No Brasil, são mais de 40 mil novos casos por ano. Por regras arbitrárias de “mercado” e decisões políticas equivocadas, país não tem acesso a medicamentos mais baratos. É hora de tomar um novo caminho, de compromisso real com o SUS e os brasileiros
Por Susana van der Ploeg, para a coluna Saúde não é mercadoria
O mais recente Boletim Epidemiológico de HIV/AIDS, divulgado em 11 de dezembro de 2024, revela que em 2023, o Brasil registrou 46.495 novos casos de HIV, o que representa um aumento de 4,5% em relação a 2022. A maior concentração de casos ocorre entre jovens de 15 a 24 anos (23,2%), adultos de 25 a 34 anos (34,9%) e homens que fazem sexo com homens (HSH) (53,6%). Além disso, a epidemia afeta de maneira desproporcional a população negra, que corresponde a 63,2% dos casos (49,7% pardos e 13,5% pretos). Entre os 10.338 óbitos registrados em 2023, 63% foram de pessoas negras, sendo 48% pardos e 15% pretos. As mulheres negras, particularmente vulneráveis, representaram 63,3% das mortes femininas e 67,4% da taxa de infecção em gestantes. Esses números refletem desigualdades sociais profundas e estruturais que persistem no Brasil e que comprimidos diários, por si só, não resolvem.
O HIV/AIDS permanece um grave problema de saúde pública, marcado por desigualdades estruturais da sociedade brasileira que agravam o acesso a cuidados adequados. Nesse sentido, iniciativas como o Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDDS) e o Programa Brasil Saudável – Unir para Cuidar são fundamentais para integrar políticas públicas que enfrentem as raízes das iniquidades sociais, ao mesmo tempo que fortaleçam os princípios fundamentais do SUS: a equidade, integralidade e universalidade. Outra política pública fundamental é a estratégia nacional do Complexo Econômico Industrial da Saúde, que tem como objetivo primordial fortalecer o SUS e ampliar o acesso universal à saúde mediante o desenvolvimento de tecnologias e a produção local de insumos, medicamentos, vacinas, biotecnológicos e dispositivos médicos.
Entretanto, tais políticas públicas tendem a falhar ao ignorar mecanismos como a OMC, o Acordo TRIPS e as patentes, que perpetuam a dependência tecnológica dos países periféricos. Reduzir a vulnerabilidade e a dependência do SUS exige um enfoque específico nos monopólios farmacêuticos que fortalecem apenas as grandes farmacêuticas transnacionais.
Além disso, os gestores da saúde não podem se apoiar em discursos que confiem na “boa vontade da indústria farmacêutica para considerar os limites do SUS”. Para defender e promover o SUS é necessário que os gestores da saúde adotem uma postura firme frente aos interesses do mercado, que lucra às custas da nossa população. A voluntariedade dessa indústria é incompatível com as necessidades do povo brasileiro, vejamos os casos das licenças voluntárias.
A licença voluntária é um acordo entre o titular de uma patente e terceiros, permitindo a produção e comercialização de um medicamento mediante condições específicas definidas em contrato. Esse acordo pode incluir restrições territoriais, controle sobre a venda e fornecimento de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), além de condições sobre preços e demanda. Quando ocorre em escala global, envolve múltiplos produtores e países, permitindo que diferentes fabricantes produzam e distribuam o medicamento simultaneamente em regiões específicas. O caráter “voluntário” dessas licenças decorre do fato de que sua concessão depende exclusivamente da decisão e do interesse do detentor da patente.
O Brasil e seu povo têm sido sistematicamente excluídos das licenças voluntárias em escala global, como ocorreu com os medicamentos cabotegravir (GSK/ViiV) e lenacapavir (Gilead), injeções bimestrais e semestrais que se mostraram mais eficazes na profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV do que as opções atualmente disponíveis no SUS. Essas exclusões, que restringem o acesso a versões genéricas mais acessíveis, são profundamente preocupantes, especialmente à luz da expressiva contribuição brasileira nos ensaios clínicos conduzidos no país e no âmbito do SUS. Tal prática não apenas reforça desigualdades, mas também fere princípios éticos fundamentais ao negar às comunidades os benefícios diretos dos estudos nos quais participaram.
Os critérios para a exclusão do Brasil são baseados nas classificações de renda per capita do Banco Mundial, que classificam o Brasil como um país de renda média alta, em vez de considerar a incidência epidemiológica. Em 2023, segundo o Banco Mundial, o Brasil com 203 milhões de pessoas, tem um PIB per capita real de US$ 9.032. Essa classificação é completamente distorcida e desconectada da realidade social do país. Esse número, embora represente a média, esconde a imensa desigualdade e a desigual distribuição de riqueza no Brasil. A renda média não reflete a dura realidade das populações mais vulneráveis, que enfrentam sérias dificuldades de acesso a serviços básicos de saúde, educação e alimentação. As licenças voluntárias são alinhadas a esse critério falso e injusto, que perpetua barreiras ao acesso universal à saúde, agravando ainda mais as desigualdades existentes.
As licenças voluntárias são uma estratégia de mercado, excludente e discriminatória. Que sob o disfarce de um “plano de acesso”, reforçam o controle monopolista sobre os medicamentos e restringe o acesso universal. Com uma lógica colonialista e discriminatória, que exclui a maior parte das populações da América Latina, desconsiderando uma região onde as taxas de novas infecções estão aumentando. Isso por si só evidencia que não podemos depender dessa indústria para garantir um compromisso real com a saúde global.
Se a “boa vontade” não se manifesta no cenário global, o que podemos esperar no Brasil? Vejamos o caso da licença voluntária entre a gigante farmacêutica GlaxoSmithKline/ViiV e o laboratório público Farmanguinhos-Fiocruz para a transferência de tecnologia do dolutegravir. Contrato de transferência de tecnologia que só existe porque o Brasil concedeu patente para este fármaco, que se não anulada pelo judiciário, vigorará até 2026.
A licença voluntária formalizada sob uma “Aliança Estratégica” não representa um bom negócio para o SUS. Atualmente, cerca de 600 mil pessoas no Brasil dependem do dolutegravir, e, apesar da crescente demanda de mais de 40 mil pessoas por ano, o Ministério da Saúde o adquire por um preço exorbitante, cerca de 20 vezes maior que o genérico disponível no mercado internacional. A patente do dolutegravir é a principal barreira à entrada de concorrentes genéricos, mantendo os preços elevados. Esse contrato de transferência de tecnologia carece de transparência e não explica por que o Brasil paga anualmente 800 milhões de reais a mais por esse medicamento.
Além do custo elevado, o medicamento continua sendo integralmente importado da GlaxoSmithKline (GSK), com etapas de produção realizadas no Reino Unido, Espanha e Polônia. O contrato foi firmado em 2020, mas, até o momento, não houve avanços concretos para a fabricação local, perpetuando a dependência do Brasil de fornecedores internacionais. Esse cenário é um claro desvio da finalidade pública, pois os laboratórios públicos, como o Farmanguinhos-Fiocruz, deveriam atender às necessidades de saúde da população e promover a produção nacional de medicamentos essenciais. Em vez disso, estão sendo utilizados para atender ao interesse de grandes empresas farmacêuticas, resultando em uma subordinação aos interesses do mercado, em detrimento da saúde pública e da soberania nacional.
A lógica de mercado da indústria farmacêutica tem um impacto direto na vida das pessoas e não pode ser a principal força orientadora para atender às necessidades de saúde da população. O alto preço do dolutegravir é um exemplo claro de como o lucro das grandes farmacêuticas prevalece sobre o direito à saúde. Um único medicamento, com preço elevado e monopolizado por uma única empresa, sobrecarrega de forma desproporcional o orçamento do SUS e ameaça a sustentabilidade do acesso universal. Isso compromete a capacidade do sistema de saúde de oferecer tratamentos e de incorporar inovações seja para o HIV/AIDS como para outras doenças e condições, afetando diretamente aqueles que também dependem do SUS. Para garantir o acesso contínuo a tratamentos necessários e fundamentais, é imprescindível adotar medidas legais, como as licenças compulsórias, que assegurem como prioridade o bem-estar da população e não os interesses financeiros das grandes farmacêuticas.
Não podemos esperar pela “boa vontade” do mercado, o Papai Noel não chega para todas as crianças e em todas as casas. Mas podemos reafirmar a solidariedade, a importância da luta coletiva, da coalização entre sociedade civil e governo para com coragem, ousadia e alegria desafiar os interesses corporativos e priorizar a saúde pública. Por isso é sempre importante relembrar o discurso de Lula em 2007 na assinatura do decreto de licença compulsória do efavirenz: “O Brasil não pode ser tratado como se fosse um país que não pudesse ser respeitado. (…) Se não tiver com os preços justos, não apenas para nós, mas para todo ser humano no planeta que está infectado, temos que tomar essa decisão. Afinal de contas, entre o nosso comércio e a nossa saúde, vamos cuidar da nossa saúde”.
O ano de 2025 está à porta, trazendo a oportunidade de reconstruirmos caminhos. O Brasil pode e deve fazer melhor. Saúde a todo o povo brasileiro em 2025!
Fonte: Outra Saúde / Foto: Marcelo Camargo/ABr