A cilada de Armínio Fraga para o SUS

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Economista alega que o sistema público não pode “voltar ao modelo original”, e deve ser restrito aos que não podem pagar. O que ele esconde: suposta busca por eficiência serve para beneficiar ainda mais os interesses do setor privado, às custas dos mais pobres

“Eu sou parte daquela força que eternamente quer o mal, mas eternamente faz o bem.”

Mefistófeles em Prólogo do Céu, O Fausto, Livro I, Goethe.

[I]

Armínio Fraga – ex-presidente do Banco Central do Brasil (1999-2003), sócio da Gávea Investimentos (que administra R$ 20 bilhões em ativos financeiros) e artífice do tripé macroeconômico – postulou, em recente entrevista à Folha de São Paulo, que o modelo original do Sistema Único de Saúde (SUS) tornou-se inviável frente às realidades econômicas e administrativas do Brasil. Para Armínio Fraga, o SUS, tal como foi concebido (que segundo ele foi inspirado no sistema público britânico) não é mais sustentável e precisa ser repensado. Ele sugere que o SUS seja restrito àqueles que não podem pagar, introduzindo um corte de renda para definir quem terá acesso ao sistema público, enquanto o setor privado cobriria a população que pode arcar com seguros e planos de saúde.

O economista – conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) argumenta que a crescente demanda por serviços de saúde, combinada com desafios fiscais profundos, tornou imperativo adotar soluções alternativas.

[II]

Armínio Fraga baseou-se no estudo “Setor Privado e Relações Público-Privadas da Saúde no Brasil: Em Busca do Seguro Perdido – Volume Único”, publicado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e UMANE. O IEPS é presidido por Armínio Fraga.

O estudo postulou evidências de uma crise estrutural no setor de seguros de saúde no Brasil. Segundo o relatório, os mecanismos de seguro estão enfrentando um processo de retrocesso gradual, tanto no setor público quanto no privado. No Sistema Único de Saúde (SUS), a restrição fiscal crônica está limitando sua capacidade de funcionar como um mecanismo universal de seguro, enquanto no setor privado observa-se uma expansão de produtos de financiamento de curto prazo, como planos com cobertura limitada e cartões de benefício. Esses produtos não oferecem a segurança financeira necessária para cobrir despesas médicas de longo prazo e de maior complexidade, revelando uma tendência de fragmentação e fragilidade do sistema de seguros.

A pesquisa apontou que, enquanto o SUS enfrenta um subfinanciamento histórico, o setor privado também segue um caminho de insustentabilidade. A substituição de seguros de saúde de longo prazo por produtos com horizonte curto está criando um ambiente de incerteza e falta de proteção para a população assegurada por planos e seguros de saúde.

O crescimento desses “novos produtos de financiamento” – como cartões de benefício e planos de saúde limitados – reflete um mercado cada vez mais fragmentado, sem a escala necessária para garantir a viabilidade de seguros que protejam contra eventos médicos de alto custo. Esses fatores, segundo o estudo, indicam uma crise que ameaça tanto o SUS quanto o mercado de saúde suplementar, com riscos sistêmicos para o futuro da saúde no país.

[III]

Com base nos achados do estudo do IEPS/UMANE, Armínio Fraga propõe ao Brasil a transição para um modelo híbrido de saúde, no qual o setor privado teria maior participação tanto na gestão quanto na prestação de serviços. Inspirando-se em exemplos de países europeus, ele sugere que o Brasil se beneficiaria da introdução de uma lógica de mercado em áreas específicas da saúde. Isso, em sua visão, poderia aumentar a eficiência, melhorar o atendimento e reduzir o peso sobre o sistema público.

Fraga também reconhece o subfinanciamento crônico que afeta o SUS há décadas. Ele admite que o SUS recebe 40% do total de gasto público em saúde para cuidar de 75% da população – que são 100% SUS dependente. Os outros 60% dos gastos em saúde vão para 25% da população que contam com planos/seguros de saúde e/ou desembolso direto – que também dependem do SUS (por exemplo em vigilância em saúde, urgência e emergência, SAMU, transplantes e demais tratamentos de alta complexidade, dentre outros). Fraga não mencionou o gasto tributário com o setor privado de saúde que foi de R$ 56 bilhões em 2022 (Dweck et al., 2022).

No entanto, o presidente do IEPS acredita que o financiamento exclusivamente público não é mais capaz de suportar a expansão da rede de saúde necessária para atender as demandas da população brasileira.

Se o SUS, com apenas 40% dos recursos públicos, consegue cuidar de 75% da população brasileira e ainda sustentar parte significativa dos serviços utilizados pelo setor privado, será mesmo que o problema está na falta de eficiência do sistema público ou no excesso de dependência do setor privado dos recursos estatais?

[IV]

Armínio Fraga, defende que – ao permitir uma maior integração do setor privado – seria possível otimizar os recursos disponíveis e garantir a sustentabilidade do sistema. A pergunta que fica é: se o SUS já faz tanto com tão pouco, será que a resposta é realmente entregar mais poder ao setor privado que, apesar de depender dos recursos públicos, continua beneficiado por isenções e subsídios?

Para Fraga, o setor privado poderia trazer soluções mais eficientes, especialmente em áreas de alta complexidade tecnológica, em que o Estado enfrenta dificuldades. No entanto, ele ignora que o próprio setor privado se beneficia dessas áreas de alta complexidade mantidas pelo SUS. Fraga argumenta que, com o suporte da iniciativa privada, o SUS poderia concentrar seus recursos nas áreas menos atraentes ao setor privado, como a atenção básica e a saúde pública em regiões menos lucrativas – o chamado modelo residual de saúde para pobres ou Atenção Primário Seletiva defendida pelo Banco Mundial após a Conferência de Alma Ata em 1978. Porém, se a lógica é deixar as áreas menos lucrativas para o SUS e as mais rentáveis para o setor privado, a questão que se impõe é: estamos realmente buscando eficiência ou um arranjo que continue beneficiando desproporcionalmente os interesses privados às custas do SUS e dos mais pobres?

[V]

Armínio Fraga tomou como referência o sistema de saúde britânico. Eu estudei o sistema britânico na minha tese de doutorado em 2012.

O Sistema Nacional de Saúde Britânico (Natinal Health System – NHS), historicamente celebrado como um modelo de medicina socializada com acesso universal e gratuito, está no centro de uma crise gerada pelas políticas neoliberais de privatização iniciadas nos governos trabalhistas de Tony Blair e Gordon Brown e aprofundadas pelo governo conservador de David Cameron. Originalmente estruturado no modelo de Beveridge, com financiamento predominantemente público, o NHS começou a ceder às pressões do mercado, adotando mecanismos de gestão privada que têm enfraquecido sua eficiência e fragmentado o sistema.

O processo de privatização, disfarçado como “modernização” e com o discurso de maior eficiência, introduziu a participação de corporações privadas no NHS. Hospitais privados foram integrados ao sistema, o que fragmentou o orçamento e retirou recursos das unidades públicas. Um dos exemplos mais significativos foi a criação dos Independent Sector Treatment Centres (ISTC), que transferiu bilhões de libras para prestadores privados, com pouca ou nenhuma melhora comprovada na qualidade ou na quantidade dos serviços oferecidos.

Além disso, o Private Finance Initiative (PFI), mecanismo que financiou a construção de hospitais privados, revelou-se um desastre financeiro, com custos projetados de 65 bilhões de libras até sua conclusão. Outro projeto falho foi o programa de informatização Connecting for Health, que consumiu mais de 20 bilhões de libras sem produzir ganhos concretos para o NHS. O resultado desses mecanismos de gestão privada foi a fragmentação do sistema e a perda de controle público sobre a saúde, aumentando os custos administrativos e abrindo portas para o colapso do modelo de medicina socializada britânico.

[VI]

A introdução de práticas competitivas em sistemas de saúde, como a realizada no NHS, inevitavelmente fragmenta a coordenação regional do sistema de saúde, levando a um aumento dos custos administrativos. Ao criar um ambiente competitivo, o Estado é forçado a gastar mais recursos para supervisionar, regular e contratar prestadores privados, além de garantir a integridade dos serviços prestados. Esse aumento nos custos de regulação e monitoramento acaba deslocando os recursos que poderiam ser alocados para cuidados assistenciais. A fragmentação do sistema gera a necessidade de criar novos mecanismos de controle e auditoria, resultando em uma burocracia mais robusta e, por conseguinte, no aumento dos custos administrativos, que consomem parte significativa do orçamento de saúde, prejudicando diretamente os recursos disponíveis para a assistência ao paciente. Dessa forma, a promessa de eficiência trazida pela competição muitas vezes se revela um fardo financeiro para o sistema público.

[VII]

No debate sobre a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) e a proposta de Armínio Fraga para um modelo híbrido, recordo do diálogo em “Fausto II”, de Goethe, onde o vigia da torre, Linceu, se vê fascinado por uma visão celestial. Deslumbrado pela aparição divina, Linceu perde sua função de vigilante, incapaz de discernir entre a realidade e a visão que o seduz:

Linceu:
“De nortear-se havia um homem?
De vigiar torre e portal?
Névoas vêm, névoas se somem,
Surge divindade tal!”

Assim como Linceu é ofuscado por essa imagem sublime e grandiosa, a defesa pela privatização da saúde e do SUS parece igualmente seduzir com promessas de eficiência e inovação vindas do setor privado. Contudo, assim como o vigia perde o foco de sua responsabilidade, essas propostas podem ofuscar a visão crítica das necessidades reais do sistema público de saúde. A privatização aparece como uma solução tentadora, mas que pode desviar o SUS de seu compromisso central: o acesso universal, integral e equitativo à saúde para todos.

[VIII]

Mas o deslumbramento inicial não é a única tentação. Podemos também recorrer ao diálogo entre Mefistófeles e Fausto, em que Mefistófeles oferece a Fausto prazeres imediatos e poder, em troca de sua alma. A promessa de Mefistófeles simboliza o perigo de pactos tentadores, que trazem recompensas rápidas, mas com consequências ocultas e devastadoras:

Mefistófeles:
“Ora, vamos, já que te decidiste,
Vamos ver, em pouco tempo verás,
Que meus conselhos levar-te-ão ao mais
Profundo gozo dos sentidos, por onde
A vida ao homem passa e se confunde.”

A promessa de soluções rápidas, assim como no pacto de Fausto, ecoa nas propostas de Armínio Fraga. O setor privado surge como Mefistófeles, oferecendo respostas aparentemente simples e eficazes para os problemas de subfinanciamento do SUS. No entanto, como no pacto de Fausto, a quebra do Direito à Saúde pela introdução de seguros públicos ou privados como parte do arranjo de cobertura universal pode trazer consequências devastadoras: o desmantelamento de um sistema universal e integral e a perda total do controle sobre a saúde para o setor privado, cujos interesses estão alinhados ao lucro do que ao bem-estar coletivo.

[IX]

Devemos lembrar que vivemos em uma fase neoliberal do capitalismo, marcada pela superexploração do capital, enquanto o projeto original do SUS fundamenta-se em uma concepção social-democrata pós-Segunda Guerra Mundial, de inspiração socialista. Como o professor Nelson Rodrigues dos Santos sempre nos lembrou, o SUS começou a ser minado (e desfinanciado) logo após a promulgação da Constituição de 1988. Todavia, o SUS resiste e permanece mais vivo do que nunca, salvando milhares de vidas todos os dias em todo o Brasil. É essencial que o Estado brasileiro honre sua dívida com o povo, promova uma reforma social que fortaleça os pilares do Estado de bem-estar social de 1988 e concretize plenamente o SUS constitucional em todo o território nacional. O SUS constitucional é um projeto de justiça social e de avanço democrático. Apostar em seu desmantelamento é como aceitar o pacto de Mefistófeles: um caminho aparentemente promissor, mas que leva a consequências devastadoras e compromete o futuro de nossa saúde pública.


Referência:

DWECK, E.; MORETTI, B.; MELO, M. F. G. C. de. Os desafios fiscais para a realização do direito à saúde e o fomento à base produtiva de saúde. In: GADELHA, Carlos A. G.; GIMENEZ, Denis M.; CASSIOLATO, José E. (coords.). Saúde é desenvolvimento: o complexo econômico-industrial da saúde como opção estratégica nacional. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2022. p. 176-205. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1660. Acesso em: 17 out. 2024.

Fonte: Outra Saúde / Fausto e Mefistófeles. Ilustração: F.X. Simm, 1899 (Wikimedia)


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