Professores da USP analisam a obra do escritor tanzaniano radicado na Inglaterra desde os anos 60
Por Juliana Alves – Domingo, 24 de outubro de 2021
“Por sua penetração intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes.” Para a Academia Sueca, essa é a razão de o escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah ser o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2021. Mas o que representa essa homenagem a Gurnah? Entregar o prêmio ao primeiro escritor africano negro desde 1986? Celebrar suas obras, que contêm temas atuais (como a questão dos refugiados) e críticas ao eurocentrismo? Ou mostrar pelos livros do escritor olhares diferentes sobre a África oriental? Os professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Rita Chaves e Paulo Daniel Farah explicam esses e outros aspectos da premiação e da obra do escritor, destacando a importância de reconhecer Gurnah e seu trabalho mundialmente.
Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na FFLCH, Rita Chaves lembra que o Prêmio Nobel considera aspectos políticos e estratégicos que vão além do domínio literário. Ela comenta que, pelo critério alegado pela Academia Sueca, a relevância da obra de Gurnah está na sua capacidade de expor realidades complexas, oferecendo um panorama de uma parte da África marcada por questões como o colonialismo, o tráfico de escravizados e a enorme dificuldade de superar o legado dos vários colonialismos.
Especialista em estudos africanos, árabes e islâmicos e coordenador do Programa para Refugiados do Curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira da USP, Paulo Daniel Farah cita que outra relevância do anúncio do Nobel de Literatura a Gurnah, no dia 7 de outubro, está em reconhecer as literaturas africanas modernas e contemporâneas. Mesmo assim, o professor menciona que elas ainda carecem de atenção. “Desde a criação do Prêmio Nobel de Literatura apenas cinco autores da África foram contemplados: Wole Soyinka (da Nigéria), em 1986, Naguib Mahfuz (do Egito), em 1988, Nadine Gordimer (da África do Sul), em 1991, John Maxwell Coetzee (da África do Sul), em 2003, e agora Gurnah”, descreve Farah. “Por meio da leitura desses e de outros escritores, é possível entrar em contato com o imaginário e com processos de emancipação, resiliência e criação na África.”
Farah destaca ainda que o fato de Gurnah escrever em língua inglesa — embora sua língua nativa seja o suaíle (ou kiswahili) — sem dúvida contribuiu para que fosse escolhido. “Infelizmente, ainda são poucos os autores e as autoras que escrevem em outros idiomas (especialmente em línguas não indo-europeias) que são laureados com o Nobel”, lamenta o professor.
A escolha de Gurnah, desse ponto de vista, gerou polêmicas sobre sua identidade nacional, segundo Rita. Alguns críticos questionaram o fato de Gurnah ser ou não tanzaniano, uma vez ele emigrou aos 20 anos para a Inglaterra. “Esse dado não seria levantado em relação, por exemplo, ao escritor Ernest Hemingway, que viveu em tantos países”, diz Rita. Outros críticos ressaltam que a Tanzânia sequer existia como tal quando Gurnah saiu de Zanzibar, a atual capital do país. Mas a professora não concorda com a ideia de que ele deva ser excluído da lista de escritores africanos. “Acho realmente importante a reflexão sobre os motivos que levam a esse dado. Não é possível negar a conturbada história da África e as turbulências próprias da relação dos africanos com a sua história. A complexidade envolve a nossa visão dos africanos e também a sua própria forma de ler as conexões que os particularizam”, ressalta a professora.
Nos livros de Gurnah prevalecem questões voltadas para problemas historicamente plantados no continente africano, incluindo os efeitos individuais e coletivos da diáspora conectada ao colonialismo, um material sobre o qual as literaturas africanas se debruçam com frequência, acrescenta a professora. Rita observa que, por viver no Reino Unido, o escritor tem outra perspectiva dessas questões. Mesmo assim, ela não acha que seja dispensável ter em conta o ponto de vista de quem vive na metrópole, porque as marcas do dilaceramento persistem no escritor. “É instigante observar como ele trabalha o que talvez pudéssemos chamar de crise de identidade como um dado constitutivo de quem é herdeiro de todas essas fraturas”, analisa Rita.
De acordo com estudiosos da obra de Gurnah, a partir de uma suposta história de amor como em Desertion (2005) ou da história de uma imigrante negra que cresce na Inglaterra (Dottie, 1990) ou da história de um levante em terras africanas (Memory of Departure, 1987), as narrativas enfocam contradições estruturais e abordam o exílio, a violência, as divisões entre o desenraizamento e desejos frustrados de integração em outras realidades culturais. “Chama a atenção em alguns momentos de suas obras a projeção de uma consciência sobre o que ele escreve, como se não pudéssemos esquecer que se trata de um narrador que parte de uma reflexão. Nesse movimento, percebe-se uma vontade de aproximação com as personagens cujo ponto de vista ele tenta captar e projetar”, complementa a professora.
Farah aponta que a obra de Gurnah remete a uma genealogia literária africana plurilíngue que remonta a vários séculos. Algumas características incluem a retomada de narrativas de antepassados (e a consequente valorização da ancestralidade), um aprofundamento psicológico das personagens e o vínculo com o gênero normalmente denominado safari (viagem, jornada), que por sua vez integra a tradição árabe e islâmica de literatura de viagem, conhecida como adab al-rihla.
Autor de dez romances, Gurnah nasceu em 1948 em Zanzibar (que depois passou a ser Tanzânia), onde cresceu em uma família muçulmana, e precisou abandonar a ilha em 1964, quando populações de origem árabe foram alvo de perseguições. Como outras pessoas provenientes de territórios considerados parte do Império Britânico, refugiou-se no Reino Unido, onde foi professor de Inglês e Literaturas Pós-Coloniais na Universidade de Kent, em Canterbury, aposentando-se recentemente. “No plano temático, essa experiência – e o racismo e a xenofobia a que foi submetido – fez com que lidasse com o colonialismo, o deslocamento e o refúgio tanto na realidade quanto em sua criação literária”, esclarece Farah.
O professor comenta que cabe refletir sobre a intertextualidade em romances modernos e contemporâneos do continente africano e nos romances de Gurnah. Nesse diálogo, há referências de obras escritas na língua nativa de Gurnah, kiswahili (grafadas em caracteres árabes), como Safari Yangu na Bara Afrika (Minha Viagem pela África), de Selemani bin Mweny Chande, e Safari Yangu ya Urusi na ya Siberia (Minha viagem para a Rússia e a Sibéria), de Salim bin Abakari, além de outras narrativas de viagem em kiswahili e em árabe.
Em suas obras, Gurnah critica o cinismo da Europa, sempre a acusar as periferias de primitivismo e de desrespeito aos direitos humanos, de acordo com a professora Rita. Segundo ela, o escritor propõe um olhar mais agudo sobre a necessidade de uma mudança no plano das relações entre os centros e os espaços periféricos. Em uma entrevista à Fundação Nobel, ele alerta para a necessidade de outros modos de compreender a emigração e os emigrantes, destacando a sua potencialidade. Rita considera que, quando ele diz na entrevista que “eles não vêm de mãos vazias”, o escritor contraria a imagem de miseráveis pedintes consagrada pela mídia e pelos discursos oficiais. Além disso, Rita julga essencial ressaltar que Gurnah oferece outros focos para enxergar a África, sem as lentes dos folhetos de turismo e das reportagens catastróficas.
O romance Paradise (1984), de Gurnah, por exemplo, costuma ser analisado como uma obra que se contrapõe às representações da colonialidade acerca de uma África sem história, sem civilização e, por isso, antítese da Europa – que abriram caminho para as “missões civilizatórias” e as narrativas coloniais europeias, como o romance Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad, descrito pelo escritor nigeriano Chinua Achebe como “um livro ofensivo e deplorável, que despersonaliza uma parte da raça humana”.
O quinto romance de Gurnah, Admiring Silence (1996), narra a história de um cidadão de Zanzibar que precisa abandonar sua terra natal, na década de 1960, e viver na Inglaterra por duas décadas antes de retornar à Tanzânia. Farah afirma que a trajetória do personagem, que guarda semelhanças com a de Gurnah, é descrita por meio de conflitos identitários e psicológicos, com marcada sensibilidade. “A representação estereotipada de personagens refugiadas soma-se às experiências de vulnerabilidade e invisibilidade social nas quais vivem”, avalia o professor.
“Não há dúvidas sobre a importância da concessão do prêmio a um escritor negro, africano, especialmente no contexto atual em que o racismo e a xenofobia, acompanhados de múltiplas violências (física, psicológica e epistêmica), apagamento e invisibilidade, persistem e se agudizam em diversas partes do mundo”, analisa Farah. Para ele, Abdulrazak Gurnah representa uma sociedade (a de Zanzibar e a de uma porção considerável da África do leste) marcada pela interculturalidade, pela diversidade étnica e pelo plurilinguismo, mas geralmente retratada por meio de olhares exógenos que sedimentam estereótipos, reducionismos e incompreensões. “Esse contexto é fundamental para entender sua obra”, conclui o professor.
Fonte: Jornal USP/O escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, Prêmio Nobel de Literatura de 2021 – Foto: Reprodução/Flickr