível e sustentável para a população.
Não importa a demanda, sejam 500 pessoas ou mais de 500 mil, o monopólio é prejudicial. No Brasil, foi incorporado neste ano o fostensavir, medicamento que representa uma esperança para 500 pessoas com HIV multirresistente (segundo o Ministério da Saúde, esse número pode ser maior), mas teve o tratamento mensal estabelecido a aproximadamente R$ 11.500. Por sua vez, o dolutegravir, medicamento essencial para as pessoas que vivem com HIV/AIDS, utilizado cotidianamente por mais 500 mil pessoas no Brasil, é comprado pelo Ministério da Saúde por um preço 7 vezes maior, levando-se em conta despesas gerais e lucros calculados em 50% sobre o custo de produção.
O dolutegravir, que já teve produção de genérico via Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre a Lafepe e Blanver, hoje é comercializado por meio de uma Aliança Estratégica entre a empresa ViiV-GSK e a Fiocruz. Este contrato de transferência de tecnologia não tem razão de ser, uma vez que já detínhamos a tecnologia no Brasil, além de ser um acordo secreto entre uma corporação transnacional com imenso poder e um laboratório farmacêutico público. Este ato de voluntarismo ou “boa vontade” da ViiV/GSK, em transferir tecnologia a Fiocruz, impede a produção e distribuição 100% nacional do medicamento via uma política pública, a PDP.
Em ambos os casos quem estipula o preço desses medicamentos é a empresa ViiV-GSK, mas não sabemos responder à importante questão: o que justifica o preço dos medicamentos?
Esta é uma questão que permanece sem resposta, em razão da ausência de transparência do mercado farmacêutico, o que deixa tanto as pessoas como os sistemas de saúde em situação de vulnerabilidade.
Diante desta realidade não podemos defender o voluntarismo ou a “boa vontade” daqueles que perseguem o lucro e em vários momentos da história demonstram não se importar com a vida. Não temos acesso à informação sobre os valores em investimento em pesquisa e desenvolvimento, aos custos dos ensaios clínicos, aos custos de produção e distribuição, a contribuição financeira de entidades públicas e privadas, aos valores utilizados no marketing e nem mesmo aos preços que são praticados em outros países.
O Ministério da Saúde tem a responsabilidade urgente de exigir transparência e prestação de contas das farmacêuticas, assegurando que os interesses dos cidadãos prevaleçam sobre os lucros corporativos. A luta do movimento social de AIDS nos ensinou que a saúde não pode ser tratada como uma mercadoria. Com ênfase nas dimensões éticas e políticas da solidariedade, fica evidente que sem o enfrentamento das patentes, não haverá acesso universal aos medicamentos.
Mesmo com um governo progressista liderado pelo presidente Lula, torna-se crucial revitalizar a mobilização social e promover uma solidariedade ativa. Precisamos defender vigorosamente a primazia do bem-estar coletivo, da saúde, sobre interesses comerciais. Também é preciso lutar pelo desenvolvimento de uma ciência justa comprometida com os interesses da vida e não com os imperativos do mercado, visando alcançar uma soberania nacional em saúde. Ao recordar as palavras do presidente Lula, em 2007, durante a cerimônia de assinatura do Decreto do Licenciamento Compulsório do efavirenz – “entre o nosso comércio e a nossa saúde, vamos cuidar da nossa saúde” –, ressaltamos a importância de reiterar: Saúde não é mercadoria! É nosso anseio que as palavras do presidente sejam efetivamente refletidas nas políticas públicas de acesso à medicamentos.
Fonte: Foto: Rede Brasil Atual /Foto: Rede Brasil Atual