Domingo, 24 de Outubro de 2021
por Daniel E. de Castro | Folhapress
Os cinco balões em alusão aos anéis olímpicos pendurados na grade da quadra poliesportiva e a frequência com que o nome de Rayssa Leal aparece nas conversas são marcas deixadas pelos Jogos de Tóquio no bairro Calmon Viana, em Poá, região metropolitana de São Paulo.
Apesar do recente fenômeno de popularidade do esporte em todo o Brasil, o uso do skate como ferramenta de transformação social já integra o cotidiano dessa comunidade do extremo leste da capital paulista há dez anos.
Em 2011, o skatista Sandro Testinha e a pedagoga Leila Vieira passaram a ensinar a prática para crianças da cidade. A estrutura era informal, com dinheiro tirado do bolso, e as aulas aconteciam na rua. Foi a maneira encontrada por eles de manter vivo um projeto iniciado em 2000 na antiga Febem (hoje Fundação Casa), com o objetivo de levar o esporte para crianças e adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas de privação de liberdade.
“Na rua não tinha tanta regra. Era a lei do mais forte, palavrão, agressividade. Tentei controlar isso sozinho e foi um desastre. A Leila, que já trabalhava com pedagogia, fez o nosso primeiro slogan: ‘skate é bom, mas com educação é ótimo’. Passamos a organizar cadernos com os nome das crianças, dos pais e o seu rendimento escolar”, conta Testinha, 43, que foi contemporâneo de Bob Burnquist nas pistas.
A ONG Social Skate encontrou naquela altura o seu maior propósito, ao unir skate e educação, e se aventurou num mundo novo. Formalizada como entidade sem fins lucrativos em 2014, passou a buscar patrocínios de empresas e verbas públicas pelas leis de incentivo. Também recebeu apoios de amigos e aproveitou a exposição na mídia para crescer e ganhar autonomia.
Em 2013, as aulas haviam migrado da rua para uma quadra até então ocupada como ponto de venda de drogas.
“Como não sou segurança pública, minha expertise foi de convidar as crianças da rapaziada que estava aqui para participar. Entendi que nem mesmo o traficante quer que o filho dele esteja no lugar onde acontece o tráfico. Os caras gostaram, porque era aula grátis de skate com estrutura. Quando as crianças chegaram, os caras saíram”, relata o fundador da ONG.
Atualmente, cerca de 180 crianças e adolescentes são atendidos pela Social Skate. Além das aulas ao longo de todo o dia, conduzidas por professores contratados, os participantes recebem um lanche. “Criou-se uma rotina de alívio nessa comunidade, pelo menos para as crianças atendidas”, destaca Testinha.
“A princípio queríamos algo pequeno, para oferecer uma modalidade esportiva. Eles vêm andar de skate, mas não pode ser de qualquer jeito. Precisam se reeducar, se respeitar e aprender a conviver em grupo”, acrescenta Leila, 39.
A ONG trabalha com um orçamento anual de R$ 600 mil para manter suas atividades. Por ter virado referência, recentemente desenvolveu, em parceria com a CBSk (Confederação Brasileira de Skate), um mapeamento de projetos sociais da modalidade espalhados pelo país. Até o momento, já foram identificadas 103 iniciativas.
A Social Skate também chamou a atenção de Rayssa Leal, 13, e sua equipe. Tanto que acabou indicada pela atleta para receber um prêmio dado pela empresa Visa no valor de US$ 50 mil (R$ 282 mil).
A medalhista de prata no Japão foi escolhida em votação popular no mês de agosto como protagonista de um dos momentos mais inspiradores dos Jogos, pelo seu espírito esportivo em relação às concorrentes. A premiação foi oficializada em outubro pelo Comitê Olímpico Internacional.
Sandro e Leila ainda não sabem de que forma o valor poderá ser utilizado, mas, quando essa verba chegar, não terá sido a primeira consequência positiva dos Jogos de Tóquio para o projeto.
Depois do megaevento, o número de meninas inscritas nas aulas passou de 20 para 72. Muitas chegam tímidas, com vergonha de andar ao lado de meninos, tanto que nos últimos anos foram abertas turmas específicas só para elas.
A instrutora Brenda dos Santos, 19, cresceu dentro da ONG e se dedica especialmente aos grupos femininos. Um momento marcante para ela foi quando o projeto recebeu uma doação de tops e realizou um evento para que as garotas e mães que quisessem andar o fizessem com essas peças de roupa.
“O preconceito na cabeça de alguns pais é muito grande, mas depois que conhecem o trabalho da ONG passam até a ser voluntários. Eles veem que o problema não é o skate, mas muitas vezes o ambiente. Se passa na TV uma menina andando de skate e um pai que nunca deixou a filha andar vê, ele fica na dúvida de por que não deixa”, afirma.
Agatha dos Santos, 12, conheceu o projeto há seis anos e sentiu esse ganho de autoestima. “Quando eu entrei, era muito tímida, não conseguia fazer nada e tinha muita vergonha. Saí e voltei várias vezes, mas agora estou firme e gostando muito”, conta.
Dois de seus irmãos mais novos, Rafael e Nataline, também frequentam as aulas. Todos são incentivados pela mãe, Fernanda Felix, para quem o “efeito Rayssa” ajudou várias garotas a se soltarem não apenas no skate mas no futebol e em outros esportes.
A medalhista também é fonte de inspiração para Felipe Gabriel, 11. “Skate é uma atividade para todo o mundo, meninos e meninas, sem preconceitos”, diz o garoto.
Ele e Agatha almejam se tornar skatistas profissionais. A ONG incentiva que aqueles que se destacam e desejam ir por esse caminho participem de torneios, mas esse não é foco.
“Dependendo do lugar em que você está, todos os dias da sua vida são uma competição. Para saber se você vai ter o que comer, o que vestir, se vai ter algum trabalho. Então não vamos colocar mais uma competição na hora do lazer”, afirma Testinha.
“Mas quando eles crescem e entendem que existem os campeonatos, se o skate foi colocado dessa forma lúdica, educativa, ficam à vontade porque pensam em se divertir. É a mesma coisa que a Rayssa fez em Tóquio, dançando antes da manobra decisiva”, completa.
Diante da grande procura pela Social Skate e por outros projetos no país, Leila pede atenção, especialmente às mães de meninas encantadas com a trajetória de Rayssa, para que não projetem expectativas irreais sobre as suas filhas.
“Cuidado com a pressão psicológica para que a criança apresente um resultado para o qual ela não está pronta”, diz. “Se insistirem nisso, eu convido a darem uma voltinha no skate e sentirem aquele friozinho na barriga antes de dropar, para não pressionar tanto assim.”
Foto: Foto: Wander Roberto/COB