Em comunidade pernambucana, pesquisadores registraram: 54% têm problemas auditivos, 49% desenvolveram alergias, 70% utilizam medicamentos diversos. SUS não está preparado. Novas fontes de energia são essenciais, mas governo precisa ser muito mais rigoroso com as empresas
Wanessa Gomes em entrevista a Gabriel Brito
O que se tratava, inicialmente, de um trabalho de campo de Saúde Coletiva e Agroecologia, acabou por se transformar na descoberta de impactos socioambientais gerados por projetos de energia renovável. Essa é a síntese da pesquisa liderada por Wanessa Gomes, professora da Universidade de Pernambuco no campus de Garanhuns, e André Monteiro, da Fiocruz.
Iniciado em 2020, o projeto de residência em Saúde Coletiva das instituições universitárias visava atender territórios quilombolas e de transição agroecológica. Os pesquisadores acabaram por constatar que tais comunidades têm suas vidas social e produtiva inviabilizadas pelas usinas de energia eólica. O processo de adoecimento é quase generalizado, o Estado e o SUS são ausentes e as empresas descumprem suas promessas de progresso econômico com dividendos sociais. Um enredo bastante conhecido, agora com a roupagem da sustentabilidade.
“Pensamos em observar questões de saúde mental, mas já descobrimos que existem outras doenças aqui, inclusive catalogadas no CID. É o caso da Síndrome da Turbina Eólica (STE) e a doença vibroacústica (DVA)”, contou Wanessa Gomes, em entrevista ao Outra Saúde.
Como relata, os índices de adoecimento são assombrosos. “Observamos que mais 54% das pessoas relataram alteração na acuidade auditiva, 31% incômodo visual por causa das sombras da torre (o efeito estroboscópico), e 49% apresentaram alergias, pois havia alteração da água. Segundo as pessoas entrevistadas, os moradores desenvolvem tais alergias em razão do que chamam ‘fogo branco’ que sai das torres de turbinas, a fuligem cai no teto das casas e vai para a cisterna com a água da chuva”, relatou.
Ao longo do trabalho de campo, os pesquisadores se depararam com os efeitos diretos da chamada “autorregulação dos mercados”, notoriamente apoiada pela direção do Estado brasileiro nos últimos anos, que tornou os Estudos de Impacto Ambiental um trâmite burocrático alheio às evidências científicas. Na prática, não há estudos reais de impactos.
“É preciso ter diálogo, porque essas empresas chegam trazendo promessas de que as comunidades vão contribuir para o desenvolvimento do país, não tem impacto nenhum etc. Tal discurso é aceito, até pela falta de falta de conhecimento dos impactos dessas torres. Isso está acontecendo agora em vários outros municípios, a exemplo de Serra Talhada (PE), onde as torres impactam comunidades”.
Apesar de já se reconhecerem problemas derivados do ruído das turbinas, os efeitos em saúde vão muito além. Há variadas doenças desenvolvidas em razão do estresse e da piora da qualidade de vida. E o SUS local, como relata Wanessa Gomes, ainda não responde à altura das necessidades das pessoas afetadas.
“Todos os mutirões de atendimento em saúde aconteceram com ajuda de profissionais das universidades, parceiros, Médicos e Médicas Sem Fronteiras, Médicas(os) do MST, mas os profissionais da unidade de saúde que cobre esse território não participaram em nenhum momento, mesmo sendo convidados. A comunidade reclama muito da falta de assistência, inclusive a falta de medicações, a exemplo da alergia à agua. Elas têm de pagar consultas em dermatologistas e comprar medicação por conta própria”, lamentou.
Do lado das empresas, apenas reuniões e pouca ação de reparação. Além da necessidade de reassentamento a pelo menos 2 quilômetros de distância dos parques eólicos, Wanessa Gomes critica a falta de compartilhamento da riqueza econômica ali gerada. Por sinal, algumas donas de empreendimentos são as mesmas multinacionais que comandam fontes de energia “suja” das matrizes mais tradicionais, como a AES.
“Precisamos desmistificar a ideia de que fontes renováveis de energia não têm impacto ambiental. Quando o poder público tiver essa consciência começará a exigir estudos antes da implantação dos empreendimentos, que hoje funcionam ao bel prazer das empresas, que negociam e impõem seus interesses com uma discrepância enorme de conhecimento entre as partes”, resumiu.
Confira a entrevista completa com Wanessa Gomes.
Primeiramente, como funciona sua linha de pesquisa em saúde coletiva em Garanhuns, nas áreas que contam com projetos de exploração de energia eólica?
Começou em 2020, depois de um chamado da própria comunidade e de movimentos sociais que atuam nas áreas vulnerabilizadas por usinas eólicas, em especial a Comissão Pastoral da Terra. Fomos convidados a conhecer os territórios atingidos pelos empreendimentos eólicos. Antes, atuávamos em Lagoinha e Pau Ferro, que são alguns sítios do município de Caetés. Fizemos o diagnóstico territorial, começamos a entrevistar pessoas e ouvir seus relatos.
Em 2022, fomos a uma reunião na comunidade de Sobradinho, outro sítio também em Caetés, onde ficamos chocados com as situações relacionadas ao meio ambiente e ao território, os animais locais, o sumiço das abelhas e dos sapos, e o incômodo do ruído das turbinas. Em Sobradinho, foram umas 15 famílias conversar conosco e todas tinham sacolas com várias medicações, principalmente medicações para dormir, benzodiazepínicos, ansiolíticos….
Quais os efeitos principais gerados na saúde da população? Já podemos dizer que relacionar seus efeitos apenas à saúde mental é uma noção obsoleta?
Ficamos chocados, víamos as pessoas chorarem, mostrarem muita tristeza… Foi um marco pra entendermos que havia algo a mais a afetar aquela comunidade. Percebemos que as pessoas tinham muitas questões relacionadas à saúde. Por meio de um edital do Inova Fiocruz, conseguimos aprovar um projeto de pesquisa na região, com duração de três anos, até o fim de 2025. Depois, esperamos iniciar outros projetos porque esta pesquisa abriu um leque de questões desconhecidas. Pensamos em observar questões de saúde mental, mas já descobrimos que existem outras doenças aqui, inclusive catalogadas no CID (Cadastro Internacional de Doenças). É o caso da Síndrome da Turbina Eólica (STE) e a Doença Vibroacústica (DVA).
Quando começamos a estudá-las e escutar os moradores da região, vemos que os sintomas coincidem com a descrição de tais síndromes. Escolhemos a comunidade de Sobradinho para iniciar a pesquisa. Passamos em todas as casas, fizemos um diagnóstico em saúde e observamos que mais 54% das pessoas relataram alteração na acuidade auditiva, 31% incômodo visual por causa das sombras da torre (o efeito estroboscópico), e 49% apresentaram alergias, pois havia alteração da água. Segundo as pessoas entrevistadas, os moradores desenvolvem tais alergias em razão do que chamam “fogo branco” que sai das torres de turbinas, a fuligem cai no teto das casas e vai para a cisterna com a água da chuva. Muitas pessoas não usam mais a água das cisternas.
Fizemos dois mutirões de saúde, uma equipe multiprofissional, médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos, psicólogos, uma grande diversidade de profissionais e seguimos acompanhando. Alguns dados são gritantes, como o fato de 70% da população usar algum medicamento de forma contínua oito anos depois das chegadas das torres; 64% utilizam a medicação para conseguir dormir, isso é muito alto para uma comunidade rural, mais ainda quando se trata desde crianças a idosos. Existe um conjunto de efeitos em saúde física e mental. Se as pessoas não estão conseguindo dormir, desenvolvem transtornos como ansiedade e depressão, além do próprio cansaço e estresse. Também pode se levar à hipertensão e doenças associadas.
Além de tudo isso, que são doenças provocadas pelo ruído audível, tem o ruído inaudível, que são os infrassons, sons abaixo de 20 Hz que também provocam problemas no corpo e na saúde, tanto humana quanto animal e vegetal. É uma espécie de vibração que as torres provocam, muito comum em aeroportos, e que também têm efeitos como hipertensão arterial. Causam ainda problemas endócrinos, porque aumentam produção de colágeno e elastina, coisas já comprovadas. São essas as condições que criam a doença vibroacústica.
Já a síndrome da turbina eólica é causada tanto por infrassons quanto pelos sons audíveis. Fizemos um estudo em parceria com a Uncisal, de Alagoas, no qual se fez uma audiometria e um diagnóstico da situação local. Enviamos o diagnóstico para as empresas que exploram essa matriz energética na área e elas tratam como se ainda não fosse algo cientificamente certo. Mas são pesquisas qualitativas que relatam sinais e sintomas e sua correlação com as usinas eólicas.
Neste ano, começamos nova etapa da pesquisa, com exames para avaliar perda auditiva, já relatada por muitas pessoas nos 31 exames que já fizemos até hoje. Dessas 31 pessoas que participaram, 82% dos participantes relataram dificuldade na compreensão auditiva, e aí com os testes vimos que quase 80% apresentam a diminuição da acuidade auditiva em pelo menos um dos ouvidos.
Também iniciaremos testes relacionados à saúde bucal, porque aqui temos outro aspecto gerado pelo estresse e a perda do sono devido ao ruído, que é o bruxismo, uma disfunção da articulação temporomandibular, causa ranger e travar de dentes, com consequentes lesões cariosas e até quebra de alguns dentes. Por fim, as equipes de saúde mental estão iniciando um trabalho de pesquisa e mapeamento de condições relacionadas às turbinas eólicas.
O SUS se preparou para lidar com isso? Como é a absorção destas pessoas pelo sistema de saúde?
É complicado. Ao menos em Caetés tivemos apoio da secretaria de saúde para atuar no território, porém, em termos estruturais precisamos de mutirões para ter uma estrutura de atendimento, pois tivemos até de levar macas e montar consultórios na casa das pessoas. Mas falta um apoio efetivo de profissionais.
Todos esses mutirões aconteceram com ajuda de profissionais das universidades, parceiros, Médicos e Médicas Sem Fronteiras, Médicas(os) do MST, mas os profissionais da unidade de saúde que cobre esse território não participaram em nenhum momento, mesmo sendo convidados. A comunidade reclama muito da falta de assistência, inclusive a falta de medicações, a exemplo da alergia à agua que vêm relatando. Elas têm de pagar consultas em dermatologistas e comprar medicação por conta própria.
Vimos o caso de uma senhora que precisou fazer empréstimo no banco para poder se tratar dessa alergia, além da compra de ansiolíticos e remédios para dormir, que muitas vezes não tem na unidade de saúde. O SUS local não vem conseguindo olhar para a especificidade das comunidades.
E o que fazem as empresas que exploram o negócio da energia eólica? Tem alguma relação de assistência com as pessoas afetadas?
Elas têm estado presentes fazendo pesquisas. Já houve algumas reuniões em grupo e as pessoas relatam que não suportam mais a presença da empresa só para fazer levantamento, sem nenhuma atitude realmente relacionada ao que estão passando. As empresas até aparecem nos territórios, mas ainda não fizeram nenhuma ação concreta de mitigação dos efeitos das usinas eólicas.
Quais as soluções mais recomendáveis, de acordo com a percepção que vocês desenvolveram nos trabalhos de campo?
Uma das coisas importantes a ressalvar é que não somos contra a energia renovável nem eólica. Questionamos a forma como o Brasil implementa esse tipo de fonte de energia, prejudicial a uma parcela da população.
Uma das coisas que observamos a partir da pesquisa e do relato das pessoas é a distância de uma torre para uma residência e a comunidade, porque essas pessoas são camponesas, não vivem dentro de casa e saem para trabalhar; há todo um modo de vida delas naquele território. Portanto, deve se olhar a distância dos próprios roçados para as torres, é fundamental.
Nessa comunidade de Sobradinho, conseguimos mapear uma distância máxima de 900 metros, a mínima era de 100, só que aí, com muita luta, já conseguimos realocar as pessoas que estavam abaixo de 200 metros, a partir de denúncias ao Ministério Público. Um relatório da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) de Pernambuco afirma que as empresas deveriam resolver os problemas das pessoas que vivem a menos de um quilômetro das turbinas, porque todas estão sofrendo as consequências.
Sugerimos uma distância mínima de dois quilômetros, até porque já vimos na literatura que até 1,5 km há afetação por infrassons. Um outro ponto é a questão do Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), pois hoje não existe legislação no Brasil a obrigar um EIA-RIMA antes da implantação de um parque de usina eólica.
Por fim, é preciso ter diálogo, porque essas empresas chegam trazendo promessas de que as comunidades vão contribuir para o desenvolvimento do país, não tem impacto nenhum etc. Tal discurso é aceito, até pela falta de falta de conhecimento dos impactos dessas torres. Isso está acontecendo agora em vários outros municípios, a exemplo de Serra Talhada, onde as torres impactam comunidades.
O discurso da empresa é muito bonito, só fala em benefícios, mas ignora as dificuldades, o incômodo que essas torres vão causar. E os afetados reais não são ouvidos, e sim moradores de vizinhanças menos atingidas ou que recebem um dinheiro e saem do território, enquanto quem fica não chega a assinar acordo algum e não é ouvido. É necessário pensar estratégias para implantação de torres social e ambientalmente responsáveis.
E ainda assim, para além do debate de saúde, entrando até no debate socioeconômico, esses projetos de energia renovável estão reproduzindo os velhos projetos das tradicionais fontes de energia elétrica, porque geram grandes impactos no território, extraem uma grande riqueza econômica e financeira e no final tal riqueza passa muito longe daquela comunidade. A contrapartida é muito baixa.
São duas facetas de prejuízo econômico, portanto, uma vez que as atividades locais também são prejudicadas, além de vermos lucros totalmente privatizados que não se evidenciam em melhorias dos serviços públicos.
Como dito no início, todo esse trabalho começou em função do acompanhamento de empreendimentos locais de agroecologia. As torres acabam mudando todo o ecossistema da região, os agricultores relatam perdas de produtividade, a criação de animais também é prejudicada, porque os animais sofrem com o estresse do ruído… Eles dizem, por exemplo, que as galinhas colocam metade dos ovos de anteriormente e dificilmente um deles se torna um pintinho, é quase um milagre. Já existem repercussões evidentes no modo de vida e na renda das famílias que produzem perto de usinas eólicas.
Em suma, precisamos desmistificar a ideia de que fontes renováveis de energia não têm impacto ambiental. Quando o poder público tiver essa consciência começará a exigir estudos antes da implantação de tais empreendimento. Hoje, funcionam ao bel prazer das empresas, que negociam e impõem seus interesses em cima de desinformação dos afetados, com uma discrepância enorme de conhecimento entre as partes. O Estado precisa estar no meio e proteger seus habitantes.
Uma coisa que nos impressionou neste trabalho de campo é que no final de nossa pesquisa com os moradores, fazíamos a seguinte pergunta: “Qual o seu sonho?” A principal resposta era: “sair do território. Antes essa terra era meu sonho, mas não quero mais morar aqui, não consigo viver”.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Arnaldo Sete / Marco Zero Conteúdo