Por Prof. Waldeck Alves – Domingo, 16 de novembro de 2025
Assistir à minissérie da Globoplay sobre Collor de Mello, o famoso caçador de marajás, é revisitar memórias de um adolescente que não fazia ideia do processo político que estava em curso. Lembro de chorar com a morte de Tancredo Neves. Minha família, pobre, foi duramente afetada pela hiperinflação do descalabro do governo Sarney. Foram tantos planos econômicos que vivíamos encurralados na corrida dos preços. Corria-se ao açougue antes da carne subir. O pobre não podia planejar nada , a inflação não permitia. Os congelamentos de preços esvaziavam as prateleiras; disputava-se um quilo de arroz e feijão.
Quando mostrei aquelas imagens ao meu filho, ele se assustou: “Parece filme de terror, pai.” E era, filho.
Os militares entregaram um país venezuelizado: inflação galopante, dívida pública explosiva, investimentos minguados, indicadores sociais e econômicos entre os piores da América do Sul. Foram especialistas em empobrecer e quebrar o Brasil. A redemocratização trouxe um sopro de liberdade política e esperança coletiva. As manifestações pelas Diretas Já talvez tenham sido o único grande evento público em que se lutou por um direito que era, de fato, de todos.
A Constituição de 1988 , a tão chamada “cidadã” , inovou ao juridificar direitos e garantir políticas públicas. O SUS foi um marco de universalização da saúde. A Carta de 88 fez o país sonhar com um novo tempo.
Nesse clima surge a eleição de 1989: a primeira com voto direto após a ditadura. O Brasil tentava se reencontrar.
A disputa era pulverizada: 22 candidatos. Nomes de peso dividiam o cenário , Ulisses Guimarães, o artífice da Constituição; Lula; Brizola, liderança central da centro-esquerda; Mário Covas; Paulo Maluf; Roberto Freire; Aureliano Chaves; Fernando Gabeira; Enéas, e tantos outros. O país saía da ditadura com uma geração inteira tentando ocupar o espaço de liderança e apresentar um projeto nacional aceitável ao eleitor.
Tínhamos um país empobrecido, sufocado por inflação crônica, extrema pobreza elevada, economia fechada, indústria sucateada e dívida pública alta. A ditadura recorrera várias vezes ao FMI; em 1983, o Brasil quase quebrou, sem capacidade de honrar pagamentos.
É nesse cenário que aparece um playboy de Alagoas, boa aparência, grande retórica, herdeiro de uma família oligárquica. Ele havia sido eleito governador com apoio da esquerda local, prometendo reformulação administrativa e cobrança de dívidas dos grandes usineiros. De repente, no salto da pretensão, deixa o MDB e migra para o PRN para se lançar candidato a presidente.
A mídia abraçou o mote do caçador de marajás. Mas ninguém perguntava como Alagoas , um dos estados mais pobres do país, com servidores ganhando os piores salários do Nordeste ,poderia ter marajás. Mas colou. O azarão que começou com 1% nas pesquisas virou líder disparado no primeiro turno. A imagem do “salvador da pátria”, do homem de bem, conservador, defensor da família, antipolítico e anticorrupção, embalou o eleitorado.
Parece déjà-vu de 2018.
Com marketing agressivo, explorando as mazelas do governo Sarney, o medo do “comunismo lulista” e o fantasma do trabalhismo brizolista, a eleição virou Collor contra a esquerda e a centro-esquerda. O segundo turno foi Collor x Lula.
Collor transformou-se num fenômeno político. Tornou-se o porto seguro das elites, da Faria Lima da época, e dos grupos mais ricos na guerra contra o “Lulismo-comunismo”. Falar em valorização salarial ou reforma agrária era tratado como ameaça à propriedade privada e prelúdio da revolta proletária.
Collor encarnou os anseios da classe dominante, caiu nas graças da grande mídia, e a Globo ainda editou o último debate para sugerir que ele havia se saído melhor que Lula.
Eu, adolescente, não entendia tudo aquilo. Confesso: me encantei com a imagem de virilidade e convencimento que o marketing vendia.
Transformaram-no num mito: um suposto “deus grego” capaz de recolocar o Brasil no rumo da grandeza.
Mas nada escondia o óbvio , Collor era filho de oligarquia, beneficiário hereditário do poder. A política como patrimônio familiar, de pai para filho.
O fenômeno Collor apenas reciclou os vícios históricos do país: fabricar uma imagem distante das verdadeiras demandas do povo. O velho travestido de novo. Ele, que acusava Lula de ameaçar propriedade privada, confiscou a poupança do país num ato arbitrário , vendido como “revolucionário” para salvar o Brasil , permitindo que cada brasileiro sacasse apenas 50 mil cruzeiros (equivalente hoje a cerca de 3 mil dólares). O Brasil foi roubado à luz do dia sob as falsas promessas de Zélia Cardoso: “É para o bem de todos.” Vieram o ódio, a decepção e o impeachment.
A primeira eleição da redemocratização terminou em frustração.
Collor virou arquétipo dos nossos vícios: a forma como enxergamos política, eleições, e a facilidade com que o eleitor se deixa levar por discursos vazios, retórica mistificadora e promessas de salvação.
Collor não é apenas passado.
Ele é um fantasma bem vivo que continua assediando nossas eleições.