Foi um encontro com uma eleitora que levou o deputado estadual americano Lowry Snow, de Utah, a mudar de posição em relação à pena de morte.
Em um Estado fortemente conservador, onde seu partido, o Republicano, controla o governo e as duas Casas do Legislativo, Snow sempre votou contra propostas para abolir ou restringir o uso desse tipo de sentença.
Mas, em 2017, ele recebeu um pedido inusitado: Sharon Weeks, cuja irmã e a sobrinha haviam sido assassinadas brutalmente em um dos crimes mais notórios de Utah, queria se reunir com ele.
Em 1984, a irmã de Weeks, Brenda Lafferty, então com 24 anos de idade, foi espancada, estrangulada e teve a garganta cortada por seus cunhados, Ron e Dan Lafferty. Sua filha bebê, Erica Lafferty, de 15 meses de idade, foi degolada.
No ano seguinte ao crime, Dan Lafferty foi condenado à prisão perpétua, que cumpre até hoje. Seu irmão, Ron Lafferty, foi condenado à morte. Mas quando Weeks se reuniu com Snow, 33 anos depois do crime, Ron Lafferty ainda não havia sido executado, apesar de já ter sido sentenciado à morte em dois julgamentos separados.
“A partir da nossa conversa, comecei a ver uma perspectiva que jamais havia considerado, aquela do trauma das famílias das vítimas”, diz Snow à BBC News Brasil.
Weeks explicou ao deputado por que a pena de morte não havia trazido conforto nem Justiça para sua família. O Estado havia prometido que, nesse caso, receber Justiça significava a execução de Ron Lafferty. Mas, mais de três décadas depois, Weeks e seus pais continuavam esperando, e a promessa ainda não havia sido cumprida.
A cada novo desenrolar do caso, a família era obrigada a reviver a dor do crime e a ver o autor dos assassinatos quase transformado em celebridade com a intensa cobertura da imprensa.
“Ela falou sobre o que a família teve de enfrentar, e ainda enfrentava, com as inúmeras apelações (de Ron Lafferty) à Justiça, audiências, novo julgamento. E, durante isso tudo, a ansiedade de não saber se algum detalhe técnico poderia livrá-lo (da morte ou mesmo da prisão)”, lembra o deputado.
Para Weeks, diante da demora do Estado em levar a execução a cabo, a prisão perpétua teria sido preferível, porque assim daria o caso por encerrado e o sentimento de Justiça cumprida, sem prolongar a dor da família por décadas.
Ron Lafferty nunca foi executado. Ele acabou morrendo na prisão em 2019, de causas naturais, 35 anos depois de ter cometido o crime e recebido a sentença.
Seu caso não é incomum. Segundo o Centro de Informações sobre Pena de Morte, que compila dados sobre a prática, mais da metade dos cerca de 2,5 mil condenados à essa sentença nos Estados Unidos a receberam há mais de 18 anos. Muitos passam décadas no corredor da morte.
Apoio em queda
Desde que ouviu o relato de Weeks e sua família, Snow passou a defender o fim da pena de morte. Ele agora está finalizando um projeto de lei, que deve apresentar à Câmara Estadual no início de 2022, para substituir a sentença por prisão perpétua.
Snow é um entre mais de 40 senadores e deputados estaduais republicanos em pelo menos 10 Estados que recentemente apresentaram ou foram coautores de projetos de lei para abolir, restringir ou, em alguns casos, reformar a pena capital. A punição é legal em 27 dos 50 Estados americanos.
Várias das propostas proíbem que determinadas categorias de pessoas recebam a sentença, desde aquelas com doença mental grave até cúmplices que tiveram papel pequeno no crime.
Outras buscam impedir que inocentes sejam executados, com medidas como proibir pena de morte quando a evidência contra o réu for o depoimento de uma única testemunha.
No início deste ano, a Virgínia se tornou o 23º Estado do país — e o primeiro do Sul — a abolir a sentença, em uma decisão considerada histórica e que foi aprovada graças ao apoio de alguns republicanos à maioria democrata.
Em 2015, o Nebraska já havia gerado manchetes ao redor do país ao se tornar o primeiro Estado conservador (governado pelo Partido Republicano e com maioria de legisladores republicanos) a abolir a pena de morte em mais de 40 anos. A decisão, no entanto, acabou sendo revertida após consulta popular.
O movimento de legisladores republicanos contra a pena capital representa uma mudança em relação à posição histórica do partido. Nos Estados Unidos, políticos (e eleitores) republicanos costumam se definir como conservadores e são tradicionalmente a favor da pena de morte.
Segundo o centro de pesquisas Pew Research Center, em pesquisa conduzida em abril deste ano, 60% dos entrevistados disseram ser favoráveis à pena de morte para condenados por assassinato. Entre os republicanos, o apoio chegou a 77%, bem maior que os 46% entre os democratas.
Mas, apesar de a maioria dos republicanos, e dos americanos em geral, continuarem apoiando a pena de morte, o percentual vem caindo. Dois anos atrás, o Pew indicava que 65% dos americanos e 84% dos republicanos concordavam com a pena capital para assassinatos.
“O apoio à pena de morte em círculos conservadores republicanos vem caindo por várias razões econômicas, culturais, morais e religiosas”, diz à BBC News Brasil o diretor nacional do grupo Conservatives Concerned About the Death Penalty (Conservadores Preocupados com a Pena de Morte, em tradução livre), Demetrius Minor.
O grupo reúne políticos e líderes ao redor do país que questionam a possibilidade de conciliar a pena de morte com os valores conservadores.
Aprovar propostas contra a pena de morte em Estados fortemente conservadores ainda é um desafio. Mas, segundo o diretor executivo do Centro de Informações sobre Pena de Morte, Robert Dunham, o tema não é mais considerado tão polêmico, o que permite que cada vez mais políticos fiquem livres para agir de acordo com sua consciência.
“Essa não é mais uma questão que fará com que você seja derrotado nas urnas por eleitores do seu próprio partido que não concordam com a sua posição”, diz Dunham à BBC News Brasil.
Tanto o número de sentenciados à morte quanto o de execuções vêm caindo no país desde o fim da década de 1990. Em 1999, foram executadas 98 pessoas, e outras 279 foram condenadas à morte. No ano passado, foram 17 execuções e 18 sentenças à morte.
Inocentes no corredor da morte
Dunham observa que um dos grupos cuja oposição à pena capital vem crescendo mais rapidamente é aquele formado por pessoas que são favoráveis à pena de morte em teoria, mas não acreditam que o sistema atual é justo.
Muitos dizem não confiar na capacidade do Estado de garantir um processo sem erros e citam o risco de que inocentes sejam executados. Nos últimos anos, ganharam atenção nacional diversos casos de presos que passaram décadas no corredor da morte até conseguirem provar que haviam sido condenados injustamente.
Segundo Dunham, 1.537 pessoas foram executadas nos Estados Unidos desde 1972. No mesmo período, outras 186 conseguiram provar que haviam sido condenadas injustamente e deixaram o corredor da morte.
“É um número chocante. Estimamos que dezenas de pessoas executadas eram inocentes”, afirma Dunham.
Foi depois de tomar conhecimento dos casos de dois inocentes condenados injustamente que a deputada estadual republicana Jean Schmidt, de Ohio, mudou completamente de posição sobre a pena de morte.
“Vinte anos atrás, eu votei nesta mesma Câmara para manter a pena de morte”, diz Schmidt à BBC News Brasil.
A deputada é autora de proposta para abolir a pena capital em Ohio, Estado onde o Executivo e as duas Casas do Legislativo estão sob comando republicano. Um projeto semelhante tramita no Senado estadual.
Schmidt conta que começou a mudar de opinião há cerca de dez anos, principalmente depois de conhecer os detalhes dos casos de Tyra Patterson, que cumpria 43 anos de prisão por roubo e assassinato, e de Joe D’Ambrosio, condenado à morte por sequestro e assassinato. Ambos conseguiram provar, após anos na prisão, que eram inocentes.
“Nesse processo, vi como promotores e detetives podem manipular as coisas para criar a impressão de que eles (os réus) são culpados, quando na realidade não são”, afirma Schmidt. “Esses encontros me fizeram perceber que há pessoas inocentes no corredor da morte.”
Os problemas que levam inocentes a serem condenados à morte começam antes do julgamento. A maioria desses réus são pobres e não têm condições de contratar bons advogados, o que os coloca em desvantagem diante da promotoria, que costuma ser bem equipada.
“Eles (os réus) dependem de defensores públicos, que em Ohio são mal pagos, sobrecarregados e têm um teto para o quanto de dinheiro dos contribuintes podem gastar na defesa”, ressalta Schmidt, que também cita as dificuldades de apresentar novas evidências depois de encerrado o julgamento.
Outro fator preocupante é a arbitrariedade na aplicação da sentença. Muitas vezes a localização geográfica é mais importante do que o crime em si para determinar se o réu será condenado à morte. Um crime punido com a morte em um condado (subdivisão administrativa dos Estados) pode levar apenas à prisão no condado vizinho.
“Em cada Estado com pena de morte, há condados individuais que buscam a sentença de maneira muito mais agressiva do que os outros”, afirma Dunham, ressaltando que apenas 1,2% dos condados do país respondem por mais da metade das pessoas no corredor da morte.
Defesa da vida e custos
Assim como vários legisladores republicanos, Schmidt também diz que outro ponto que pesou em sua mudança de posição foi a contradição da pena de morte com sua postura contra o aborto.
“Acredito que somente Deus pode tirar uma vida. Não acredito em aborto em nenhuma circunstância, nem mesmo se a vida da mãe estiver em risco”, afirma Schmidt.
O senador estadual republicano Arthur Rusch, de Dakota do Sul, também cita a contradição de apoiar a pena de morte ao mesmo tempo em que se opõe ao aborto.
“Dakota do Sul é um Estado fortemente contrário ao aborto. Não entendo como alguém pode ser contra o aborto em alguns casos e apoiar a pena de morte. Me parece uma posição completamente inconsistente”, diz Rusch à BBC News Brasil.
Desde que entrou para o Senado, em 2015, Rusch apresentou várias propostas para abolir a pena capital ou limitar seu uso. Até agora, nenhuma teve sucesso, mas ele já prepara um novo projeto de lei sobre o tema para o ano que vem.
Sua oposição também é motivada pelos altos custos do processo, mais longo e complexo do que um caso em que a sentença máxima é de prisão perpétua. Antes de entrar para a política, Rusch foi juiz durante 18 anos. Ele diz que sua opinião mudou após julgar um caso de pena de morte que custou mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,6 milhões).
“Antes disso, eu provavelmente diria que não tinha nenhum problema com a pena de morte”, diz Rusch. “Mas esse julgamento realmente mudou minha visão.”
Os custos mais altos vão desde o número maior de testemunhas, advogados e apelações até a manutenção dos presos no corredor da morte. Vários estudos calculam que um processo de pena de morte custe pelo menos dez vezes mais que um caso que não envolva essa sentença, conta que é paga pelos contribuintes.
“No Kansas, um julgamento que possa levar à pena de morte custa 16 vezes mais do que um no qual não exista essa possibilidade”, diz Demetrius Minor. “Na Califórnia, um preso no corredor da morte custa US$ 90 mil (R$ 504 mil) a mais por ano do que alguém em uma prisão de segurança máxima.”
Rusch salienta que os custos não são apenas materiais, mas também psicológicos. “Basicamente, custou um ano da minha vida”, diz o senador sobre o julgamento que presidiu. “Alguns membros do júri sofreram estresse pós-traumático. Não deveríamos forçar as pessoas a passar por algo assim.”
Corrigir em vez de abolir
Mas nem todos os políticos com propostas para restringir o uso da pena capital querem necessariamente acabar com a prática. O deputado estadual republicano Kevin McDugle, de Oklahoma, é autor de dois projetos de lei que buscam corrigir problemas na aplicação da sentença e evitar que inocentes sejam executados.
“Não mudei de opinião sobre a pena de morte, mas sim sobre o processo que cerca a pena de morte”, diz McDugle à BBC News Brasil.
“Se você tem alguém que, digamos, estuprou e matou um bebê, é preciso que haja um mecanismo como o corredor da morte para esse tipo de pessoa”, afirma. “Mas também acredito que a oportunidade para alguém (condenado à morte) provar sua inocência não deve ser algo impossível de ser alcançado.”
Uma das propostas de McDugle estabelece a criação de uma unidade de investigação independente em casos de pena capital, para analisar novas evidências que apontem para a inocência do condenado.
A outra torna obrigatório o compartilhamento com a defesa de evidências a respeito de um prisioneiro no corredor da morte. Em Oklahoma e outros Estados, a defesa não pode acessar evidências nas mãos dos promotores caso não haja previsão de novo julgamento, mesmo que essas provem a inocência do condenado.
McDugle elaborou as propostas após saber do caso de Richard Glossip, condenado por um assassinato que nega ter cometido. Outro homem, Justin Sneed, confessou o crime à polícia, mas disse que Glossip era o mandante. Apesar da falta de evidências, Glossip foi sentenciado à morte com base nesse testemunho. Sneed recebeu prisão perpétua.
“Honestamente, não tinha muito interesse em justiça criminal ou na pena de morte até então”, diz o deputado. “Mas quanto tomei conhecimento desse caso, senti — e ainda sinto — que temos um inocente no corredor da morte.”
Nenhuma de suas propostas foi adiante neste ano, mas McDugle pretende apresentá-las novamente em 2022.
“Se Oklahoma vai matar alguém, acho que precisamos dos critérios mais rígidos possíveis para provar (a culpa)”, afirma. “Minha opinião é a de que é melhor deixar um culpado livre do que executar um inocente”, conclui.
Fonte: g1/Foto: Getty Images/BBC