É possível, com uma só medida, ampliar o acesso da população a medicamentos, fortalecer a indústria de genéricos e questionar os desmandos das grandes farmacêuticas? Ampla reforma da Lei de Patentes do país asiático sugere que sim
Ao caminhar para deixar de ser um “país menos desenvolvido” em 2026, segundo a classificação das Nações Unidas, Bangladesh se viu em uma encruzilhada para sua Saúde Pública. Isso porque, devido às normas do Acordo TRIPS, tratado da Organização Mundial do Comércio (OMC) que rege as questões de propriedade intelectual no mundo, ele deixará de possuir certas prerrogativas que facilitam o acesso a medicamentos para Estados pobres por meio do relaxamento das patentes farmacêuticas que encarecem esses produtos.
Em uma populosa nação que conta com 170 milhões de habitantes em uma área 58 vezes menor que a do Brasil, além de apenas um quinto de seu PIB, a questão é bastante séria. Bangladesh não reúne os recursos exigidos para comprar os medicamentos de que sua população precisa nos altos preços praticados pelos monopólios farmacêuticos do Norte Global.
Buscando contornar o problema por meio do estímulo à produção de medicamentos genéricos pela sua indústria nacional, o país adotou no fim do ano passado uma ousada legislação que põe critérios rigorosos para a concessão de patentes farmacêuticas — sem, com essa medida, quebrar as regras do Acordo TRIPS.
O South Centre, uma organização intergovernamental de apoio ao desenvolvimento de países do Sul Global, assessorou a construção da nova lei, denominada Patents Act of Bangladesh. O advogado indiano Nirmalya Syam, chefe do Programa de Saúde, Propriedade Intelectual e Biodiversidade do South Centre, participou dessa assessoria e contou a Outra Saúde detalhes do notável passo da nação asiática, a história de sua luta por soberania sanitária e os seis pontos mais progressistas de sua nova legislação.
Apesar de Bangladesh estar a 16 mil quilômetros do Brasil, a notícia é de sumo interesse no contexto político da busca por impulsionar o complexo econômico-industrial da saúde (CEIS). Ela sugere que é possível baratear remédios para a população, fomentar a indústria nacional e enfrentar os desmandos dos monopólios globais com uma só medida: a mudança de atitude frente à concessão indiscriminada de patentes farmacêuticas no país.
O contexto da nova lei
As discussões sobre a modificação já haviam se iniciado há alguns anos, conta Nirmalya, quando Bangladesh começou a se preparar para a elevação de “país menos desenvolvido” para “país em desenvolvimento” por meio da adequação de suas leis. O Acordo TRIPS pede que os Estados enquadrados nessa segunda categoria concedam maior proteção às patentes, sob a lógica – bastante questionável – de que eles não precisariam mais de condições especiais para acessar produtos de saúde como medicamentos e vacinas, como seria o caso das nações mais pobres.
Naquele momento, foi promulgado o Bangladesh Patents Act, 2022, uma primeira reformulação do Patents and Designs Act, 1911, a centenária legislação do período da colonização britânica que ainda orientava a concessão de patentes pelo Estado.
“A lei britânica permitia, essencialmente, a concessão de patentes a qualquer produto. Ela era muito frouxa em termos do padrão de patenteabilidade, não havia exigências rigorosas. Qualquer coisa sob o sol poderia ser patenteada”, avalia o consultor do South Centre.
Contudo, a versão final da lei de 2022 foi bastante criticada. Faltava nela um “uso efetivo das flexibilidades do Acordo TRIPS ligadas à saúde pública”, de acordo com uma análise de Nirmalya divulgada no SouthNews. As chamadas flexibilidades do TRIPS consistem em permissões conquistadas pelos países em desenvolvimento nas negociações do acordo para “contornar” as patentes de medicamentos – ou outros produtos – em emergências de saúde e demais situações em que isso seja necessário.
No formato aprovado, por não prever a utilização dessas flexibilidades, a lei acabaria favorecendo desnecessariamente o lucro das empresas farmacêuticas e encarecendo o preço dos remédios no país.
Com a assessoria do South Centre, uma segunda reforma da legislação foi feita, e sua versão aprovada tornou-se o Bangladesh Patents Act, 2023. Seu texto (só disponível em bangla, a língua oficial do país), que recebeu o aval do parlamento local em outubro passado, incluiu muitas sugestões que o fizeram “aproveitar melhor o potencial de crescimento robusto da indústria farmacêutica de Bangladesh e protegê-la do período de transição das regras do Acordo TRIPS”, diz a análise. O consultor explicou, ponto por ponto, o que há de novo na lei, que entrará em vigor quando a nação se graduar para “país em desenvolvimento”, em janeiro de 2026.
Modificações de sentido progressista
As mudanças adotadas podem ser resumidas em seis principais ações, explica Nirmalya. Em primeiro lugar, a nova peça legislativa introduziu critérios mais rigorosos para a aceitação de pedidos de patente. Entre esses critérios, há a definição de que “a mera descoberta de uma nova propriedade ou um novo uso de uma substância que já é conhecida não é patenteável”, conta o advogado.
“A meu ver, a cláusula introduzida é um avanço até mesmo em relação à seção 3D”, ele diz, referindo-se a um célebre trecho da Lei de Patentes da Índia – conhecida por ser uma das mais restrititivas do mundo na concessão de patentes farmacêuticas – que trata da mesma questão.
Além disso, foram criadas medidas de enfrentamento ao evergreening, a prática irregular da indústria farmacêutica de estender suas patentes por meio da introdução de alterações minúsculas no produto patenteado.
Por serem consideradas “inovações”, essas mudanças permitem que as empresas sigam lucrando com a doença alheia e impeçam a fabricação de genéricos mais baratos. Na nova lei de Bangladesh, o desestímulo a essas manobras aparece na definição de que derivados de uma substância farmacêutica serão considerados “a mesma substância” – não podendo ser objeto de uma segunda patente.
No ato de 2023, também se introduziu a exclusão dos microorganismos da patenteabilidade. A medida é especialmente importante para impedir a especulação com o preço de vacinas, já que muitas delas são feitas com vírus e bactérias atenuados. No Brasil, apesar de não haver uma liberação geral para patenteá-los, nossa Lei de Patentes ainda permite patentear microorganismos transgênicos.
“O que Bangladesh está fazendo é dizer que não haverá patentes sobre formas de vida, nem se elas forem isoladas. É muito consistente com a abordagem de patentes biológicas que o South Centre vem defendendo há bastante tempo. É um desenvolvimento muito positivo”, argumenta Nirmlaya.
Para cumprir com as novas exigências da lei, as farmacêuticas serão obrigadas a ter muito mais transparência com os produtos que comercializam em Bangladesh. Agora, será obrigatória a entrega de documentos que descrevam “de forma clara, concisa e completa” as inovações contidas neles. As descrições vagas costumam ser um truque para que a indústria reivindique que substâncias similares às que inventaram também sejam protegidas por sua patente. Será obrigatório, além disso, entregar o nome do genérico da substância no ato do pedido de patente, e não apenas seu nome comercial.
Também houve a facilitação da oposição prévia, um instrumento que “permite o questionamento à concessão de patentes frívolas que tenham sido solicitadas”, explica Nirmalya. Na nova legislação, qualquer cidadão de Bangladesh poderá manifestar sua oposição prévia nos órgãos competentes.
Com a nova lei, pelo menos seis meses deverão se passar após a entrada da solicitação de patente antes que ela seja concedida, para viabilizar a construção de oposições prévias mais aprofundadas. Os prazos curtos favorecem a indústria na Justiça de muitos países, já que quem a questiona acaba sendo obrigado a fazê-lo com argumentos jurídicos que passaram pouco tempo sendo construídos.
Uma das mais consequentes novidades da lei de Bangladesh foi a introdução de mecanismos claros para o licenciamento compulsório, a popular “quebra de patente”. O Estado bangladês terá a prerrogativa de requerer a suspensão dos direitos patentários ligados a um remédio ou uma vacina, com fins de Saúde Pública. Nesses casos, não seria necessário pagar royalties para as empresas donas da patente por seu uso, barateando significativamente sua utilização durante o surto de uma doença, por exemplo.
“As leis anteriores não diziam os termos em que se poderia emitir uma licença compulsória de uso governamental. Muitos detalhes foram adicionados, para apoiar os órgãos que tomam e implementam essa decisão”, esclarece Nirmalya. “Muitos países permitem o licenciamento compulsório, mas não o utilizam, por preocupações político-econômicas. Agora, a lei de Bangladesh oferece bastante clareza para isso”, ele complementa.
Exemplos internacionais
Não é inédito o que faz Bangladesh. Em muitos sentidos, o caminho de ação adotado pelo país é paralelo à trajetória de seu vizinho mais conhecido. A Índia, como já contou Outra Saúde em série especial de reportagens, adotou ainda em 1970 uma das legislações patentárias mais restritas do mundo, precisamente com o objetivo de garantir o acesso de sua (enorme) população aos medicamentos de que precisa. Seu enorme parque farmacêutico de genéricos, que começou a ser constituído nessa mesma época, conferiu à Índia o apelido de “farmácia do Terceiro Mundo”.
“Os dois países herdaram a mesma lei de patentes do período colonial. Mas enquanto a Índia já havia adotado uma política industrial, Bangladesh começou por uma abordagem de saúde pública”, diz Nirmalya. Ele conta que a Declaração de Alma-Ata, documento histórico surgido de uma Conferência da OMS no Cazaquistão soviético em 1978, indicava a implementação do “uso racional de medicamentos” como um dos caminhos para os países garantirem o objetivo da Saúde Para Todos.
A partir daí, Bangladesh constituiu um comitê para estudar os problemas do fornecimento de medicamentos em seu território. A investigação descobriu que “as companhias farmacêuticas estrangeiras que estavam no país vendiam muitos xaropes para tosse e vitaminas, mas não forneciam as drogas que realmente teriam um impacto positivo na saúde pública em termos de salvar vidas e enfrentar as doenças infecciosas” que afetavam a população, revela o consultor.
Ao fim de seus trabalhos, o comitê produziu uma série de recomendações, algumas adotadas pelo governo e outras não. Entre as implementadas, houve o controle do preço dos remédios e a determinação de que as empresas farmacêuticas só poderiam seguir operando no país caso oferecessem os fármacos contidos em uma lista de medicamentos essenciais, seja via produção ou importação.
“A maioria das multinacionais optou por sair de Bangladesh. Elas venderam seus bens para firmas locais e, assim, surgiu uma indústria local de remédios no país. Por isso, desde os anos 1980, a indústria farmacêutica de Bangladesh é dominada por players locais, com pouca presença de companhias estrangeiras, e que fornecem os medicamentos mais simples que atendem às necessidades cotidianas da população”, ilustra o advogado.
O que a história contada pelo diretor do South Centre significa é que o país já possuía um requisito essencial para tornar úteis as medidas adotadas em 2023: um significativo parque industrial farmacêutico nacional, principalmente no setor privado. Sem a possibilidade de fabricar o genérico, quebrar as patentes dos medicamentos poderia ser relativamente inócuo.
“A indústria farmacêutica local foi uma das maiores apoiadoras da reforma da lei. Os líderes dessas empresas manifestaram ao governo uma insatisfação com a primeira versão da legislação e mantiveram um diálogo permanente sobre a escrita do novo Patents Act”, lembra Nirmalya.
Isso não significa que agora tudo serão flores para a produção de medicamentos em Bangladesh. O consultor do South Centre acredita que a dependência de outros países para o fornecimento de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e a falta de mais pessoal qualificado para fazer a análises dos pedidos de patentes ainda são lacunas a serem enfrentadas para que o Patents Act seja plenamente eficaz.
A expectativa do governo é que, com a nova Lei, não apenas as companhias que já existem incremente sua capacidade de produção de medicamentos genéricos — o que é quase certo que aconteça –, mas que ela também possa atrair novas plantas industriais de IFAs. Um dos planos mais ambiciosos é o de se tornar um “hub regional” da produção do sofosbuvir, remédio para hepatite C cuja patente não está em vigor no país, diz Nirmalya. O ganho de escala e investimentos poderá tornar os fármacos ainda mais baratos.
O tema é de suma importância para nosso país
No Brasil, as últimas alterações da legislação patentária também ocorreram devido ao Acordo TRIPS. O tratado oferecia dez anos para que os países se adequassem a suas exigências após ratificá-lo – mas o então presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu aprovar uma nova Lei de Patentes já em 1996, apenas dois anos depois da ratificação brasileira do TRIPS.
Essa ação “afetou profundamente a nossa capacidade de desenvolvimento autóctone e estruturação de uma indústria farmoquímica nacional”, avaliou a este boletim o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. Isso porque, como explicou em entrevista recente a Outra Saúde o sanitarista e pesquisador da UFRJ Reinaldo Guimarães, a Lei de Patentes de 1996 é “absolutamente permissiva”, levando a um quadro em que “cerca de 85% das patentes depositadas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o INPI, não são de brasileiros”.
Desde então, apesar de não vivermos um cenário tão grave quanto o de outros países, devido à existência de bons laboratórios públicos – a exemplo do Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz – e alguma indústria de capital nacional, pagamos mais do que deveríamos por diversos remédios essenciais para milhões de brasileiros. Multiplicam-se casos de concessões indevidas de patentes, extensões questionáveis de sua vigência e batalhas judiciais pelo direito ao acesso a medicamentos.
Em contraste com vizinhos como a Colômbia que avançam na quebra da patente do dolutegravir, importante medicamento no tratamento do HIV, passamos anos pagando o que a empresa estrangeira nos pedia pelo produto até que um acordo permitiu que a Fiocruz o fabricasse.
Como podemos progredir
As últimas ações do governo de Bangladesh lembram um fato óbvio: nenhuma orientação de Estado é imutável. Especialmente quando carregam previsões que ferem os interesses nacionais e da população, não é impensável alterá-las. Não seria um ato de irresponsabilidade se o próprio Brasil se inspirasse na ação do país asiático e fizesse mudanças na forma com que avalia as patentes.
De acordo com a advogada Susana van der Ploeg, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), uma reforma da Lei de Patentes teria poucas chances de prosperar, visto que teria que passar pelo Congresso Nacional. Sua atual composição e liderança dificultam enormemente a concretização de um cenário em que a revisão da lei tivesse um sentido de avanço.
Contudo, o Poder Executivo, atualmente ocupado por uma administração que se reivindica progressista, tem margem para endurecer o combate às patentes imerecidas sem passar pelo Legislativo. Como revelou Susana em live de Outra Saúde, o Governo Federal poderia retomar a obrigatoriedade da anuência prévia da Anvisa para a concessão de uma patente farmacêutica, exigência suspensa em 2021 por uma medida provisória do governo de Jair Bolsonaro.
Hoje, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) as analisa sozinho, sem a participação dos especialistas sanitários da Anvisa – o que torna mais provável que patentes frívolas ou imerecidas acabem passando. A medida já foi sugerida diretamente ao vice-presidente Geraldo Alckmin em reunião com movimentos sociais.
Na concepção de Susana, a própria orientação do INPI para a concessão de patentes também poderia ser alterada. O Instituto responde diretamente ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), capitaneado pelo próprio Alckmin, e sua presidência e diretrizes poderiam receber novas orientações do Poder Executivo para o rigor das análises.
O consultor Nirmalya Syam tem uma avaliação similar à da advogada do GTPI. “Uma das áreas mais críticas em que os países em desenvolvimento poderiam fazer mais, inclusive o Brasil, é no uso de critérios rigorosos de patenteabilidade. Não apenas no sentido das leis, mas principalmente na aplicação prática, por meio de guias robustos para a análise de patentes farmacêuticas”, ele diz.
Investimentos em pesquisa e novas instalações fabris, como vem anunciando o Ministério da Saúde, são requisitos indispensáveis para a ampliação do CEIS. Mas caso também adote medidas como as sugeridas pelos especialistas, o Brasil pode almejar objetivos ainda mais amplos: baratear em outro patamar os remédios que fornece à sua população e questionar a estrutura injusta do regime patentário global, um enorme obstáculo ao direito dos povos à Saúde.
“Muito ainda pode ser feito nesse âmbito por uma série de países em desenvolvimento”, conclui Nirmalya.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Embaixada de Bangladesh no Uzbequistão