Por Ricardo de Sousa Moretti
Não é algo restrito às comunicações digitais. É possível criar realidades virtuais na contação de histórias, nos romances, na telenovela, na imaginação… Até que ponto essa atividade é saudável? Como definir quais os limites?
Assisti hoje a um vídeo curto, ótimo, que mostra uma mãe que coloca sua filha pequena, de dois ou três anos, numa cadeira virada de ponta cabeça. Simultaneamente se projeta na tela da TV um passeio numa montanha russa. A criança estava sentada em uma almofada sobre a parte de baixo do assento da cadeira, cujos pés funcionavam como controle para que a mãe pudesse movimentar a cadeira, simulando os movimentos da montanha russa na sua andança na tela, no parque de diversões. Divertidíssimo: a alegria e êxtase da criança, viajando naquele mundo virtual de um parque de diversões não deixaram dúvida sobre o sucesso do brinquedo improvisado de forma criativa pela mãe…
O passeio imaginário na montanha russa apresentado no vídeo me fez viajar sobre o alcance da criação de realidades virtuais na vida humana. Confesso que estou impactado pelo relato, de poucas semanas atrás, sobre o metaverso, sobre o qual nunca havia ouvido falar até então. Pessoas que vivem um mundo paralelo, em que se assumem na vida virtual como um avatar e nessa realidade paralela projetam suas casas, escolhem seus parceiros, amigos e trabalho, assistem a show aos quais pagam com criptomoeda. Shows realizados de fato, por artistas que são contratados para realizar o show, onde aparecem com os avatares que lhes correspondem… Uma das minhas filhas, já mais familiarizada com o mundo Matrix, me relatou que chega a acontecer “bullying” e mesmo estupro nessa realidade virtual. O participante do jogo está tão teletransportado para a realidade virtual que não consegue dela se desligar, não consegue simplesmente desligar o aparelho e sair da tortura à qual está sendo submetido. Assustador!!
O espanto inicial sobre o metaverso me fez refletir sobre “o estar onde não estou”, na sociedade humana. Fiquei pensando que o quadro pode ser mais complexo, que os limites do que é abuso, do que é não saudável, pode não ser claro e simples. Com um recurso que muitas vezes utilizo, busquei paralelos num passado mais distante. Voltei para os caçadores coletores, para as tribos indígenas. Lembrei da importância atribuída à linguagem oral, à contação de histórias. E fiquei pensando que o relato apaixonado e apaixonante de uma história não deixa de ser uma forma de convidar o ouvinte para estar onde não está agora. Uma viagem ao passado, uma viagem ao místico… Quem sabe as próprias pinturas rupestres, ao representar uma situação vivida, sejam uma tentativa de permitir que os que a vêm possam vivenciar a realidade representada, sem ter estado lá.
Em um passado mais recente, o que é o romance escrito que não a tentativa do autor de transportar o leitor para um cenário que foi por ele vivido ou imaginado? Ou a rádio novela, em que os sons ajudam para que o rádio espectador possa sentir de forma mais realista a emoção de estar onde não está?
E aí lembro da masturbação, tão proibida e controversa na minha adolescência, um pouco mais natural nos dias de hoje. O que significa a não ser um transporte para uma situação erótica em que a pessoa não está, não necessariamente esteve, mas imagina e vive, teletransportada para uma situação hipotética em que se imagina vivendo…
A tecnologia traz novas possibilidades. Cinema, televisão. A telenovela traz ao vivo e a cores…O metaverso te dá poderes neste cenário. O BBB transporta para uma realidade que a pessoa não vive, mas que faz brotar todo seu potencial “voyeur”, faz estar dentro da situação, do conflito que ali se expõe de forma explícita. E conquista multidões.
As várias religiões levam para um mundo espiritual, desconhecido, que não se domina. Criam uma vida futura, extraterrena, quiçá inspirada em pasárgada, em que cada um já não é, necessariamente, o que é por aqui…
É audacioso e talvez mentiroso o título desta crônica. Dizer até onde tudo isto é saudável é demais para um samba curto, como já dizia o samba do Paulinho da Viola. Talvez demais até para a curta sabedoria humana. Há muitas dúvidas e algumas poucas clarezas. Não parece ser saudável que a vida real, concreta, amarga, maravilhosa nas suas surpresas e aprendizados, seja sistematicamente substituída pela realidade paralela, seja ela qual for. Mas qual a dose? Ate onde isto é saudável?
Parece haver vários exemplos extremados, que aparentemente se multiplicam numa escala assustadora. De início, sobre aquela prática religiosa, cuja adesão faz viver a promessa de um mundo espiritual futuro maravilhoso, mas paralisa as ações com relação às contradições e conflitos desta existência terrena, que isenta da responsabilidade de ações indispensáveis na luta por um mundo melhor para todas as pessoas. Em outro extremo, do casal que num restaurante romântico não mais conversa, mas fica ao celular e viaja para o mundo virtual no qual suas realidades não se tangenciam. O leitor que se fascina pelos romances dos seus livros a ponto de não mais dispor de tempo, energia ou vontade de viver alguma coisa parecida com aquilo que ali se retrata. Ou o telespectador, que acha que pode ter na tela da TV a dose necessária de vida real que precisa para sua existência.
Mais que tudo, me assusta o quadro e cenário que se apresentam para as crianças e jovens. Recentemente li a notícia que no estado da Flórida, nos Estados Unidos da América do Norte, foi proibido o acesso às redes sociais para os jovens de menos de 14 anos. No local que pode ser considerado berço da tecnologia que leva à realidade virtual, os congressistas começam a reconhecer que há necessidade de limites. Fico pensando na difícil tarefa dos pais, que no contexto atual, buscam isoladamente que seus filhos de menos de 14 anos não sejam assediados pelo rolo compressor das redes sociais. Isoladamente pode ser uma iniciativa de risco- se a grande maioria das crianças estiver na rede, aquele que está fora é objeto privilegiado de “bullying”. Se não houver uma política pública que determina essa orientação é muito difícil que os pais, isoladamente, consigam tomar a decisão na direção de estabelecer o limite.
Apesar de não ser possível, neste texto curto, apontar os limites de engajamento e de tempo dispendido nas múltiplas formas de vida virtual, ou melhor, de se estar onde não se está, é possível aqui iluminar a necessidade de que o tema seja discutido. E o debate não deve se limitar aos limites da vida virtual – será necessário debater as múltiplas formas de estimular a vivência real, com todas suas falhas, contradições, dores e limitações. Que seja viável para todas as pessoas, e não somente nos aspectos pragmáticos associados ao estudo e ao trabalho. Formas de estimular que o contato com a vida virtual seja apenas o catalisador do interesse de se lançar para as múltiplas formas de vida, ao vivo e a cores, mesmo com todas dores associadas.
Fonte: Outras saúde / Arte: Banksy