Em manobra diversionista, Planalto conseguiu incluir Estados no foco das investigações — mas atiçou governadores. Vem aí a disputa pelo comando da comissão, e governo tem contra si parte do MDB e PSDB. Hoje, no STF, votação decisiva
por Maíra Mathias e Raquel Torres
UMA LIMONADA
Após duas horas de divergências entre senadores da base governista e da oposição, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), finalmente instalou a CPI da Covid. E coube a ele fazer do limão uma limonada ao espremer dentro do pedido de investigação das ações e omissões do governo federal na pandemia a proposta de aliados do Planalto de investigar também governadores e prefeitos.
“Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai só vir para cima de mim”, temia Jair Bolsonaro, ao defender exatamente a ampliação do escopo da comissão na fatídica conversa com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO). “No Planalto, a avaliação é que, com muitas frentes de trabalho, o foco da CPI no governo pode acabar diluído”, escreveu o Estadão.
Ao unir a CPI original e o que estava sendo chamada de CPI paralela, Pacheco impôs uma ressalva, no entanto: os senadores só poderão investigar o uso dos recursos repassados pela União com o carimbo de prevenção e combate à pandemia.
“Quem tem frio que puxe o cobertor”, tuitou o ministro das Comunicações, Fábio Faria, antecipando a estratégia do governo, que deve insistir na tese de que distribuiu os recursos e coube aos govenadores e prefeitos fazer a gestão da pandemia.
Os governadores reagiram com críticas. “A gente vê que o governo e seus aliados têm outra intenção ao incluir governadores e prefeitos. O interesse é diversionista: desfocar o trabalho”, disse o tucano Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), para quem a intenção é justamente “terceirizar responsabilidades. “Nossa preocupação é eles tentarem abarcar todos sem chegar a nenhum resultado”, afirmou o governador capixaba Renato Casagrande (PSB), para quem a CPI ficou “no limite da legalidade”. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), também foi na mesma linha, dizendo que Bolsonaro tenta transferir “seus graves erros e equívocos” para estados e municípios.
DEIXA PRA DEPOIS
O foco do Planalto agora é adiar ao máximo o funcionamento da CPI, condicionando as reuniões ao retorno dos trabalhos presenciais –e até à vacinação de senadores, funcionários e depoentes, ponto que foi defendido ontem pelo líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), e deveria empurrar o início das investigações para o final do ano. Ele chegou a argumentar que a CPI deveria ter como membros apenas senadores que não integrem os grupos de risco para a covid-19 – o que, em tese, excluiria todos aqueles com mais de 60 anos.
O governo conta com o apoio de Rodrigo Pacheco, que tem argumentado que a CPI só deve funcionar em formato presencial, por ser um “órgão de natureza investigativa, que tem interrogatórios, inquirições de testemunhas sobre as quais deve-se garantir a incomunicabilidade, exame de provas periciais, sigilo de documentos”.
Mas, ao que parece, essa decisão não caberá a ele, mas ao presidente da CPI, que será eleito pelos membros da própria comissão.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL), que já tem assento garantido na CPI e é cotado como relator, está defendendo que “a investigação se faz com naturalidade até por meios eletrônicos porque está tudo mais ou menos comprovado”. Mas há também quem argumente que a comissão pode começar no modelo virtual e depois “virar totalmente presencial”, caso do líder do Podemos no Senado, Alvaro Dias (PR).
O plenário do STF julga hoje o pedido que obrigou Pacheco a instaurar a CPI. De acordo com a apuração de muitos veículos de imprensa, a tendência é que a Corte deixe com o próprio Senado a escolha sobre a forma dos trabalhos do colegiado – se presencial, por videoconferência ou em um modelo híbrido. A avaliação geral entre os ministros é que dizer como a CPI deve funcionar seria uma ingerência do Judiciário no Legislativo.
OS INTEGRANTES
Por tudo isso, a composição da CPI e a eleição do seu presidente são pontos centrais. E, até o momento, a balança está pendendo contra o Palácio do Planalto.
Dos 11 titulares prováveis, apenas quatro são ligados ao governo Bolsonaro: Ciro Nogueira (PP-PI), Jorginho Mello (PL-SC), Eduardo Girão (Podemos-CE) e Marcos Rogério (DEM-RO). Há cinco nomes que são considerados oposição ao governo: Humberto Costa (PT-CE), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Eduardo Braga (MDB-AM) e Renan Calheiros (MDB-AL).
As duas vagas restantes são de Otto Alencar (PSD-BA) e Omar Aziz (PSD-AM) – e é sob eles que está a mira do governo, disposto a negociar cargos por apoio na comissão. Mas, ontem, Aziz já se posicionou contra os interesses do Planalto ao criticar parlamentares que tentavam adiar a instalação da comissão – e tem um histórico de críticas em relação ao ex-ministro da saúde, Eduardo Pazuello.
O comando da CPI deve ser definido por votação dos membros da comissão em até dez dias. Até agora, o nome mais cotado para presidir a comissão é o do senador Tasso Jereissati que, recentemente, afirmou que Bolsonaro tem um “problema psiquiátrico”. Mas também está no páreo algum dos indicados do PSD.
Caberá ao presidente definir os procedimentos das reuniões, como, por exemplo, se os trabalhos serão remotos ou presenciais. Também parte dele a indicação do relator.
Por tradição, a relatoria caberia a Randolfe Rodrigues porque partiu dele a requisição da CPI, mas o MDB atua fortemente pela posição, que ficaria ou com Renan Calheiros ou com Eduardo Braga, que é do Amazonas – um dos foco da CPI por conta da atuação de Pazuello e seus correligionários na crise do oxigênio.
Além dos 11 senadores titulares, a CPI tem sete suplentes. O prazo para a conclusão das investigações é de 90 dias.
CRIMES NÃO FALTAM
A comissão especial de juristas criada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para avaliar a gestão federal no combate à pandemia concluiu que Jair Bolsonaro praticou diversos crimes ao impedir que medidas adequadas ao combate da covid-19 fossem tomadas, fundando uma “República da Morte” no país.
O grupo de juristas é presidido pelo ex-ministro do Supremo Carlos Ayres Britto e composto por outros nove juristas e advogados, entre eles Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment contra Dilma Rousseff.
Falando nisso, o Estadão apurou que a comissão já formulou um pedido de impeachment a ser apresentado à Câmara. Será por crime de responsabilidade. Os juristas afirmam que Bolsonaro atentou contra a Constituição não só ao violar seu dever de zelar pela saúde pública, mas também ao criar obstáculos à sua efetivação. Como exemplo, citam os vetos à lei que obriga o uso de máscaras, liberando a obrigatoriedade em comércios, templos, escolas, etc.
A comissão também identificou crimes de homicídio e lesão corporal na conduta de Bolsonaro. Argumenta que milhares de vidas teriam sido preservadas se o presidente “tivesse cumprido com o seu dever constitucional de proteção da saúde pública”. Dão como exemplos a suspensão da compra da CoronaVac, a recusa em comprar vacinas da Pfizer e a campanha contra medidas de isolamento social. “Os juristas avaliam que, mesmo que não fosse possível provar cientificamente que milhares de mortes e lesões corporais poderiam ter sido evitadas, é suficiente, para fins de responsabilização, que se demonstre que a realização da conduta devida teria diminuído o risco”, explica a coluna de Fausto Macedo.
Por fim, a comissão concluiu que há muitas razões para que Bolsonaro responda por crime contra a humanidade perante o Tribunal Penal Internacional. “Por meio de sistemáticas ações e omissões, o governo Bolsonaro acabou por ter a pandemia sob seu controle, sob seu domínio, utilizando-a deliberadamente como instrumento de ataque (arma biológica) e submissão de toda a população“, diz o texto.
O grupo argumentou ainda ser legítima a atuação do Tribunal Penal Internacional diante do “patente imobilismo” do procurador-geral da República, Augusto Aras, em analisar representações sobre o tema.
PERIGO À VISTA
Pelo menos 18 estados já começaram a flexibilizar as medidas de isolamento social que estavam começando a dar resultado. A reportagem do Estadão mostra que as reaberturas ocorrem em um amplo espectro. Mato Grosso e Mato Grosso do Sul liberaram todas as atividades econômicas, mantendo apenas um toque de recolher. O Ceará reabriu o comércio com horários restritos. São Paulo permitiu aulas presenciais e torneios esportivos, mas o comércio fica apenas com serviços ‘drive-thru’ e ‘take away’.
Um dos pontos que mais chamam a atenção é que só três estados – Amapá, Minas Gerais e São Paulo – continuam com bares e restaurantes fechados para o público.
Para comparação, o primeiro-ministro do Reino Unido (e ex-negacionista da pandemia) Boris Johnson disse ontem que é preciso cuidado com o desconfinamento por lá. Segundo ele, a incrível redução dos casos e mortes no país não é ainda fruto da rápida vacinação, mas do rigoroso lockdown imposto desde o fim de dezembro. Só em março as escolas foram reabertas. Agora, um mês depois, foi a vez do comércio não-essencial, salões de beleza e terraços de bares e restaurantes. Mais de metade da população britânica adulta já recebeu uma dose da vacina, e 12% receberam as duas.
Ontem o Brasil chegou ao quarto dia seguido com média móvel de mortes acima de três mil: está em 3.051, com 3.687 novos registros.
FALTA DE ORIENTAÇÃO
O ministério da Saúde, Marcelo Queiroga, disse ontem que mais de 1,5 milhão de pessoas ainda não voltaram para tomar a segunda dose das vacinas dentro do prazo certo, estipulado pelo plano de imunização. Pode não parecer, mas é muita gente: como só sete milhões de pessoas receberam as duas doses até agora, dá para dizer que quase 20% de quem deveria ter tomado o reforço está com o esquema atrasado. Como se sabe, desse jeito a proteção fica prejudicada.
É um problema inesperado? Não, e uma solução deveria ter sido planejada com antecedência. Mas só agora a pasta disse que vai conversar com Conass e o Conasems (que reúnem secretários estaduais e municipais de Saúde) para orientar a busca ativa dessas pessoas. “Falta uma grande campanha de mobilização explicando sobre a exigência de duas doses. Poderíamos ter feito cadastramento, enviado e-mail, mensagem até por SMS, como todos os países estão fazendo, para as pessoas voltarem aos locais de vacinação”, disse a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações de 2011 a 2019, ao Estadão.
Em vez disso, o que acontece é que os vacinados são informados sobre o retorno no momento em que tomam a primeira dose, e a data é marcada no cartão. Se a pessoa não entende ou tem dificuldade para ler (ou simplesmente esquece), fica por isso mesmo. A reportagem sugere ainda que, em alguns municípios, podem estar faltando vacinas para a segunda dose. No fim de março, o Ministério passou a orientar que não se reserve mais metade dos lotes para esse fim.
Em tempo: Queiroga havia pedido à OMS que antecipasse o envio de doses da Covax Facility para o Brasil. Isso não vai acontecer, observa o colunista do UOL Jamil Chade. No seu cronograma atualizado de entregas, a agência manteve a estimativa de 10 milhões de doses até junho, mesma quantidade divulgada em janeiro.
TERÁ 30 DIAS
Ontem comentamos que a Anvisa ainda não aprovou a importação da Sputnik V porque a União Química, que será responsável pela comercialização, não forneceu documentos pendentes. O prazo para a empresa responder às exigências seria o dia 16 de maio. Mas o governo do Maranhão, que pediu autorização para comprar 4,5 milhões de doses, procurou o STF para uma definição.
O ministro Ricardo Lewandowski decidiu que a agência tem até o dia 28 de abril para se manifestar. Se não o fizer, o governador do estado Flávio Dino (PCdoB) poderá comprar, aplicar e distribuir os imunizantes, mesmo sem aval do órgão.
Em paralelo a isso, o consórcio da Frente Municipal de Prefeitos disse ter manifestado à Rússia o interesse em adquirir 30 milhões de doses.
AGORA, A JANSSEN
Agências de saúde dos Estados Unidos recomendarem uma pausa temporária na vacinação com o imunizante da Janssen (da Johnson & Johnson) depois que foram identificados alguns casos incomuns de coágulos sanguíneos em pessoas vacinadas. O pedido foi feito pela FDA (equivalente à Anvisa) e pelo CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças do país). A pausa não é obrigatória, mas alguns estados já começaram a suspensão.
Como se observou com vacina da AstraZeneca, trata-se de um problema bem específico, em que há ao mesmo tempo coágulos e baixa contagem de plaquetas. Outra semelhança é a raridade: até agora, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças do país) está analisando seis casos em mais de seis milhões de vacinados. Todas as pacientes são mulheres de 18 a 48 anos – no total, cerca de um milhão de vacinados são mulheres com menos de 50 anos – e os sintomas apareceram entre seis e 13 dias após terem recebido o imunizante. Uma morreu, e outra está internada.
Mas as investigações estão apenas começando e ainda não foi demonstrada uma relação de causa e efeito, no caso da Janssen (para a AstraZeneca, como se sabe, a agência reguladora europeia reconheceu o problema como um efeito adverso raro da vacina). A recomendação é para que a pausa seja mantida, por cautela, até que haja conclusões.
Enquanto isso, as autoridades esperam desenvolver e apresentar novas diretrizes. Isso porque, como já dissemos por aqui, a condição é tratável, mas para isso os sintomas precisam ser reconhecidos pela população e pelos profissionais de saúde. Além do mais, o tratamento adotado deve ser diferente do convencional, que se baseia em medicamentos diluidores do sangue. Com baixo nível de plaquetas, tais remédios podem na verdade ser perigosos.
Há uma suspeita de que a tecnologia que baseia as vacinas da Janssen e da AstraZeneca possa ter a ver com o efeito, e isso é algo que a FDA pretende investigar. Uma hipótese é a de que uma rara resposta imunológica esteja relacionada aos adenovírus usados por esses imunizantes como vetores. Se a relação vier a se confirmar, o efeito deve ser observado também na Sputnik V e na vacina da Cansino.
PASSANDO FOME
Quase 60% dos domicílios brasileiros tiveram algum grau de insegurança alimentar entre agosto e dezembro do ano passado. Isso dá mais de 125 milhões de pessoas que não comeram em quantidade e qualidade ideais. Entre eles, 44% diminuíram o consumo de carnes e 41% reduziram as frutas. E em 15% desses domicílios houve insegurança alimentar grave, ou seja, falta de comida. Nas famílias com crianças de até quatro anos, a situação foi pior: mais de 70% viveram insegurança alimentar e 20% passaram fome.
Os dados são da pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a UFMG e com a UnB. Informações do site outra saude.