Da colonização à atualidade, exposição aborda as viagens francesas ao Brasil

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As histórias da França e do Brasil se entrelaçam no tempo desde as viagens coloniais até as modernas narrativas em quadrinhos. Estudiosos de ambos os países dedicam suas vidas acadêmicas a entender essas ligações intercontinentais. É o que faz também a exposição Viajantes Franceses no Brasil: Releituras Críticas, em cartaz no Centro MariAntonia da USP até 22 de fevereiro de 2026. Organizada por professores da USP e da Universidade Sorbonne, em Paris, na França, a mostra traz pinturas, quadrinhos, mapas, fotografias e outros registros que abordam diferentes períodos das viagens francesas ao Brasil. A curadoria é dos professores Michel Riaudel, da Sorbonne, Tiganá Santana e Fernanda Pitta, da USP.

A exposição no Centro MariAntonia é parte de um projeto de mesmo nome que se desdobra em outras duas mostras. Uma delas será inaugurada no próximo dia 12, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, na Cidade Universitária. A outra mostra será virtual, acessível a partir de computadores e totens instalados na BBM, incluindo projeções nas paredes do Espaço Brasiliana – onde ficam a BBM, a Livraria João Alexandre Barbosa, da Editora da USP (Edusp), e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

A releitura da França no Brasil

Uma das obras mostradas na exposição Viajantes Franceses no Brasil é a série de três pinturas Pequenos Catecismos, do artista amazonense Denilson Baniwa, um militante pela causa indígena. Nessas pinturas, Baniwa faz uma releitura de gravuras do artista belga Theodore de Bry (1528-1598), em que o indígena é o agente da história contada nas imagens. Em um dos quadros de Baniwa, o europeu é retratado como um demônio que agride um homem indígena, numa alusão à catequese que apagou a cultura dos povos originários.

A crítica é reforçada pelo erotismo e por inscrições em idiomas indígenas presentes na imagem, que demonstram a insubmissão da figura atacada à língua portuguesa e ao pudor colonial. “O corpo e a língua passam a ser instrumentos de reinscrição dessa história contada por uma perspectiva diferente da narrativa oficial”, afirma Mariana Keller, assistente curatorial da mostra.

Outra obra presente na exposição é Feitiço do Fio, da artista e antropóloga baiana Glicéria Tupinambá, também uma liderança indígena. A obra inclui uma malha feita de fios vermelhos, que representa um manto tupinambá. Segundo Keller, o manto é recorrente nos trabalhos de Glicéria, mas também é um elemento presente nos relatos e coleções europeias sobre os povos originários brasileiros. 

Junto dele, são expostas fotografias da artista ao lado de sua obra. Glicéria é uma mulher indígena de cabelos naturalmente cacheados. Antes ela os alisava, mas hoje passa pelo processo de transição capilar — período em que uma pessoa para de usar químicas, como progressivas, e permite que o cabelo cresça em sua textura natural. Nas fotos, seus cachos se misturam com o tecido do manto, para demonstrar a reivindicação dessa textura como parte de sua identidade. Com isso, ela confronta ideologias coloniais do fenótipo “autêntico”, de cabelos lisos, atribuída aos povos originários.

A série Pequenos Catecismos, do artista amazonense Denilson Baniwa: crítica ao colonialismo – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Além das obras expostas, andando pela sala da mostra pode-se ouvir a produção Paisagem Sonora. Elaborada por Tiganá Santana e Paulo Lumattipela, ela consiste em áudios de entrevistas com artistas contemporâneos, que analisam de forma crítica a narrativa histórica colonial, e inclui uma documentação musical de viajantes europeus dentre os séculos 16 e 20. O objetivo é proporcionar uma imersão auditiva no ambiente.

As viagens e suas repercussões

A proposta dos organizadores da exposição é revisitar as viagens francesas de forma tanto crítica como criativa. “Escolhemos um escopo muito amplo e não pretendemos esgotar os assuntos, mas sim mostrar a diversidade e a complexidade do que chamamos de viagens francesas ao Brasil”, explica o professor Michel Riaudel, idealizador do projeto. “Uma viagem não é apenas um deslocamento, são as repercussões e as mudanças causadas nas pessoas envolvidas e como outros indivíduos, no futuro, vão analisar os documentos recriados”, conta Riaudel.  

Feitiço do Fio, da artista indígena Glicéria Tupinambá – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

É por isso que a mostra não aborda apenas viagens físicas, mas também as trocas culturais e suas repercussões. “Por exemplo, um escritor da Guiné, Tierno Monénembo, escreveu um romance que se passa na Bahia, em francês. E uma pesquisadora descobriu que ele se inspirou nas obras de Pierre Verger (fotógrafo francês) sobre o País. Então sua viagem ao Brasil alimentou um romance francófono africano”, conta Riaudel. 

A exposição é resultado de parceria entre a Faculdade de Letras da Sorbonne e a USP, representada por diferentes unidades, como o IEB, a BBM, o Centro MariAntonia, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária. Ela faz parte da Temporada Brasil-França, um decreto ministral assinado pelo presidente da França, Emmanuel Macron, que incentiva o intercâmbio entre os dois países.

As histórias em quadrinhos e a cartografia

Na abertura da exposição Viajantes Franceses no Brasil: Releituras Críticas, no dia 31 de outubro passado, foram realizadas duas mesas-redondas. A primeira, com o título As Viagens pelo Brasil e os Quadrinhos, abordou o uso das histórias em quadrinhos (HQs) na formação de narrativas coloniais. “A história precisa de contradições e questionamentos trazidos pela ficção”, disse o ilustrador Marcelo D’Salete durante a discussão. 

Além de contarem sobre seus projetos pessoais, D’Salete, a cartunista Luli Penna e o antropólogo André Toral discutiram a mistificação da figura indígena, retratada de forma neoclássica em imagens produzidas por europeus — e como grande parte delas moldou a interpretação da figura dos povos brasileiros através do mundo. Toral fez referência ao pintor francês Jean-Baptiste Debret, que no século 16 fazia sucesso na França com suas reproduções exóticas de pessoas do Brasil. “Ou o indígena é usado como herói genérico ou, quando querem caracterizá-lo como figura irracional e canibal, o deformam”, adicionou Penna. 

A segunda mesa-redonda, Presença Indígena nas Festas e na Cartografia Francesa, foi aberta pela professora Caroline Tratot, da Universidade Gustave Eiffel, na França. Em seu discurso, Tratot se referiu a uma espécie de “obsessão” de Catarina de Médici, uma das rainhas da França no século 16, que colecionava objetos vindos do Brasil. “Catarina de Médici parece ter mantido laços com o Brasil ao longo de toda sua vida” disse Tratot, lembrando que a rainha promoveu a presença de indígenas brasileiros em uma festa na corte francesa.

Em seguida, a historiadora francesa Charlotte de Castelnau-L’Estoile e a professora da USP Iris Kantor discutiram a cartografia do período colonial. L’Estoile apresentou uma perspectiva não convencional: a parceria entre povos originários e franceses durante a breve ocupação francesa no Rio de Janeiro, entre 1555 e 1567, quando foi estabelecida a colônia França Antártica. De acordo com a historiadora, unidos por seu inimigo comum, Portugal, os dois povos colaboraram nesse período, o que, segundo ela, é mostrado com evidência pela cartografia francesa.

Já Kantor contou sobre o fabulário do “País das Amazonas”, um lugar mítico retratado por europeus em uma ilha misteriosa nos mapas, onde uma tribo de mulheres brasileiras vivia sem homens. “Com grandes membros, brancas, nuas, de vergonhas tapadas e cabelos compridos é como eram descritas essas figuras, conforme registros oficiais”, disse a professora. “Uma delas, na batalha, equivaleria a dez homens.”

O uso dos quadrinhos na formação de narrativas coloniais foi debatido numa das mesas-redondas ocorridas na inauguração da exposição, no dia 31 de outubro – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A exposição Viajantes Franceses no Brasil: Releituras Críticas fica em cartaz até 22 de fevereiro de 2026, de terça-feira a domingo e feriados, das 10 às 18 horas, no Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, região central de São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do metrô). Entrada grátis. Mais informações estão disponíveis no site do Centro MariAntonia

* Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro

Fonte: Jornal da USP / Foto: Marcos Santos/USP Imagens

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