Grupo de pesquisa revela dados sobre a situação deteriorante da categoria. Precarização e queda dos salários as obriga a jornadas que podem chegar a 80 horas. “Reforma” trabalhista aumentou a fragilidade. Mas há espaço para mobilização: trabalho de cuidado é mais necessário que nunca
A luta das trabalhadoras e trabalhadores da enfermagem por um piso salarial tomou as ruas do país nos últimos dois anos. A mobilização de um conjunto de categorias que reúne 3 milhões de profissionais (ainda que apenas parcialmente vitoriosa, devido a retrocessos judiciais) teve êxito em chamar atenção para as más condições de trabalho que as afligem – e também atingem outros segmentos da área da Saúde.
Contudo, é notório que as dificuldades vividas pelas enfermeiras no Brasil não se restringem à insuficiência da remuneração: também há as longas jornadas de trabalho, a necessidade de manejar múltiplos vínculos trabalhistas para sobreviver e as formas cada vez mais precárias de contratação, entre outros problemas. Para um grupo de pesquisa do Rio de Janeiro, uma palavra – ou melhor, um conceito – sintetiza a realidade que vivem essas trabalhadoras e trabalhadores: superexploração.
“Se nesse sistema o Brasil é obrigado a transferir valor para os países centrais, em um país onde a Saúde é 10% do PIB, isso também vai acontecer por meio da superexploração dos trabalhadores da saúde, uma área com uma penetração cada vez maior do capital multinacional”, explica Paulo Henrique de Almeida, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). A escolha conceitual conta com um importante pressuposto teórico: o cenário de exploração dessa categoria é indissociável do caráter dependente do país no mundo. Não por acaso, o Brasil sofre o assédio de potências que se valem de todo tipo de práticas predatórias para atrair sua força de trabalho da saúde, em especial as enfermeiras.
Também participantes do grupo de pesquisa Saúde, Sociedade, Estado, Mercado (Grupo SEM), a doutoranda da UERJ Thauanne Gonçalves e a professora da UFRJ Inês Leoneza conduzem pesquisas que oferecem uma visão mais aprofundada sobre as condições de trabalho hoje vigentes na enfermagem. Na entrevista, elas ofereceram dados concretos sobre como se dá a precarização que viveu a categoria nos últimos anos, em especial após a “reforma” trabalhista de 2017 – e os caminhos possíveis para defender um horizonte de trabalho digno contra o vagalhão neoliberal.
Salários que minguam, jornadas que se estendem
A Teoria Marxista da Dependência (TMD), fundamento teórico das investigações do Grupo SEM, consiste em um “método de compreensão da dinâmica capitalista”, particularmente útil para entender o que se passa na América Latina. Se hoje há no mundo nações ricas e nações pobres, explicam autores como Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio Santos, teóricos brasileiros que desenvolveram a TMD, uma coisa certamente tem a ver com a outra: na atual ordem do mundo, a riqueza dos países dependentes é sistematicamente extraída pelas potências imperialistas.
Essa transferência de valor, em termos mais conceitualmente precisos, não se dá apenas pelo envio ao exterior dos enormes lucros que aqui angariam as empresas estrangeiras, cada vez mais presentes no Brasil, ou por nossa dependência econômica de produtos e tecnologias importadas – ela também passa pela superexploração da força de trabalho. Nesse olhar, as condições desumanas em que labutam os trabalhadores do país – até mesmo os da saúde pública e privada, como defende o Grupo SEM –, verificáveis nos dados que veremos a seguir, não se explicam apenas pela ganância dos patrões, mas também pela condição subalterna da economia nacional.
Por representarem 52% da força de trabalho do Sistema Único de Saúde (SUS) – e 56% da força de trabalho da saúde nas Américas, de acordo com dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) –, “a enfermagem acaba sendo a face mais visível da superexploração” nesse setor da economia, avalia a professora Inês Leoneza, que atua como enfermeira há 37 anos. “É uma massa de trabalhadores enorme. Nesse ano, os registros no Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) passaram de 3 milhões, juntando cerca de 800 mil enfermeiros, 1,8 milhão de técnicos e 400 mil auxiliares de enfermagem”, complementa a pesquisadora e também enfermeira Thauanne.
Entre outros indícios, os estudos da dupla de enfermeiras identificaram no ano de 2021 um notável marco da superexploração da categoria: naquele ano, pela primeira vez, a remuneração média real das enfermeiras foi mais baixa que o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, como se vê na imagem a seguir. Ainda mais baixas são as remunerações dos técnicos e auxiliares, que se encontram estagnadas. A Reforma Trabalhista é apontada como um dos fatores que influenciam sobre esse cenário.
No gráfico produzido pelo Grupo SEM, a remuneração média das enfermeiras aparece em leve queda, mas nas entrelinhas é possível ler algo mais grave. Para impedir a diminuição de sua renda, as trabalhadoras têm multiplicado seus vínculos empregatícios – cada vez mais, fazem seguidos plantões em 3 ou 4 estabelecimentos. Ou seja: os salários oferecidos pelos patrões da Saúde no Brasil, na verdade, caem vertiginosamente, mas a acumulação de empregos impede que isso seja perfeitamente visualizado na renda média das trabalhadoras.
Os dados mais recentes, que remetem à última edição da pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, publicada em 2017, apontam que pelo menos 40% das enfermeiras e 36% das técnicas e auxiliares do país trabalham mais de 40 horas semanais. Informações posteriores ainda não foram consolidadas, mas há indícios de que essa porcentagem só cresceu desde então, com a aprovação da Reforma Trabalhista e a fragilização dos vínculos de trabalho. Como consequência, as jornadas que superam as 60 horas, absolutamente extenuantes e podendo chegar até mesmo a mais de 80 horas, já são cumpridas por centenas de milhares de trabalhadoras da enfermagem.
“A jornada de trabalho é uma exploração a olhos vistos para todo mundo. A maior parte da categoria faz jornada 12×36 [modelo no qual, em tese, o profissional trabalha 12 horas contínuas, seguidas por 36 horas de descanso]. Porém, como a maioria não tem um vínculo só, eles fazem 12 horas todos os dias, sem descanso nenhum, com uma falta de materiais e equipamentos cada vez maior. Além de exploração, é precarização, e mais importante, é falta de dignidade”, revela Inês.
Quando se leva em consideração que os sindicatos lutam para que seja regulamentada uma jornada de 30 horas, nota-se que o cenário ideal está distante: são menos de 15% as trabalhadoras que já cumprem uma jornada igual ou inferior a essa bandeira.
O grupo de pesquisadores indica diversos motivos para as dificuldades salariais e de reivindicações trabalhistas em geral que o segmento tem vivido. “Pela questão da escolaridade, é uma profissão que já tende a ser menor remunerada e ter condições de trabalhos inferiores. Em outras profissões da saúde, como a gente tem visto nas outras frentes da nossa pesquisa, também está ruim a situação. Mas na enfermagem é pior, porque nós somos majoritariamente de nível técnico, e não superior”, esclarece Thauanne.
Também não deixam de pesar os fatores de raça e gênero. “Não podemos esquecer que 85% da força de trabalho da enfermagem é de mulheres, quase metade delas negras, que histórica e socialmente já têm uma carga semanal de trabalho muito alta. A jornada de trabalho já é absurda, e a enfermeira chega em casa e tem que realizar sua carga de trabalho doméstico”, segue a doutoranda.
“A dificuldade da enfermagem impor suas pautas tem a ver com a própria formação sociohistórica da profissão. É uma profissão feminina, e isso influencia no poder de negociação e barganha dessa classe. Para além disso, é uma profissão que faz um trabalho de cuidado, que é historicamente não-remunerado, então não se reconhece socialmente como um trabalho de valor que merece uma remuneração digna. Eu quero enfatizar: não é que a enfermagem não lute, muito pelo contrário, ela luta muito. Mas, por várias razões, ela enfrenta mais dificuldades para alcançar conquistas”, conclui a pesquisadora da UERJ.
A luta renhida pelo orçamento da Saúde é parte do jogo que resulta nos baixos salários para os profissionais. A dependência, como lembram os pesquisadores, é determinante – são incalculáveis os bilhões de reais que, em vez de serem investidos na valorização dos trabalhadores da saúde pública, são gastos com insumos, medicamentos, vacinas e equipamentos comprados de empresas multinacionais, por não serem produzidos no Brasil. No setor privado, o cenário não é diferente: uma parcela cada vez maior da receita dos grupos econômicos da saúde suplementar está sendo direcionada para os bolsos de acionistas financeiros do exterior que neles investem gordas somas, reduzindo a margem que remunera os funcionários, cada vez mais explorados.
O papel das OSs na precarização
No âmbito das relações de trabalho, um organismo estranho que se infiltrou no SUS está se destacando como ponta de lança da precarização que atinge as trabalhadoras da enfermagem, mas também as demais profissões da saúde: tratam-se das Organizações Sociais (OSs), entes privados surgidos a partir de uma lei sancionada por FHC e que têm tido um papel cada vez maior na gestão de serviços públicos.
“As OS significam uma fragilização brutal de todas as categorias que estão submetidas a esse regime, que não foi criado à toa. Meu entendimento é que ele foi levado para a Saúde propositalmente no período do neoliberalismo do governo Fernando Henrique Cardoso, que deixou um legado brutal de subordinação dos trabalhadores e do país, com o objetivo político de aumentar a superexploração”, avalia Paulo Henrique de Almeida.
As informações de 2023 do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) reunidas pelas pesquisadoras revelam que, enquanto a quantidade de enfermeiros que são servidores estatutários – isto é, com estabilidade no emprego – do setor público caiu para 22,75%, quando há poucas décadas eram majoritários, enquanto os celetistas e os temporários (formas de contratação comuns nas OSs) subiram para, respectivamente, 23,94% e 23,83%. As consequências, múltiplas, têm sido sido objeto da atenção do Grupo SEM.
“Grande parte dos trabalhadores hoje tem contratos muito precários. No setor público, os concursos são cada vez mais raros, a maioria é processo seletivo simplificado. Isso muda a realidade da segurança do trabalho e também da capacidade de organização da categoria, porque você pode perder seu emprego a qualquer momento”, avalia Inês Leoneza.
Apesar de rebaixarem os salários e ampliarem as jornadas de trabalho de seus funcionários, os estudiosos apontam que a introdução das OSs não representou uma economia para o orçamento da Saúde. “Elas geram uma ineficiência monstruosa, principalmente por conta do grande troca-troca, com o maior exemplo sendo a Saúde da Família no Rio de Janeiro. O que acontece quando se tira uma OS e coloca outra, como é recorrente? Boa parte da equipe é mandada embora, então é preciso contratar novas pessoas e treiná-las, o que tem um custo. Eles escondem isso, então parece que a OS é uma solução milagrosa, já que a folha fica mais barata. É mentira, além de gerar ineficiência, ela piora a qualidade do cuidado e as condições de trabalho”, continua o professor Paulo Henrique de Almeida.
Aos que não se adequam à brutalidade do regime de trabalho, seja por exaustão ou discordância política, as OSs têm optado pela demissão sumária. “As OSs também trabalham muito com a questão das metas. O que a gente vem encontrando nas nossas pesquisas é que isso se traduz em aumento da intensidade de trabalho. O trabalhador se vê tendo que cumprir metas cada vez mais irreais – e, com a perda da estabilidade, pode acabar sendo demitido a qualquer momento se questionar essa lógica”, complementa Thauanne Gonçalves.
Não por outra razão, dados recentes apontam que 1 a cada 4 enfermeiros está desempregado no Brasil. Com 24,5% dos profissionais amargando o desemprego, a Enfermagem é o quinto curso de nível superior com maior índice de formados que não estão exercendo atividade remunerada, atrás apenas de História (31,6%), Relações Internacionais (29,4%), Serviço Social (28,6%) e Radiologia (27,8%).
Ofensiva imperialista
Nesse contexto de penúria para as categorias da enfermagem é que se processa uma nova e insidiosa manobra: as principais potências econômicas, em especial a Alemanha, se movimentam para atrair grandes contingentes de trabalhadores do Brasil e de outros países dependentes. Para isso, propagandeiam uma visão de gordas remunerações e boa qualidade de vida no Primeiro Mundo – mas, muitas vezes, a realidade que se encontra é outra.
“Esses países vivem uma crise de escassez de pessoas para trabalhar nesses postos. Mas eles não estão interessados em promover uma política de formação, mas buscam em outros países profissionais formados em alto nível com recursos públicos. Aqui no Rio de Janeiro, nós conhecemos muitos casos de pessoas formadas na UFRJ que migraram para a Alemanha, então imagine a quantidade de recursos estatais que foram investidos na formação dessas pessoas que estão lá fora”, exemplifica Thauanne.
Como denunciam entidades como o Conselho Internacional da Enfermagem e sindicatos de diversos países, e Outra Saúde vem cobrindo, esses trabalhadores geralmente demoram anos para conseguirem se registrar como profissionais de enfermagem, e são obrigados a recorrer a empregos informais, como cuidadores ou auxiliares, por baixos salários e em péssimas condições. A xenofobia e a falta de apoio para sua adaptação linguística e profissional, além da alta do custo de vida na Europa, são problemas comuns nos relatos dos que migraram.
Mesmo quando são autorizados a se registrar, sua remuneração segue sendo inferior à dos profissionais nativos – ainda que, por vezes, superior àquela que receberiam em sua terra natal. Isto é, na prática, confirma-se a tese de que sua exploração serve principalmente para resolver a baixo custo o problema da escassez de mão de obra nos países imperialistas.
Para os pesquisadores, é compreensível que muitos enfermeiros aceitem propostas do tipo, tendo em vista as dificuldades no mercado de trabalho nacional. O que causa estranhamento é que conselhos profissionais e até mesmo o Ministério do Trabalho não atuem de forma mais contundente para conter essa interferência estrangeira, ou até mesmo colaborem com ela.
“A nível individual, não há de se fazer nenhuma crítica às pessoas que migram, mas ao Estado sim. Além de se perder o recurso que foi gasto, esses profissionais seriam muito importantes para que o Sistema Único de Saúde operasse com todos os quadros que deveria e atendesse adequadamente toda a população. Falta uma política de empregabilidade”, sugere Thauanne.
Momento é favorável para a luta por valorização
A disputa internacional para atrair enfermeiras dos países dependentes demonstra que a superexploração dessas trabalhadoras no Brasil não significa que seu trabalho não seja importante – muito pelo contrário, demarca que há uma enorme demanda, que só cresce, pelo trabalho de cuidado que elas realizam. Em um movimento paralelo, a Saúde vem sendo cada vez mais entendida pelos Estados como um setor estratégico.
“A Saúde é um dos maiores setores econômicos do mundo, em qualquer lugar é gigantesco e no Brasil é cerca de 10% do PIB. Como é um setor enorme e de importância estratégica, isso significa que tem interesses de classe fortíssimos da burguesia contra os trabalhadores da área. As reformas dos últimos anos visam submeter esses trabalhadores, para aumentar as taxas de lucro”, diz Paulo.
Em sua visão, está na ordem do dia das tarefas para reverter a precarização um “um grande movimento contra a Reforma Trabalhista e pela revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal”, ferramentas da precarização do trabalho dos profissionais da saúde, respectivamente, por meio da fragilização dos direitos trabalhistas e da imposição de restrições orçamentárias à contratação de servidores públicos. “A luta popular foi fundamental para que exista o direito à saúde no Brasil, foi a mobilização social que tornou possível a reforma sanitária”, ele lembra.
Nesse sentido, a relevância crescente do trabalho de cuidado pode ser um dos principais argumentos para incendiar a luta reivindicatória das trabalhadoras da enfermagem pela dignidade que merecem. O próprio piso salarial que foi conquistado pela categoria, lembram os pesquisadores, ainda está abaixo do salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE. “A gente está vivendo um momento da história da humanidade em que as pessoas nunca viveram tanto. Quando elas vivem muito, elas requerem mais do sistema de saúde – e o apoio que elas precisam nessa idade avançada não é individual, é um apoio de equipe. Nesse trabalho de equipe, o papel central é da enfermagem, que acompanha o paciente ao longo do dia, faz a evolução dele, se torna uma espécie de gestora do cuidado”, aponta o professor da UERJ.
“Nós estamos entrando numa era histórica que é o momento da enfermagem, nunca foi tão favorável para a valorização da enfermagem. Há um espaço imenso de conscientização, e essa produção de conhecimento que a gente procura fazer tem compromisso com essa mudança. Sem contribuir com a organização dos trabalhadores, nosso trabalho estaria incompleto”, conclui Paulo.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Créditos: Breno Esaki/Agência Saúde DF