Portal “3×22” oferece textos e recursos didáticos grátis para refletir sobre a nação, seu passado e seu futuro
Por Janice Theodoro – Terça, 9. denovembro de 2021
A Universidade de São Paulo e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP prepararam o portal 3 x 22, para comemorar o bicentenário da Independência e o centenário da Semana de Arte Moderna, em 2022. O objetivo é oferecer aos consulentes a oportunidade de refletir e avaliar criticamente a formação da sociedade e do Estado brasileiro. O portal reúne sugestões de leitura para compreender o Brasil e os brasileiros, boletins com matérias sobre as principais temáticas sugeridas pelas datas, kits didáticos para uso em sala de aula, material para a elaboração dos itinerários do ensino médio, vídeos e eventos realizados na BBM.
Dentre as atividades propostas no portal destacam-se as sugestões de leitura: 200 livros escritos ao longo de 200 anos (1822-2022). A ideia teve como inspiração o artigo de Antonio Candido 10 Livros para Entender o Brasil. A intenção dos coordenadores do projeto foi desvendar a nossa história por meio de autores, tanto os canônicos como os irreverentes, sem esquecer o protagonismo dos silenciados e dos derrotados nos circuitos do poder (literários, econômicos e políticos). A reflexão teve como origem um seminário com título sugestivo para a compreensão do portal 3 x 22: Nenhum Brasil Existe. Acaso Existirão os Brasileiros?.
Afinal, quem são os brasileiros (caso existam)?
Os 200 livros sugerem inúmeras possibilidades. A escolha envolveu autores mais conhecidos e outros menos conhecidos. As personagens selecionadas, das obras literárias e da dramaturgia, são fascinantes tanto em seus momentos de grandeza como de vigarice, expressando nas minúcias d’alma brasileiros e brasileiras. Tem malandro, juiz de paz (corrupto na roça), receita para se fazer deputado, tem beijo no asfalto, voto feminino, pagador de promessas, verdade tropical, bon vivant e perseguido pela ditadura, entre centenas de outras personagens. Desabrocham brasilidades e brasileiros de todo o tipo. Não faltam mulheres pouco conhecidas, como Josephina Alvares de Azevedo, e homens mais conhecidos, como Roberto da Matta, João Antônio, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna, Dias Gomes, Plinio Marcos, Milton Hatoum e Marcelo Rubens Paiva, misturados uns com os outros e outras numa salada surpreendente.
3 x 22 na Escola é outro lado do portal, com sugestões de itinerários temáticos para o ensino médio, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Os módulos Desigualdade, Cidadania e Meio Ambiente tratam de diferentes assuntos, usam uma cronologia larga (200 anos), cobrindo os anos de 1822 até 1922. Estão divididos em subtemas, permitindo a utilização dos seguimentos por professores de diferentes disciplinas, mantendo a unidade dos assuntos selecionados para pensar o Estado brasileiro. Já estão disponíveis para professores e estudantes no portal da BBM, sem custo. Até o final do ano estarão acessíveis os módulos Educação e Tecnologia.
O portal 3 x 22 na Escola valorizou os protagonismos, os projetos de futuro e as experiências práticas, discutidas a partir da atualidade, mas evitou recortes, circunstâncias descontextualizadas, incapazes de permitir avaliação crítica dos resultados obtidos pelo Estado ao longo de sua história e em determinadas circunstâncias.
A avaliação, pelo estudante, do papel desempenhado pelo Estado brasileiro implicou a discussão de conceitos, a análise de dados e a crítica propositiva aos modelos responsáveis pelas diferentes formas de ordenação e análise da informação coletada. A comparação, habilidade de importância na BNCC, levou em conta a similaridade da natureza dos dados selecionados, permitindo, quando possível, análise comparada do desempenho do Brasil em relação a outros países.
Qual o perigo das reformulações curriculares na atualidade e qual a importância do projeto 3 x 22 para a educação dos brasileiros? Qual foi o cuidado ao elaborar sugestões para os professores em sala de aula? O que diferencia esse projeto de outros?
O perigo enfrentado foi, em nome da valorização da circunstância e do presente, descontextualizar fatos, objetos ou representações. Ao ensinar o aluno a, por exemplo, utilizar novas tecnologias, realizar cálculos (educação financeira), desenvolver softwares, comer de forma saudável ou mesmo fazer um vídeo, deixar de problematizar o conhecimento prático em relação às finalidades últimas daquele conhecimento inserido na sociedade. As habilidades e competências não podem ser desvinculadas da indagação sistemática sobre significado e responsabilidades dos sujeitos da ação em sociedade, ação sempre inserida no tempo e no espaço, com consequências variadas a curto, médio e longo prazo. Amor ao planeta, entusiasmo com o mundo virtual e foco apenas no presente com projeções no futuro não significa licença para esquecer o passado, negar a história e a materialidade comprovada dos acontecimentos.
Exemplos: circunstâncias e finalidades
Para ficar claro, dou um exemplo atual: observem as denúncias contra o Facebook feitas por Frances Haugen, ex-funcionária da empresa, sobre o botão “curtir”, relacionadas às mecânicas favoráveis à promoção de discursos de ódio, aumento de ansiedade entre usuários da mídia social e crise de autoestima entre os usuários. A empresa optou por manter uma política voltada para os seus interesses mercadológicos, independentemente dos alertas dados pelos funcionários da empresa, demonstrando a proliferação das narrativas com base no ódio, ataques à democracia, produção de mal-estar e infelicidade.
Eu não conheço Frances Haugen nem sei quais foram os motivos responsáveis pela decisão, por ela tomada, ao fazer a denúncia. Imagino os céticos atribuindo o seu gesto a uma manobra retórica, também elaborada por razões de mercado. O argumento – mercado – e outros similares são possíveis de serem desenterrados e elaborados pela retórica jurídica, em relação a qualquer objeto ou circunstância. Faz parte da prática do direito. Mas a minha heroína de hoje, Frances Haugen, teve coragem, se arriscou e desencobriu práticas perversas de uma das maiores potências econômicas da atualidade, o Facebook. O gesto de Frances exige reflexão sobre os meios utilizados e os fins últimos pretendidos pela empresa. Exige conhecimento da ciência computacional, exige capacidade de avaliação da importância da democracia (em crise), da cidadania (em crise) e da educação (em crise). Exige conhecimento específico e reflexão histórica de curta e longa duração, exige conteúdo e exige senso de oportunidade, na circunstância. Do meu ponto de vista, ela tirou nota 10, com cinco estrelinhas, em todas as habilidades e competências definidas na BNCC. Parabéns para seus familiares e amigos, para seus educadores, parabéns para as escolas onde aprendeu ciência da computação sem abrir mão dos conteúdos de filosofia, de história e de ética.
Vou citar outro exemplo, Ron Bugado. Trata-se de uma animação cujo objeto é a relação entre um garoto e um robô desconjuntado, amigo de um menino, de nome Barney. Os dois constroem juntos o “algoritmo da amizade”. O filme foi dirigido por Vine e Sarah Smith e co-dirigido por Octavio Rodriguez, com roteiro de Smith e Peter Baynham (ver matéria de Mariane Morisawa, em O Estado de S. Paulo, de 22 de outubro de 2021). Não conheço os idealizadores do filme, mas a ideia é surpreendente. A turma toda responsável pelo roteiro e produção do filme sabe o que é o meio (técnica) e o que é o fim (significado ultimo), no caso, a amizade. Gente boa. Conviveram em casa com um pessoal de coração grande, desenharam um enredo em que os amigos querem construir e partilhar uma sociedade melhor. Pautaram-se pelo algoritmo do bem. Os amantes do mercado e os céticos dirão: vão ganhar dinheiro com a venda do filme. Eu direi: ótimo. Farão bom uso do dinheiro. Se pudesse, diria: lembrem-se de mim na hora de beber o vinho. No meio de tanto ódio souberam criar um antídoto: a amizade. Desenvolveram habilidades e competências, estudaram matemática e tiveram bons professores de história e filosofia. Nota 10, com estrelinhas e lua.
Essa foi a filosofia da equipe responsável pelo projeto 3 x 22, coordenada por Alexandre Saes e por mim.
A intenção do projeto é ir além de, por exemplo, uma simples educação financeira para gerenciar o dia a dia da casa de um brasileiro ou brasileira. Queremos que os brasileiros entendam os indicadores econômicos e a atuação do Estado brasileiro com relação à desigualdade social. Queremos que os estudantes aprendam a administrar as suas finanças, ajudem em casa ensinando generosamente os seus familiares sobre a multiplicação dos juros (simples e compostos), analisem a falta de pão, leite e carne, de dinheiro e, se necessário, considerem, em suas decisões voltadas para a escolha de profissões, as reais possibilidades de mobilidade social, participando, como cidadãos, da compreensão da vida política, do papel do Estado e do meio ambiente.
Desafios da universidade
Qual o desafio das universidades na atualidade? Utilizar o conhecimento nela produzido para enfrentar os desafios contemporâneos. Utilizar seus computadores, criar condições para que seus pesquisadores, literatos, historiadores, cientistas sociais, comunicadores, produtores de conteúdo, seus cientistas, jornalistas, artistas, cineastas (entre outros) disponham de condições para formar redes capazes de compreender o algoritmo do ódio, para desvendar os mistérios dos sentimentos anti-vacinas, anti-razão e anti-meio ambiente, produzir, fazendo circular o algoritmo da amizade, resgatando os raciocínios lógicos e compreendendo onde está ancorada a crise da universidade, da democracia e, especialmente, a crise da antiga e respeitada, Razão.
Janice Theodoro é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Fonte: Jornal USP/Foto: Reprodução