As células que protegem, mas também podem destruir nosso cérebro

saúde
  • Jasmin Fox-Skelly
  • BBC Future

Historicamente, elas foram negligenciadas — vistas como simples soldados de infantaria do sistema imunológico. No entanto, cada vez mais, os cientistas acreditam que as micróglias podem ter uma função estratégica, controlando fenômenos que vão desde o vício até a dor.

Alguns acreditam, inclusive, que elas podem desempenhar um papel fundamental em condições como a doença de Alzheimerdepressãoansiedadecovid longa e encefalomielite miálgica (EM), também conhecida como síndrome da fadiga crônica.

Mas o que exatamente são as micróglias?

O cérebro é composto por dois tipos de células. Os neurônios, também conhecidos como células nervosas, são os mensageiros do cérebro, enviando informações para todo o corpo por meio de impulsos elétricos.

O outro tipo — chamado glia — compõe o resto. A micróglia é o menor membro da família da glia, e representa cerca de 10% de todas as células cerebrais. Estas pequenas células possuem um “corpo” central de formato oval, do qual emergem braços delgados semelhantes a ramificações.

“Elas possuem muitas ramificações que se movimentam continuamente para pesquisar o ambiente”, diz Paolo d’Errico, neurocientista da Universidade de Freiburg, na Alemanha.

“Em condições normais, elas as estendem e retraem para sentir o que está acontecendo ao seu redor.”

Quando apresentam bom desempenho, as micróglias são essenciais para o funcionamento saudável do cérebro. Durante nossos primeiros anos de vida, elas controlam como nosso cérebro se desenvolve, “podando” conexões sinápticas desnecessárias entre os neurônios.

Elas influenciam que células se transformam em neurônios, além de reparar e manter a mielina — uma camada protetora de isolamento que envolve os neurônios, sem a qual a transmissão de impulsos elétricos seria impossível.

Micróglia.
Getty Images

O papel delas não para por aí. Ao longo da nossa vida, a micróglia protege o nosso cérebro de infecções, procurando e destruindo bactérias e vírus.

Elas limpam os detritos que se acumulam entre as células nervosas e erradicam e destroem proteínas tóxicas disformes, como as placas amiloides — os aglomerados de proteínas que acredita-se desempenhar um papel na progressão do Alzheimer.

No entanto, em certas circunstâncias, elas podem se rebelar.

“A micróglia tem dois lados — um lado bom e um lado ruim”, diz Linda Watkins, neurocientista da Universidade do Colorado em Boulder, nos EUA.

“Elas pesquisam problemas, em busca de atividade neural incomum e danos. Elas estão atentas a qualquer tipo de problema no cérebro, mas quando são superestimuladas, deixam de ser as mocinhas vigilantes e passam a ser as vilãs patológicas.”

Mas o que faz com que se rebelem? Quando as micróglias detectam que há algo errado no cérebro, como uma infecção ou uma grande presença de placas amiloides, elas entram em um estado super-reativo.

“Elas se tornam muito maiores, quase como grandes balões, e contraem seus apêndices e começam a se movimentar, devorando os danos como pequenos Pac-Man”, explica Watkins.

A micróglia ativada também libera substâncias conhecidas como citocinas inflamatórias, que funcionam como um farol, chamando outras células do sistema imunológico e micróglias para entrar em ação.

Tal resposta é necessária para ajudar o corpo a combater invasores e ameaças. Normalmente, depois de um certo período de tempo, a micróglia volta ao seu estado “bom”.

Mas parece que, às vezes, a micróglia pode permanecer neste estado de superestimulação muito tempo depois de o agente infeccioso ter desaparecido. Atualmente, acredita-se que estas micróglias fora de controle estejam por trás de uma série de doenças e condições modernas.

Por exemplo, o vício. Historicamente, esta condição tem sido vista como um distúrbio do sistema neurotransmissor da dopamina, sendo que os desequilíbrios da dopamina são os culpados pelo comportamento cada vez mais voltado para as drogas dos pacientes.

Micróglias.
Getty Images

Mas Watkins tem uma teoria diferente. Em um artigo acadêmico recente, ela e cientistas da Academia Chinesa de Ciências argumentam que quando uma pessoa toma uma droga, sua micróglia vê a substância como um “invasor” estranho.

“O que descobrimos por meio da nossa própria pesquisa é que uma variedade de opiáceos ativam as células microgliais, e fazem isso, pelo menos em parte, por meio do que é chamado de receptores do tipo Toll (TLR)”, diz Watkins.

“Os receptores do tipo Toll são receptores muito antigos concebidos para reconhecer objetos estranhos. Eles deveriam estar lá para detectar fungos, bactérias e vírus. São os receptores do ‘algo não está certo, não estou bem’.”

Quando a micróglia detecta drogas como opiáceos, cocaína ou metanfetamina, ela libera citocinas, o que faz com que os neurônios que estão ativos no momento do consumo da droga se tornem mais estimulados.

Crucialmente, isso leva à formação de conexões novas e mais fortes entre os neurônios e à liberação de mais dopamina, fortalecendo o desejo e a vontade de usar drogas.

A micróglia altera a própria arquitetura dos neurônios do cérebro, levando a hábitos de consumo de drogas que podem durar a vida toda.

As evidências que respaldam esta teoria são convincentes. Por um lado, os usuários de drogas aumentam a inflamação e as citocinas inflamatórias no cérebro.

A redução da inflamação em animais também reduz o comportamento de buscar drogas. A equipe de Watkin mostrou que é possível impedir que os camundongos busquem continuamente drogas como a cocaína, bloqueando o receptor TLR e evitando a ativação microglial.

Além disso, a micróglia também poderia desempenhar um papel importante na dor crônica, definida como dor que dura mais de 12 semanas. O laboratório de Watkins mostrou que, após uma lesão, a micróglia na medula espinhal é ativada, liberando citocinas inflamatórias que sensibilizam os neurônios da dor.

“Se você bloquear a ativação da micróglia ou de seus produtos pró-inflamatórios, você bloqueia a dor”, afirma Watkins.

Segundo ela, a micróglia poderia até explicar outro fenômeno: por que os idosos apresentam um declínio acentuado em suas habilidades cognitivas após uma cirurgia ou infecção. A cirurgia ou infecção serve como um primeiro golpe que “prepara” a micróglia, tornando-a mais propensa a adotar seu status de vilã.

Após a cirurgia, os pacientes geralmente recebem opioides para aliviar a dor, o que infelizmente ativa novamente a micróglia, causando uma tempestade de inflamação que acaba provocando a destruição de neurônios.

Este campo de pesquisa ainda é novo — por isso, estas descobertas iniciais devem ser tratadas com cautela, mas estudos mostram que é possível evitar o declínio da memória após a cirurgia em camundongos, bloqueando a micróglia.

“Se eu caminhar até você e, sem nenhum aviso prévio, te der um tapa na cara, eu vou me safar na primeira vez. Mas você não vai me deixar sair ilesa na segunda vez, porque você está preparada, pronta, em guarda”, explica Watkins.

“As células da glia funcionam da mesma maneira. Com o envelhecimento, elas se tornam cada vez mais preparadas e prontas para responder de forma exagerada com o passar dos anos. E, agora, que estão neste estado primordial, um segundo desafio, como uma cirurgia, faz com que entrem em ação com muito mais força do que antes. Na sequência, você toma os opioides, que são um terceiro golpe.”

Mão com luva apontado para exames de imagem do cérebro.
Getty Images

Esta “preparação” da micróglia pode até estar por trás do Alzheimer. O principal fator de risco para a condição é a idade, e se a micróglia se torna mais preparada para responder à medida que envelhecemos, isso pode ser um fator.

Ao mesmo tempo, uma das principais características do Alzheimer é a acumulação de aglomerados de proteína amiloide no cérebro. Este processo começa décadas antes de os sintomas de confusão mental e perda de memória se tornarem detectáveis.

Uma das funções da micróglia é procurar e remover estas placas, por isso é possível que, com o tempo, a ativação repetida faça com que a micróglia mude permanentemente para o modo rebelde.

“O acúmulo de amiloide no cérebro induz a micróglia a se tornar mais reativa”, afirma D’Errico.

“Elas começam a liberar todos esses sinais inflamatórios, mas a questão é que, como essas placas amiloides continuam a ser produzidas, há uma inflamação crônica constante que nunca para. Isso é bastante tóxico para os neurônios.”

A micróglia ativada cronicamente pode envolver e matar neurônios diretamente, liberar espécies reativas tóxicas que os danificam ou começar a “podar demais” as sinapses, destruindo a conexão entre as células nervosas.

Todos estes processos podem levar à confusão mental, perda de memória e perda da função cognitiva que caracteriza a doença.

Em um estudo de 2021, d’Errico descobriu até que a micróglia pode contribuir para a disseminação do Alzheimer ao transportar as placas amiloides tóxicas pelo cérebro.

Mulher idosa sentada em sala de espera de hospital segurando uma bengala.
Getty Images

“Nos estágios iniciais da doença de Alzheimer, há regiões específicas do cérebro que parecem acumular placas, como o córtex, o hipocampo e o bulbo olfatório”, diz d’Errico.

“Nos estágios mais avançados da doença, há muito mais regiões afetadas. Descobrimos que a micróglia é capaz de internalizar a proteína amiloide, e depois passar para outra região antes de liberá-la novamente.”

Alguns dos sintomas do Alzheimer, como esquecimento e perda da função cognitiva, são semelhantes aos da covid longa, e é possível que a micróglia errante também possa estar por trás do chamado “nevoeiro mental”. Por exemplo, um dos principais fatores que fazem com que a micróglia se rebele é a presença de uma infecção viral.

“A micróglia anormalmente ativada pode começar a podar em excesso as sinapses no cérebro, e isso pode levar ao declínio cognitivo, à perda de memória e a todos os sintomas relacionados à síndrome do nevoeiro mental”, explica Claudio Alberto Serfaty, neurobiólogo da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, no Rio de Janeiro, que resumiu as evidências desta teoria em um artigo de revisão recente.

A expectativa é de que esta nova forma de pensar acabe levando a novos tratamentos.

Por exemplo, estão em andamento, atualmente, testes clínicos de novos medicamentos para Alzheimer, que visam aumentar a capacidade da micróglia de destruir a amiloide.

Mas, assim como acontece com todos os medicamentos para Alzheimer, tal estratégia funcionaria melhor nos estágios iniciais da doença, antes de ocorrer uma morte neural significativa.

No caso do vício, uma ideia é trocar as micróglias rebeldes que deram errado pelas micróglias “normais” que estão presentes no cérebro de quem não usa drogas.

Este conceito, conhecido como substituição de micróglia, envolve o enxerto de micróglia em regiões específicas do cérebro por meio de transplante de medula óssea.

No entanto, tal abordagem seria difícil. Afinal de contas, as micróglias ativas são necessárias para combater infecções; na verdade, elas são vitais para o funcionamento do cérebro.

“Em teoria, sim, isso poderia funcionar, mas lembre-se de que você não quer interferir na micróglia em todo o cérebro, isso precisaria ser localizado”, observa Watkins.

“A microinjeção de micróglia em áreas específicas do cérebro seria algo muito invasivo. Portanto, acho que precisamos procurar algo que seja seguro para esse tipo de tratamento.”

Fonte: BBC Brasil / Foto: Getty Images

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