O diretor científico da empresa Moderna, Tal Zaks, responde sobre sua imunização experimental contra a covid-19, que acaba de apresentar resultados promissores em maiores de 55 anos
MANUEL ANSEDE27 AGO 2020 – 13:28 EDT
Costuma-se dizer que o coronavírus apanhou a humanidade despreparada, mas é mentira. Os primeiros casos de estranhas pneumonias na China foram conhecidos no fim de dezembro. Em 11 de janeiro, os cientistas chineses publicaram o genoma do culpado: um vírus desconhecido até então. Apenas dois dias depois, em 13 de janeiro, a empresa norte-americana Moderna e os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA concluíram o desenho de uma vacina experimental e começaram a fabricá-la. Em 16 de março, em um tempo recorde de 63 dias, injetaram a primeira vacina em um voluntário. O médico israelense Tal Zaks (Haifa, 1965) é um dos responsáveis por este recorde sem precedentes. Sua vacina experimental contra a covid-19 é uma das mais adiantadas e já está sendo testada num ensaio internacional com 30.000 pessoas. Os primeiros dados em adultos com mais de 55 anos, inclusive em setuagenários, são promissores. “Estou muito contente com os resultados que obtivemos nos idosos, porque há um mês me tornei um deles”, brinca Zaks, diretor científico do laboratório Moderna, falando por videoconferência da cidade norte-americana de Cambridge (Massachusetts).
Pergunta. Sua vacina precisaria de duas doses.
Resposta. Sim, acreditamos que uma segunda dose claramente estimula a resposta imunológica. Se puder, se você quiser dar um empurrãozinho. É possível que uma dose seja suficiente? Pode ser. Decidimos testar com duas doses porque, dada a gravidade desta pandemia, não queremos assumir riscos. Não quero fazer algo que seja só meio bom. Quero oferecer a maior proteção possível. E isto se consegue com uma segunda dose.
P. Quais as implicações de serem necessárias duas doses? Se com uma dose já é um grande desafio vacinar quase toda a população mundial, duas doses é algo sem precedentes.
R. É verdade que, do ponto de vista operacional, é mais complicado. E é verdade que exigirá mais recursos. Mas queremos uma vacina que seja muito efetiva ou uma vacina que seja efetiva? Eu quero oferecer a melhor vacina possível. E acredito que a situação com a covid-19 justifique o desafio logístico de dar duas doses às pessoas. Se forem necessárias duas injeções para se desfazer desta pandemia, encontraremos uma maneira de pôr duas injeções.
P. O que pode dar errado durante o atual ensaio na fase 3 [a prova final, com 30.000 pessoas]?
R. O que mais me preocupa é que não haja pessoas suficientes que sejam infectadas e tenham a doença durante o ensaio. É estupendo para a sociedade que a situação [epidemiológica] esteja sob controle e o vírus desapareça, mas a capacidade da fase 3 para demonstrar a eficácia da vacina depende de haver mais casos no grupo de controle, cujos membros recebem um placebo, que no grupo de pessoas vacinadas. Se não houver casos, não saberemos se a vacina é eficaz.
P. Quais são os riscos de começar a vacinar as pessoas muito cedo? Parece que Donald Trump gostaria de começar a vacinar antes das eleições presidenciais de 3 de novembro.
R. Não vou falar de política [risos]. Acredito que seja importante, para nós e para a sociedade, entender bem o perfil de segurança e os eventos adversos antes de começar a vacinar. Estamos fazendo um grande ensaio clínico, com um grupo de controle que recebe um placebo. Se virmos eventos relacionados com a segurança, saberemos se ocorrerem com a mesma frequência no grupo do placebo e no grupo dos vacinados. Se começarmos a dar a vacina às pessoas, será preciso saber que nenhuma vacina é 100% efetiva. Algumas pessoas adoecerão apesar da minha vacina. Como sei que estas pessoas não pioraram por causa de minha vacina? Podem começar a dizer: “Ai, meu Deus, me puseram a sua vacina e fiquei doente. Sua vacina me fez adoecer”. Isto não é científico, mas necessitamos de dados para poder explicá-lo. Como promotores do ensaio, queremos nos assegurar de que temos dados que confirmem a eficácia e a segurança desta vacina antes de começar a campanha de vacinação.
P. Há uma óbvia pressa em dispor de vacinas.
R. Acredito que haja um debate público legítimo sobre quando você tem suficiente informação para justificar o risco. Mesmo se esperarmos até o final do ano ou até o começo de 2021 para termos mais informação sobre os ensaios, continuaremos tendo dados limitados e continuaremos sem saber o que não sabemos. Talvez haja fatos adversos de longo prazo. A partir de que ponto se justifica o risco de que as pessoas continuem morrendo embora pudessem ser vacinadas? É um debate muito difícil sobre o risco e o benefício. Quantos mais dados tivermos, melhor: em nível governamental, porque afinal o Governo de cada país terá que decidir se compensar o risco/beneficio, mas não só em nível governamental. Também é uma escolha individual. Não acredito que ninguém irá impor vacinas obrigatórias. Cada pessoa, para querer se vacinar, terá que estar tranquila de que a vacina é suficientemente segura e provavelmente eficaz. Assim é importante ter estes dados para que as pessoas possam tomar por si mesmas uma decisão fundamentada. E para que os Governos possam tomar decisões fundamentadas para seus cidadãos.
P. O laboratório farmacêutico britânico AstraZeneca anunciou que produzirá a vacina da Universidade de Oxford a preço de custo. Por que a vacina de Moderna será mais cara que outras vacinas?
R. Acredito que, para sermos justos, o preço tem que refletir até certo ponto o valor desta vacina. Acredito que o preço que pedimos, com o valor que tem, é mais que razoável em relação ao investimento que fizemos. O preço é menor que o de um exame de diagnóstico. E, cada vez que você fica doente, precisa fazer um exame de diagnóstico. Com uma vacina, deveria estar protegido durante muito tempo. Assim, se pensarmos no valor para a sociedade… Talvez outras empresas possam oferecer suas vacinas grátis: é sua escolha e talvez possam se permitir. Mas não acho que se deva esperar de nós que possamos fazer isto. E, sinceramente, não acho que seja justo, dado o investimento que possibilitou esta vacina.
P. Quanto vai durar a imunidade?
R. Frequentemente me perguntam quanto vai durar a proteção. E a resposta é: não sei, mas, obviamente, quanto maior for a quantidade de anticorpos [gerados pela vacina] com que se começa, mais provável é que funcione e mais provável é que dure mais tempo. É preciso chegar pelo menos a níveis similares aos de pessoas que superaram a doença, mas se pudermos chegar a níveis superiores, esperamos que seja melhor. Escolhemos doses maiores de vacina porque achamos que nossa plataforma nos permite fazê-lo de maneira segura e tolerável.
P. Você e outros executivos da Moderna venderam ações da sua empresa por quantias de milhões de dólares nos últimos meses. Por que vendeu ações, já que se supõe que a vacina funciona e, portanto, você ganharia mais vendendo-as mais tarde?
R. É muito simples. Respondo o mesmo que respondi à minha esposa: não posso vender ações em função de se a vacina funcionar ou não. Isso é ilegal, é informação privilegiada. Só posso vender ações se preparar um plano pré-determinado de venda antes de saber nada [estabelecem-se condições para a venda automática se o preço das ações alcançar um determinado nível]. Quando preparei meu plano ainda não tínhamos injetado a vacina em ninguém. Não sabia nada. O que sabia é que estive trabalhando com a empresa durante cinco anos, tinha um pouco de dinheiro [acumulado em ações] e precisava diversificar o que tinha. Olhando para trás, não sei se fui estúpido, mas não tenho como mudar.
Não basta evitar a covid-19
Um dos grandes enigmas é se as atuais vacinas experimentais serão capazes de conter a pandemia. Uma vacina pode evitar a doença, a covid-19, mas não impedir as infecções assintomáticas. Uma pessoa imunizada com a vacina da Moderna poderá transmitir o vírus a outras pessoas se for infectada? “Não sabemos. E será muito difícil saber”, reconhece o médico Tal Zaks. O diretor científico da Moderna recorda que uma equipe de pesquisadores de Hong Kong acaba de descobrir o suposto primeiro caso de reinfecção pelo coronavírus: um paciente de 33 anos que teve uma primeira infecção com sintomas muito leves e uma segunda assintomática quatro meses depois. Zaks acredita que os métodos de detecção do vírus são tão sensíveis que é difícil interpretar estes casos. “Se eu já for imune ao vírus, mas alguém infectado espirrar em cima de mim, o vírus estará no meu nariz. Se você chegar cinco minutos depois e colocar um cotonete no meu nariz, verá o vírus. Isso significa que estou doente? Não. Significa que posso transmitir nesses cinco minutos o vírus a outra pessoa? Pode, quem sabe.”