‘ArgenChina’? Especialistas esquadrinham reviravolta ideológica de Milei sobre o gigante asiático

Brasil Mundo política

Segunda, 21 de outubro de 2024

Nas últimas semanas, o presidente da Argentina, Javier Milei, fez um giro de 180 graus em sua política externa. De país execrado por ser “comunista”, a China se tornou em poucos meses um “parceiro comercial muito interessante”.

Durante a campanha e após assumir a presidência, em dezembro de 2023, Milei assumiu uma campanha acirrada contra a China e uma postura pró-ocidental. No entanto, a realidade econômica do país forçou uma mudança drástica em sua abordagem.

A situação provoca reflexões sobre a política externa da Argentina e a adaptação de Milei a um novo contexto global. O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, ouviu especialistas nesta segunda-feira (21) para tentar responder a pergunta que paira no ar: já caiu a ficha de Milei de que o Ocidente não está nem aí para a Argentina?

O país sul-americano, que enfrenta há décadas desafios financeiros significativos, tem altíssimos empréstimos internacionais para pagar, inclusive com a China.

No início de outubro, Milei descreveu a China como um “parceiro comercial muito interessante”, ressaltando que o país “não exige nada, a única coisa que pedem é que não sejam incomodados”.

Para o professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo Velasco, após tomar posse Milei “teve um choque de realidade” ao ter a real noção da importância da China para a economia argentina.

“Ele percebeu que evidentemente o país está em um processo de transição econômica, um cenário bem difícil. Está tentando controlar as contas, mas há um preço muito elevado, inclusive com o avanço brutal da pobreza. A Argentina precisa de apoio […], e ele sabe que pouca gente pode dar isso à Argentina como a China.”

O professor de relações internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), Matheus de Oliveira tem avaliação similar sobre o despertar de Milei.

“É um reconhecimento tardio por parte dele, mas que é um reconhecimento óbvio, que está minimamente familiarizado com a situação da Argentina, de que a China é um parceiro econômico imprescindível. Não é possível abrir mão, minimizar o papel que a China tem para a economia argentina, seja como destino importante de exportações, pelos investimentos que tem no país, seja também por conta dos mecanismos financeiros que existem entre os dois países.”

Ele acrescentou que os ataques de Milei contra a China demonstram como ele chegou ao cargo com “muitas caricaturas e com muitos estereótipos a respeito de questões vitais para o país, como é o caso das relações com a China”.

O apoio norte-americano pode até ser indispensável, avaliou ele, mas não é suficiente para enfrentar o problema do estrangulamento externo da economia, do setor financeiro e da dívida.

Para o cientista político da UERJ, a América Latina como um todo “tem caído cada vez mais na realidade” de que a relação sobretudo com os EUA tem trazido mais frustrações.

“Eles prometem, prometem, mas não entregam aquilo que prometem. Então é uma região que tem buscado diversificar laços, parcerias, olhando para outros atores e se posicionando”, disse Velasco, ao defender que a China tem sido muito melhor parceira para a América Latina que os EUA. “É um melhor investidor, financia mais e melhor. Tem um comércio mais potente com a região.”

Oliveira respaldou tal afirmação, relembrando que esse é o modus operandi chinês.

“A China não tem uma postura de interferência em questões internas dos países. A China não tem esse comportamento de querer barganhar muito posições políticas em troca de questões econômicas.”

Por outro lado, Velasco ponderou que, historicamente, quando os Estados Unidos enxergam a região como ameaçada pelo assédio de algum outro player extrarregional, eles tendem a responder, mostrando-se mais generosos em alguma iniciativa, como já ocorreu durante o período da Guerra Fria.

“E agora com a China, de alguma maneira assediando mais diretamente atores importantes — o Brasil, a Argentina, enfim, vários outros atores no espaço latino-americano e caribenho —, é natural que os Estados Unidos decidam reagir em alguma medida, de forma um pouco mais generosa.”

Uma dessas medidas norte-americanas tem sido a de parcelar dívidas e fornecer novos empréstimos para que o país siga a linha econômica de corte de gastos e diminuição paulatina do Estado.

Na visão do acadêmico da UERJ, demissões em massa de servidores públicos e cortes de financiamento de universidades, entre outras medidas elogiadas por instituições financeiras ocidentais e agências internacionais de crédito e de rating, contribuíram para os dez últimos meses de superávit na Argentina.

Entretanto o preço social tem sido alto, cujos efeitos de médio e longo prazo podem ser muito dramáticos para os argentinos, ponderou Velasco.

“Tenho contato com vários pesquisadores, parceiros na Argentina, eles estão vivendo uma situação como nunca viveram, nem nos piores momentos de crise, em termos de corte de verba, para pesquisa etc. Então é um preço muito alto, e aí a gente vê, claro, as contas melhorando, mas a população está mergulhando cada vez mais na pobreza.”

Pragmática, a China não deve perdoar a dívida argentina, mas pode reescalonar os prazos em benefício de um fôlego financeiro maior para o país.

Em contrapartida, deve exigir uma postura mais prudente da política externa argentina, opinou Velasco.

“Uma política externa que meça melhor suas estratégias, seus passos, e saiba calcular melhor as suas rotas de ação […]. Ou seja, que esse país resista à tentação, à inclinação de se devotar, por exemplo, a interesses diretamente dos Estados Unidos ou do Ocidente que possam prejudicar as ações chinesas.”

Caso a relação entre os países se azeite, as possibilidades de ganho são muito concretas do ponto de vista econômico, “que é justamente onde os Estados Unidos têm falhado“, opinou Velasco.

“A Argentina tem, há não muito tempo, uma experiência de ter construído um alinhamento automático com os Estados Unidos, de ter aprofundado significativamente as relações com os Estados Unidos, e isso, no final das contas, não resultou em benefícios muito concretos para o país”, disse Oliveira.

Mesmo que as relações “ArgenChinas” comecem a ir de vento em popa, o apoio da gigante asiática não tem como garantir crescimento econômico, geração de emprego e outros benefícios para a população, algo que ainda não ocorreu após cerca de um ano de governo.

Os entrevistados também opinaram que não importa quem ganhe no dia 5 de novembro nas eleições presidenciais norte-americanas, adiantou o analista da UERJ.

“A América Latina vai continuar não sendo prioritária para os Estados Unidos, vamos continuar na rabeira das prioridades deles”, completou Velasco.

Nesse sentido, Oliveira acrescenta, assim como a Argentina, os demais países da região devem buscar diversificar parcerias e construir alternativas para fugir de dependências muito desequilibradas.

“A questão não é se é melhor ou pior depender da China ou do Ocidente. O ruim é depender só de um parceiro ou de um conjunto muito restrito de parceiros”, concluiu ele.

Fonte: Sputiniknews / © AP Photo / Jose Luis Magana

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