Saúde Digital: a estranha interferência do Reino Unido

Mundo saúde

Por Gabriela Leite

Em 2020, Brasil firmou parceria com governo britânico para “cooperação” na digitalização do SUS. Relatório revela: pouco se sabe sobre o que foi de fato realizado. Participação social foi ignorada. E plataformização pode ser um risco aos princípios do sistema de saúde

LANÇAMENTO
Relatório “Criação de Mercados em Nome da Ajuda: A saúde digital no Brasil sob o Better Health Programme”
Autores: Raquel Rachid e Matheus Falcão
Cebes, Lapin e Projeto “Implicações das Tecnologias Digitais nos Sistemas de Saúde”
Leia na íntegra

Raquel Rachid e Matheus Falcão em entrevista a Gabriela Leite

De que formas a influência do Norte Global está moldando a digitalização do Sistema Único de Saúde no Brasil? Um novo estudo ajuda a jogar luz sobre o tema, produzido em uma parceria entre o Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (Cebes), o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin) e a iniciativa Brasil Saúde Amanhã. “Criação de mercados em nome da ajuda” reflete, em especial, sobre os desdobramentos de uma combinação entre Brasil e Reino Unido no âmbito da saúde digital. Mais especificamente a partir do Better Health Programme (BHP), iniciativa firmada a partir de 2020, no governo de Jair Bolsonaro – mas que continua a ressoar no governo Lula.

O que mais chamou a atenção dos pesquisadores, Raquel Rachid e Matheus Falcão, que concederam entrevista ao Outra Saúde, é a opacidade em torno de um programa que tinha como objetivo ajudar o Brasil a criar ou reformular políticas públicas e legislação nessa área. Seu esforço inicial foi encontrar o máximo de informações possíveis, tanto por meio da Lei de Acesso à Informação brasileira quanto no equivalente britânico. Algo que provou-se um desafio bastante preocupante.

Algo surpreendeu, na negativa de oferecer mais informações recebida pelos pesquisadores quando foram buscar órgãos responsáveis no Reino Unido: o argumento de que “haveria informações relacionadas a interesses comerciais envolvidas no processo”. Esse elemento não é mero detalhe. Deixa claro uma suspeita importante dos pesquisadores, de que não se trata de uma “ajuda” do governo britânico ao Brasil – mas de uma operação que visa os interesses comerciais daquele país.

Ocorre que, assim sendo, passa a ser algo de extrema preocupação para aqueles que defendem os princípios do SUS. Isso porque “carrega a premissa de ganhos mercadológicos com a propagação do acesso à saúde; ganhos que implicam um certo abandono da proposta do Sistema Único de Saúde, pautado pela universalização dos serviços para assegurar o acesso à saúde por meio do fortalecimento das capacidades e funções públicas”, escreve o estudo. Raquel complementa o alerta: “A ausência de informações sobre a costura desse acordo e seus impactos contribui para a sedimentação das políticas que aprofundam a privatização do SUS e que são publicizadas como a nova solução para os problemas do sistema de saúde”.

Esse não é um movimento isolado, no que os autores chamam de “plataformização” da saúde brasileira. Ela se dá, em especial, por meio da “concentração de dados do reconhecimento de usuários tal qual consumidores de serviços de mercado e da privatização das infraestruturas públicas”, definem os autores. No SUS, como se sabe, estão inseridos todos os mais de 200 milhões de brasileiros. Trata-se do maior sistema público e universal de saúde do mundo. Ou seja: um prato cheio para as corporações que enriquecem com a concentração de dados de cidadãos. “É preciso avançar na discussão sobre como proteger esse patrimônio coletivo que são essas informações sobre a população brasileira”, defende Matheus.

Além disso, há outro dado muito preocupante, registrado por Raquel e Matheus: a falta de participação social nesse processo. Trata-se de outra das bases do SUS, que está sendo fartamente deixada de lado, no caso dessa parceria firmada com o Reino Unido. As soluções para o sistema de saúde brasileiro estão sendo trazidas por grandes empresas em parcerias com governos do Norte Global, jogando fora uma oportunidade importante de envolver a população na transformação digital da saúde. Nas palavras de Matheus, “A própria ideia de que o SUS precisa simplesmente incorporar soluções criadas pelo setor privado em vez de fomentar suas próprias soluções e desenvolver tecnologias endógenas é um bom exemplo” de saídas supostamente técnicas, mas bastante ideológicas.

O relatório, que pode ser lido na íntegra aqui, traz mais detalhes desta nova frente de batalha para os movimentos em defesa do SUS. Fique com a entrevista completa abaixo.

De que maneira a parceria com o Reino Unido, por meio do Better Health Programme (BHP), influencia as políticas de saúde digital no Brasil?

Raquel: Só pelo título do estudo é possível inferir que a saúde digital foi vista como um mercado em potencial; mais precisamente, a saúde digital do SUS parece ter sido articulada visando a criação de mercados a partir dessa parceria entre Brasil e Reino Unido. A lógica de “ajuda ao desenvolvimento” funciona, inclusive, como investimento de baixo risco – já que tem de tudo para países e organizações que estabeleceram as bases  para o modelo de digitalização dos sistemas de saúde largarem na frente em qualquer suposta “competição” por fatias de mercado. Como o Ministério da Saúde não possuía uma avaliação sobre os impactos do BHP em face das políticas brasileiras de saúde digital quando de nossa consulta a este ministério, fica o convite à leitura do documento completo para mais detalhes.

O que o processo de “plataformização” da saúde, promovido pela digitalização, implica para a autonomia e a privacidade dos usuários do SUS?

Raquel: Eu tendo a questionar a ideia de autonomia em um contexto social cujos crescentes processos de digitalização são configurados a despeito da vontade individual de agentes – sejam aqueles que os implementam ou aqueles que são afetados por seus contornos. Há, em verdade, um certo constrangimento do modo de produção para a observância desses reajustes estatais – que se desdobram em áreas como a da saúde. Esse contexto me parece ser anterior às premissas juspositivistas adotadas para falar da proteção a dados, sejam eles pessoais ou não. De toda forma, o processo crescente de implementação de um conjunto de soluções tecnológicas para a integração de sistemas e consequente gestão de dados (dentre as quais se destacam as plataformas digitais), implica uma notória dificuldade às populações usuárias do SUS quanto à ciência de como esses dados são tratados (o que inclui o seu compartilhamento). Assim, torna-se especialmente mais complexa a articulação de demandas e mobilização em torno desse tema. 

Matheus: Adicionalmente, a LGPD e o próprio referencial da proteção de dados pessoais trabalham com a ideia de fornecer ao indivíduo instrumentos para proteger seus dados pessoais, por exemplo, excluindo suas informações de uma grande base da dados, no entanto, o cerne da economia digital é a produção de valor a partir de inferências feitas a partir de grandes conjuntos de dados, isto é, um dado individualmente tem pouco ou nenhum valor informacional. É preciso avançar na discussão sobre como proteger esse patrimônio coletivo que são essas informações sobre a população brasileira. Isso envolve discussões como acesso à inovação resultante do uso desses dados e viés algorítmico na saúde. 

Como a falta de representação de usuários e usuárias do SUS no Comitê Gestor da Saúde Digital pode afetar a eficácia e a equidade das políticas de saúde digital?

Raquel: Para mim, a falta de representação de usuários e usuárias no CGSD é simbólica de processos que se dão centrados na burocracia e que podem ser muito consistentemente implementados conforme modelos externos ao Brasil, mas alheios às especificidades de um sistema influenciado pelas demandas (ainda atuais) do movimento sanitário. Em termos de eficácia e equidade, pode ser que as demandas existentes quanto ao acesso à saúde não sejam atendidas pela distância do público usuário, bem como levem à potencialização de desigualdades; o que preocupa, é que esse modelo burocratizado pode ser replicado nas demais unidades federativas – elemento que gera dificuldades práticas ainda maiores no reclame de espaço para a participação, decisão e controle populares.    

Matheus: a participação social e a inclusão de representação de quem usa o SUS e de quem trabalha no SUS na formulação de políticas está no DNA do projeto que levou à criação do nosso sistema público. Nos últimos anos, no entanto, há uma tendência de substituição desses espaços por espaços exclusivamente formados por gestores (e frequentemente com grande abertura para o setor privado, por meio de parcerias e consultorias). Dentre outras consequências, estes processos reduzem as possibilidades de pensar novos modelos alternativos. 

Quais são os possíveis conflitos de interesse na colaboração entre atores públicos e privados na saúde digital, conforme reforçado pela ESD28?

Raquel: O fato de a ESD28 não observar a complementaridade (também questionável e imposta constitucionalmente às instituições privadas no SUS), manifesta um conflito de interesses anterior, uma vez que o estabelecimento da lógica de cooperação deu-se a partir da atuação de consultorias privadas (por programas de renúncia fiscal a entidades que deixaram de recolher tributos aos cofres públicos, por exemplo). Assim, a atuação dessas entidades na inscrição de um outro paradigma contribui para o aumento do parasitismo que enfraquece a gestão pública direta – cuja atividade independe da expectativa de lucro. Há outras formas de manifestação desse conflito: parcerias com o setor privado para o uso secundário de dados do SUS podem gerar o desenvolvimento de soluções que se beneficiam de recursos públicos e serão apenas oferecidas a clientes dos planos de saúde mais custosos (ao invés de serem incorporados ao sistema público).  

Em que medida a participação de consultorias internacionais, como a McKinsey & Co, na execução de políticas de saúde digital, pode comprometer a soberania dos dados de saúde brasileiros?

Raquel: A participação de consultorias internacionais é voltada à replicação de modelos de políticas que não podem ser consideradas neutras; unificam procedimentos e gerem o conhecimento da execução dessas adequações ao redor do mundo, protegendo o acesso aos detalhes desse processo sob cláusulas contratuais que impõem a observância a interesses comerciais. Estive em um evento internacional durante o qual uma dessas grandes consultorias comentou que havia trabalhado no estabelecimento de parâmetros para a digitalização da saúde em uma série de países, mas que não poderia citá-los por limitações jurídicas. Estamos falando da gestão privada do “saber fazer”. Notadamente pela falta de compromisso com a saúde de caráter público, pode ser que essas práticas incentivem a contratação de grandes empresas para a gestão de sistemas de informação e dados – o que pode até mesmo implicar sua transferência internacional, em prejuízo do desenvolvimento de soluções de propriedade pública para seu armazenamento no Brasil. Sobre o aprofundamento da dependência tecnológica, há estudos que defendem a expressão “soberania digital” e outras variantes. Dadas as manifestações do imperialismo (via “ajuda” e propaganda ou mesmo pelo financiamento de golpes e guerras), a soberania fincada na subjetividade jurídica não me parece representar uma contraposição ao inerente expansionismo do capital. Se eu puder deixar uma sugestão de leitura, o livro “Entre direitos iguais: uma teoria marxista do direito internacional”, do China Miéville, é fundamental nessa discussão.

Matheus: Além disso, frequentemente, essas empresas acabam incorporando para si todas as informações resultantes do processo de formulação de políticas públicas, como contatos, alternativas pensadas e problemas identificados. É um conhecimento advindo da experiência útil ao Estado, que gradualmente abre mão de acumulá-lo em favor dessas empresas. É um processo de privatização da formulação de políticas públicas que gera dependência. É como se a sociedade desistisse de aprender a fazer políticas e precisasse sempre recorrer às consultorias quando quisesse criar algo novo. Novamente vale lembrar, que o próprio SUS é o resultado de um processo de mobilização social e envolvimento de diferentes atores, que seguiu após a Constituição de 1988 e deu origem à boas políticas de saúde. Por vezes, me pergunto o que teria acontecido se a Assembleia Constituinte, em 1986, tivesse decidido contratar uma consultoria internacional para pensar o novo sistema de saúde brasileiro. 

Quais são os desafios e as possíveis soluções para garantir que a digitalização da saúde no Brasil não beneficie desproporcionalmente o setor privado em detrimento do público?

Raquel: Sou bastante cética quanto à compatibilização de interesses. Aliás, a relação já é absolutamente desproporcional – a começar pela atualização de medidas de austeridade fiscal no curso deste governo federal, que impactam o investimento público em áreas como a saúde aqui no Brasil. A digitalização da saúde e de outras áreas governamentais está impondo a “governança multissetorial” de tudo, como se nesses espaço as posições conflitantes caminhassem para encontrar no consenso um denominador comum. Esse parece ser um elemento que blinda o enfrentamento às relações sociais sob o capitalismo, especialmente pela estratégia de desmobilização da crítica à esquerda – particularmente a crítica a gestões ditas progressistas, em face de práticas neoliberais como o enxugamento do funcionalismo público por meio da digitalização. Adicionalmente, e a partir da crítica marxista ao direito, fica bastante nítido o seu caráter em face dessa promessa de equilíbrio – e o que se vê, na dimensão conjuntural, são legislações refletirem o  lobby mais cruento (a exemplo do que vem se dando com o marco de IA). Há evidências desse lobby na saúde digital, mas acabamos não focando nesse aspecto.        

Como a ausência de informações públicas sobre o impacto do Better Health Programme dificulta a avaliação crítica e a accountability dessas políticas?

Raquel: A ausência de informações sobre a costura desse acordo e seus impactos contribui para a sedimentação das políticas que aprofundam a privatização do SUS e que são publicizadas como a nova solução para os problemas do sistema de saúde. Não esperemos compromisso com o enfrentamento a esse modelo por parte de quem defende a “fuga para frente” como saída dos conflitos sociais. 

Como a ausência de participação social na formulação da Estratégia de Saúde Digital 2020-2028 (ESD28) impacta na implementação dessa política no Brasil?

Raquel Rachid: O fato de a ESD28 ter sido gestada em gabinetes governamentais por meio de parcerias com outros governos e com consultorias, a partir de uma perspectiva aderente a programas internacionais de digitalização dos serviços prestados pela administração pública (como é o caso do formato privatizante oferecido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE) e em um governo que desprezava a participação popular, diz muito sobre o tipo de implementação à qual este documento dá lastro. Assim, sem haver a substituição de pressupostos inscritos nessa estratégia por meio de processos que se proponham participativos, a implementação de seus termos reforçará o compromisso com uma agenda estranha aos pressupostos do SUS. Ademais, a ausência específica de participação marca a inobservância de um dos fundamentos do SUS – bastante desgastado, apesar da conquista pelo movimento sanitário.    

Matheus Falcão: há no histórico do SUS, experiências concretas de políticas públicas efetivas e ainda em vigor que foram construídas com intensa participação social, envolvendo territórios locais e diferentes atores. Um exemplo, é a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF). Dada a relevância do tema da transformação digital, as políticas para essa área devem ser construídas de forma semelhante. A ausência de participação muitas vezes leva a adoção de soluções tidas como técnicas, mas que são enviesadas frequentemente por interesses privados. A própria ideia de que o SUS precisa simplesmente incorporar soluções criadas pelo setor privado em vez de fomentar suas próprias soluções e desenvolver tecnologias endógenas é um bom exemplo. 

Quais são os principais riscos associados à centralização de dados de saúde em plataformas como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), especialmente considerando o armazenamento por empresas privadas como a Amazon Web Services?

Raquel: A despeito de o atual Ministério da Saúde ter iniciado um processo de descentralização da RNDS, há um aprofundamento contínuo da dependência de soluções tecnológicas oferecidas pela iniciativa privada – sem que se incentive pesquisa e desenvolvimento de soluções de propriedade pública (junto de universidades públicas, por exemplo). Inclusive, essa é uma das premissas do Decreto n.º 12.069/24, que dispõe sobre a Estratégia Nacional de Governo Digital para o período de 2024 a 2027 (ENGD). Ao definir Infraestruturas Públicas Digitais como “soluções estruturantes de aplicação transversal, que adotam padrões de tecnologia em rede construídos para o interesse público, seguem os princípios da universalidade e da interoperabilidade, permitem o uso por diversas entidades dos setores público e privado e podem integrar serviços em canais físicos e digitais”, mencionando que seu desenvolvimento será articulado com o setor privado (art. 16), percebe-se o compromisso em fortalecer cooperações que cada vez mais encapsulam os projetos governamentais à proteção dos interesses comerciais. Essa estratégia foca nos serviços públicos de saúde de modo salutar, contribuindo para o reforço da gramática empregada pela estratégia de saúde digital. Então, mais que riscos, há conflitos entre direcionamentos distintos sendo dirimidos sem o resgate das lutas que pautaram a criação do SUS. 

Matheus: ao se falar do conjunto desses dados, fala-se de algo com extremo valor econômico e relevância estratégica. Do ponto de vista econômico, são os dados tomados de forma coletiva que geram informações que servem como ativos financeiros, tanto para inferências sobre a população brasileira, quanto para treinamento de algoritmos de IA. Do ponto de vista estratégico, esses dados carregam informações valiosas para as ações e serviços públicos de saúde. Tais características reforçam a importância de infra-estruturas realmente públicas para armazenar essas informações.

Fonte: Outra Saúde / Créditos: Getty Images

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