Sábado, 22 de Agosto de 2020 – 00:00
por Jamile Amine
Foi o célebre escritor baiano Jorge Amado, enquanto deputado federal, que apresentou uma proposta de emenda à Constituição de 1946 que garantiu a imunidade de impostos para livros, jornais e periódicos. Mantida na Carta de 1988, a iniciativa – que teve como objetivo incentivar o mercado editorial através de isenção fiscal – voltou ao centro das discussões por causa da reforma tributária proposta pelo governo federal e enviada ao Congresso.
Isto porque o ministro da Economia, Paulo Guedes, incluiu o mercado editorial na cobrança da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que substituiria PIS e Cofins, eliminando as isenções destes tributos vigentes até então. Com a medida, o setor, que hoje tem zero de alíquota, passaria a pagar 12%, assim como o restante dos setores econômicos atualmente tributados entre 3,65% e 9,25% pela União.
Para Angela Fraga, diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado, criada em 1987 para preservar a obra do escritor e incentivar as pesquisas literárias na Bahia, a medida é um retrocesso. “Acho que a produção literária precisaria de muito mais incentivos do que os que já lhes são garantidos”, avalia.
Diante do forte impacto que a mudança geraria, o setor cultural, em especial o literário, tem se mobilizado contra a proposta do governo. Algumas entidades, a exemplo da União Brasileira de Escritores (UBE), têm feito críticas incisivas e chegaram a apontar a reforma como inconstitucional.
Em um manifesto assinado pelo presidente da UBE, Ricardo Ramos Filho, a instituição destaca que “a alínea D do inciso Vl do Artigo 150 da Constituição do Brasil estabelece ser vetada à União, Distrito Federal, estados e municípios, a instituição de qualquer imposto sobre o livro, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão” e afirma que a proposta de tributar o setor “conspira contra os objetivos de promover o desenvolvimento e aumentar a competitividade do país no cenário global”, já que a Constituição Federal “enfatiza a importância da leitura como instrumento de educação, liberdade, igualdade de oportunidades, democracia e justiça social”.
A questão é que a manobra do governo se dá dentro da lei, isto porque o setor editorial está protegido da cobrança de impostos, mas não de outros tipos de tributos, como é o caso da CBS proposta por Guedes, além do PIS e do Cofins – que hoje estão zerados por conta de políticas públicas de incentivo que não as estabelecidas na Constituição.
O advogado tributário Rafael Figueiredo afirma que, apesar de ser crítico à proposta, ela não é inconstitucional. “Esse artigo 150 da Constituição, que trata das imunidades, diz que elas são direcionadas apenas aos impostos, e há uma diferença entre impostos e contribuições, são duas espécies de tributos diferentes. Então, não é possível instituir impostos sobre o mercado de livros e impressos, jornais e tudo mais, inclusive até o eletrônico já foi reconhecido no STF”, explica.
“[Os impostos] são uma espécie tributária referente ao que a gente chama, de forma mais técnica, tributos não vinculados, que cobram em razão de uma capacidade contributiva do contribuinte e o Estado não tem nenhuma vinculação com o que vai fazer com aquele dinheiro, que pode ser usado para qualquer coisa”, detalha o advogado, dando como exemplos o Imposto de Renda, IPI e ICMS.
Segundo Rafael Figueiredo, a reforma, no entanto, atinge as contribuições sociais, que são outro tipo de tributo. “Elas são tributos cuja arrecadação é destinada a alguma finalidade. Inclusive, no Brasil é bem comum as pessoas brigarem ‘ah, eu pago IPVA e a estrada está esburacada’, mas isso não tem nenhuma relação. O Estado não é obrigado a gastar o dinheiro do IPVA para consertar rodovia ou tapar buraco. É diferente, por exemplo, da taxa de resíduos sólidos domiciliares, a taxa de lixo. Essa daí é um tributo vinculado, utilizado para custear o serviço de coleta de lixo domiciliar”, exemplifica, lembrando que a arrecadação de PIS e Cofins é destinada à assistência e seguridade social.
O advogado explica ainda que a proposta do governo apenas une as duas contribuições (PIS e Cofins) criando uma única, a CBS, que não é um imposto e, portanto, não se enquadraria na imunidade prevista em cláusula pétrea. “Temos dois tipos de desoneração. A imposta na Constituição, que é a imunidade, essa daí ninguém pode mexer, só se mudarem a Constituição. Mas no âmbito infra-constitucional, nas leis ordinárias, podem ser instituídas o que a gente chama de isenções, que são uma faculdade do ente tributante”, compara, lembrando que hoje está vigente a isenção para o PIS e Cofins sobre os livros. “Então, além de não pagar os impostos, ICMS, imposto de renda e tudo mais, também não paga PIS e Cofins por causa da isenção que existe na lei. Esta isenção pretende ser revogada por esse projeto da CBS e não tem nenhuma nova isenção ou algo parecido. Ou seja, hoje quem não paga nada teria que pagar a alíquota que foi proposta na reforma, de 12%, que é altíssima”, alerta.
CALIBRAGEM
Apesar de ser uma manobra legal, a medida tem impacto expressivo – e negativo – em diversos setores, talvez ainda mais no editorial. Segundo o advogado Rafael Figueiredo, a alíquota proposta pelo governo “já é um problema por si só”, que fica ainda mais grave para aqueles que hoje estão isentos e são “jogados” dentro da reforma.
Para o baiano Saymon Nascimento, fundador da pequena editora Bissau Livros, a reforma pode significar um grande risco ou até o fim do negócio, que já vem passando por dificuldades por causa da pandemia (saiba mais). “No caso das editoras pequenas, que ainda não têm a escala das maiores empresas e trabalham com tiragens menores, o preço [dos livros] é naturalmente mais alto. A gente não consegue imprimir um livro, por exemplo, pelo mesmo preço que uma editora grande, já que naturalmente o papel custa uma coisa para quem faz mil livros, como eu, e outra coisa para quem imprime 30 mil. Eu não tenho como absorver isso sem passar para o preço de capa. O resultado é simples: eu elitizo o livro, e, caso não consiga vendê-lo a um preço mais alto num cenário de crise como o atual, quebro”, afirma. “Penso que isso vai diminuir o tamanho do mercado, diminuindo inclusive a democratização de vozes ocorrida nos últimos anos com o surgimento de novas editoras, mais plurais. É algo ruim sob todos os aspectos”, avalia o baiano.
De uma forma mais abrangente, o advogado tributarista explica que também para aqueles que não têm isenção a reforma traz impactos muito fortes. Segundo Figueiredo, atualmente existem dois sistemas de arrecadação de PIS e Cofins: cumulativo e não cumulativo. No primeiro, o empresário paga 3,65% sem direito a crédito. “Quando você compra alguma coisa tributada pelo PIS e Cofins, aquilo não te dá direito a crédito. É o que a gente chama de cumulativo. Sobre o que eu vender, 3,65% de débito de tributo e ponto”, detalha. Já no outro sistema, não cumulativo, a alíquota é de 9,25%, dando direito a crédito nas aquisições de insumos. A crítica do advogado é que com a CBS todos pagarão os mesmos 12%, e provavelmente não poderão repassar as novas despesas ao consumidor final, já bastante afetado pela crise.
Rafael lembra ainda que a reforma de Guedes não abrange a tributação nos âmbitos municipais e estaduais, ou seja, além do valor já alto cobrado pela União, os empreendedores ainda devem se preocupar com as demais contribuições e os impostos cobrados para os que não estão isentos. Segundo Rafael, existem inclusive alternativas mais complexas e robustas em discussão no parlamento, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, que inclui estados e cidades, mas ela encontra resistência de governadores e prefeitos para ser aprovada.
LIVRO COMO PRODUTO DE ELITE
Se o impacto econômico por si só já era motivo para forte reação do setor cultural, a justificativa do ministro Paulo Guedes para a tributação dos livros gerou ainda mais mal estar.
“Mais grave do que a própria proposição é a justificativa do ministro, de que ‘livros são artigos para a elite’ e que o governo os dará de graça aos pobres. Repudiamos esse pensamento retrógrado, alinhado a práticas dos regimes mais nocivos da humanidade, incluindo a queima de milhares de volumes. A triste chama não pode incinerar a memória dos povos. É preciso aprender com a história”, defendeu a União Brasileira de Escritores (UBE), em nota oficial. Segundo a entidade, o acesso à leitura “jamais deve ser privilégio, mas uma prerrogativa de toda a população”, destacando que todos os brasileiros, incluindo os de baixa renda,”têm o direito de escolher o que querem ler e não podem ficar sujeitos às doações de livros pelo poder público, pois tal paternalismo implica instrumentalizar os conteúdos conforme a orientação político-ideológica do governo de plantão”.
Não faltaram manifestações, entre abaixo-assinados, hashtags e campanhas em defesa do livro, nas quais criticam e ironizam as afirmações do ministro da Economia do governo Bolsonaro, consideradas como preconceituosas e ignorantes.
Além disso, de forma mais concreta, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou uma proposta de Emenda à Constituição (PEC), nesta terça-feira (18), na tentativa de impedir a cobrança de tributos para livros, jornais e periódicos, assim como o papel destinado à impressão. “A CF proíbe a cobrança de impostos, estamos estendendo isso a todos os tipos de tributos”, explicou o senador, em sua conta no Twitter. “Investir em armas e taxar livros é um projeto. Precarizar a Educação serve para eles que querem a manutenção da desigualdade social, das injustiças. As prioridades do Governo não condizem com a realidade do nosso povo! Bolsonaro é sinônimo de retrocesso!”, protestou Randolfe.
Veja algumas manifestações contra a proposta do governo: