Sábado, 18/05/2024 – 14h40
Por Vinicius Sassine | Folhapress
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania promete entregar na próxima segunda-feira (20) cinco lanchas a Conselhos Tutelares de cinco cidades do arquipélago do Marajó, no Pará. As embarcações devem ser usadas no atendimento a casos de violação de direitos de crianças e adolescentes em comunidades ribeirinhas, numa região onde a maior parte da população vive nesses locais.
O governo, porém, vai retardar a remessa desses veículos aos outros 12 municípios do Marajó. Uma próxima leva, que deve atender cinco cidades, está prevista para o fim do semestre. Os outros sete municípios, conforme previsão do ministério, só devem receber lanchas ao fim de 2024, quando o mandato do presidente Lula (PT) já estará na metade.
Reportagem publicada pela Folha em 21 de abril mostrou que a ausência do Estado na rotina dos rios do arquipélago alimenta ciclos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Os casos compõem uma realidade complexa, ora com consentimento de familiares, em que se permitem relacionamentos com homens adultos, ora com emprego mais literal da violência.
O pano de fundo dessas vivências é a persistência da pobreza, que atinge 3 em 4 marajoaras na porção ocidental, e a inexistência de políticas e equipamentos públicos básicos, num lugar onde a vida é mais rural do que urbana.
Na maior cidade do arquipélago, Breves (PA), o Conselho Tutelar, a Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente e a rede de assistência psicossocial não têm lanchas próprias para acesso às comunidades. Essa realidade se repete em outros municípios marajoaras.
Não há ambulatório para vítimas de violência sexual, delegacias não funcionam aos fins de semana, inexiste serviço de acolhimento e hospedagem para adultos que acompanham crianças e adolescentes que passaram por um abuso sexual. Algumas cidades do arquipélago não têm abrigos para crianças, que precisam ser levadas a outros municípios.
Em Melgaço (PA), a cidade com o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país, unidades de saúde recebem crianças e adolescentes grávidas e não há comunicação de todos os casos ao Conselho Tutelar ou à polícia. Pela lei, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é um estupro de vulnerável.
Após o fracasso do programa criado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para o arquipélago, o Abrace o Marajó, lançado pela então ministra e hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF), o Ministério dos Direitos Humanos no governo Lula lançou o Cidadania Marajó, com previsão de ações para enfrentar abuso e exploração sexual infantil.
A entrega de lanchas a Conselhos Tutelares integra o programa. O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, vai a Ponta de Pedras (PA) na próxima segunda para a entrega das primeiras embarcações. O ministério não informou quais são os cinco municípios contemplados.
Horas após a publicação da reportagem pela Folha em 21 de abril, o ministro fez publicações no X (ex-Twitter) sobre a entrega de lanchas ao arquipélago. Ele disse que os equipamentos seriam entregues em maio e contemplariam inicialmente dez municípios: Afuá, Bagre, Chaves, Curralinho, Gurupá, Melgaço, Muaná, Oeiras do Pará, Ponta de Pedras e São Sebastião da Boa Vista.
“Política se faz ouvindo a população, entregando aquilo que as pessoas precisam, enfrentando problemas que realmente existem, e não fazendo exploração de mazelas sociais para estigmatizar um povo que precisa de respeito e cuidado”, escreveu Almeida.
O ministro se referia à tática de políticos extremistas, como Damares, de divulgar situações irreais e absurdas de exploração sexual infantil no Marajó para mobilizar o eleitorado conservador.
A ex-ministra também fez publicações no X horas após a reportagem da Folha ir ao ar.
“Lançamos o Abrace o Marajó para enfrentar o problema pela raiz, a pobreza, e nisso envolvendo 16 ministérios e vários órgãos e entidades. Era para ser o modelo de programa de desenvolvimento territorial sustentável a partir do enfrentamento às violações de direitos humanos.”
Damares acrescentou: “Conseguimos alcançar tudo o que queríamos? Claro que não. Não se resolve séculos de abandono em três anos de programa com uma pandemia no meio.”
As cinco lanchas que serão entregues na segunda foram viabilizadas em parceria com a Itaipu Binacional, assim como as outras cinco previstas para o fim do semestre. Segundo a secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos, Rita Cristina de Oliveira, as embarcações estavam em uso pela usina hidrelétrica, estão em boas condições de uso e foram adaptadas.
“Para os outros cinco municípios, depende da logística, ainda não há data definida. Mas será até fim do semestre”, disse Oliveira. “Com Itaipu, só havia possibilidade de dez lanchas para doação, em caráter emergencial. Houve um processo com participação das prefeituras. Temos plena consciência de que é necessário enviar lanchas a todos os conselhos. Herdamos um programa muito ruim.”
Agora, um processo licitatório, com recursos já garantidos, buscará garantir o fornecimento de embarcações a todos os municípios do arquipélago, segundo a secretária-executiva. A previsão é de que a entrega ocorra até o fim do ano. “O Marajó desafia as ações estruturantes de políticas públicas. A precariedade de vida empurra para a vulnerabilidade, inclusive a sexual.”
O evento no arquipélago com a presença do ministro terá a assinatura de outros acordos, como o pacto pela escuta protegida, com envolvimento de diferentes órgãos públicos.
O objetivo, conforme Oliveira, é garantir o atendimento a crianças em situação de violência, com salas especializadas no atendimento e equipes interdisciplinares para perícias, por exemplo. Justiça, Ministério Público e Defensoria locais participam do acordo.
Também estão previstas campanhas de conscientização e a adaptação de um programa da PRF (Polícia Rodoviária Federal), adotado em rodovias, para os rios do Marajó.
Em 28 de abril, uma segunda reportagem da Folha mostrou como a insegurança alimentar e a fome invadem casas em áreas de várzea, igarapés em periferias de cidades e na beira de rios no Marajó.
Depois, em 5 de maio, o jornal mostrou que mulheres do arquipélago, especialmente da região de Melgaço, passam por situações de violência na hora do parto, com longas jornadas e esperas por atendimento digno num momento que já é de vulnerabilidade.
A secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos diz que o Cidadania Marajó contempla ações para enfrentar essas duas realidades. No caso da fome e insegurança alimentar, há estratégias de desenvolvimento regional, regularização fundiária e mapeamento de necessidades mais urgentes.
Sobre violência obstétrica, segundo Oliveira, um acordo de cooperação será assinado entre as pastas dos Direitos Humanos e da Saúde para ampliação de Mais Médicos e Farmácia Popular no Marajó, além do fortalecimento de ações primárias de saúde no arquipélago.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil