Bets e Bolsa Família: sem pânico, por favor!

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Por Rômulo Paes de Sousa e Wanessa Debôrtoli de Miranda

Transtorno causado pelos jogos online é real e deve ter resposta rápida do governo. Mas o estudo divulgado pelo Banco Central que indica “gastança” dos beneficiários do PBF deve ser visto com cautela para que não se tomem decisões que agradam o senso comum…

No mundo todo, o jogo online está em crescimento vertiginoso na indústria de apostas. Globalmente, as receitas de jogos de azar digitais devem chegar a US$205 bilhões até 2030. Na Europa, esses jogos já respondem pela maior parte da receita do setor. É estimado que 8,7% da população mundial apresentem problemas ou estejam suscetíveis ao adoecimento devido às apostas.

É provável que o crescimento do jogo online tenha sido alavancado pela pandemia da covid-19. Entre os adolescentes, essa é a segunda forma mais prevalente de atividade de jogo. Por causa disso, a digitalização e os desenvolvimentos no mercado digital, provavelmente, também devem moldar as tendências futuras do jogo à medida que esse grupo envelhece.

Em 24 de setembro de 2024, o Banco Central do Brasil divulgou um pequeno estudo sobre o mercado de apostas online no Brasil e o perfil dos apostadores. O levantamento foi realizado por solicitação do senador Omar Aziz (PSD-AM) com o objetivo de “mensurar o tamanho do mercado de jogos de azar e apostas online no Brasil”.

Embora se tratasse de um tipo de estudo descritivo aos moldes do que as equipes técnicas do Banco Central fazem com frequência, a referência aos beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), pelos expressivos valores envolvidos, provocou um importante dano à imagem do Programa – em certa medida, estimulou as associações da pobreza com escolhas insensatas. Em consequência, abriu-se o caminho para especulações quanto à necessidade de mudanças na forma em que os beneficiários realizam suas despesas. Muitos passaram a clamar por maior intrusão na vida dos beneficiários. O argumento filosófico é conhecido há vários séculos: “os pobres necessitam de tutela do Estado ou da Igreja para que não realizem ações que lhes são prejudiciais”.

Na verdade, o texto publicado pelo Banco Central refere-se aos beneficiários do PBF em um único parágrafo. O estudo estimou que “em agosto de 2024, 5 milhões de pessoas pertencentes a famílias beneficiárias do Bolsa Família (PBF) enviaram R$3 bilhões às empresas de apostas utilizando a plataforma Pix, sendo a mediana dos valores gastos por pessoa de R$100”. Os números apontados são relevantes para o universo de 24 milhões de pessoas físicas, que teriam transferido cerca de 20,8 bilhões de reais em agosto de 2024. Contudo, há várias dúvidas quanto aos cálculos apresentados e seus pressupostos:

  1. A mediana da transferência via Pix de R$100,00 apontada para os beneficiários do PBF sugere um grande desvio à direita para que se chegue ao montante transferido. Isso nos levaria a uma distribuição cuja parcela expressiva de apostadores pobres teriam realizado transferências não compatíveis com seus rendimentos. Algo mais próprio de transações ilegais, como o uso de apostadores “laranjas” por apostadores que estão impedidos de realizar apostas em determinadas casas, do que endividamentos estratosféricos pelos beneficiários do PBF.
  2. O Estudo não parece considerar que os beneficiários em geral do PBF possuem outras fontes de renda e utilizam as contas vinculadas ao PBF para movimentar recursos oriundos de outras fontes. Então, a associação feita por vários jornais dos valores indicados no estudo do Banco Central e a execução do PBF é falaciosa, posto que não é sabida a fonte dos recursos transferidos, mas tão somente os seus emissores (identificados pelo seu CPF).

É muito provável que o padrão de apostadores beneficiários esteja correlacionado com idade, escolaridade, residência em grandes cidades e vínculo com apostadores de alto poder aquisitivo. O Banco Central dispõe de dados que o permite investigar o perfil dos apostadores beneficiários do PBF e se esses são mais suscetíveis do que os trabalhadores pobres não beneficiários aos transtornos do jogo.

Essas limitações do estudo do Banco Central servem de alerta para que a administração pública não empreenda uma mudança do desenho dos pagamentos e formas de uso dos cartões sem compreender o fenômeno que está em curso.

No período de consolidação do PBF, alguns autores indicaram que o Programa realizava um processo de inclusão através do consumo, ao transformar seu beneficiário em um consumidor com maior prestígio social. No presente, restrições quanto ao consumo poderão provocar o preconceito contra os mais pobres e promover a exclusão social.

Vários países têm implementado intervenções para reduzir o risco e prevenir danos causados pelo jogo prejudicial. Seriam úteis para o Brasil: i) controle de preço e tributação dos jogos; ii) restrição ou proibição de sua disponibilidade; iii) controle da acessibilidade, do marketing e do patrocínio realizado pelas bets; iv) controle do ambiente e tecnologias utilizadas para jogos; vi) ações de informação e educação e v) disponibilidade de tratamento e suporte às pessoas com transtorno do jogo.

Muitos países estão implementando leis mais rígidas para regular os jogos de azar online. Por exemplo, o Reino Unido possui uma Comissão de Jogos que monitora e regula a indústria para proteger os jogadores. Além disso, o sistema público de saúde britânico (NHS – sigla em inglês) oferece, por meio do site Live Well, informações para que as pessoas possam identificar problemas com jogos de azar e canais de ajuda. Apesar de iniciativas importantes para enfrentamento do problema, a política na Inglaterra para lidar com o jogo prejudicial tem recebido críticas por apresentar uma abordagem focada exclusivamente no nível individual e na responsabilidade pessoal.

O Governo Federal está correto ao buscar uma abordagem intergovernamental e interinstitucional em escala nacional e regional para facilitar a implementação de um conjunto de medidas para enfrentamento de um problema crescente e complexo. Contudo, é necessário evitar soluções intuitivas que possam gerar transtorno para os gestores e usuários do PBF. Deve-se evitar, sobretudo, a produção de um teatro da política pública, e uma medida de impacto (baseada no senso comum) de eficácia duvidosa.

Fonte: Outras Saúde / Créditos: João Montanaro/Ludopédio


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