Bob Dylan se exila na América Latina para escrever sonetos em livro
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando Fabrício Corsaletti, certa manhã da pandemia, despertou de um sonho intranquilo, encontrou-se em sua cama capaz de lembrá-lo por inteiro.
Apesar de estar em São Paulo, o sonho se passara em Buenos Aires. Bizarrices à parte, como um bebê de três olhos, Corsaletti deu de cara com um homem de meia-idade que não lhe era estranho. “Olhei novamente para o seu rosto e vi que era o Bob Dylan”, escreve o poeta no prólogo de seu novo livro.
Ainda no sonho, que aconteceu de verdade, Corsaletti descobriu que Dylan morava há 30 anos incógnito na Argentina. E havia escrito um livro chamado “200 Sonnets” em homenagem à cidade portenha. Ao colocar as mãos num exemplar da obra, Fabrício acordou.
Angustiado, abriu o computador e tentou emular um daqueles sonetos que não tinha lido daquele livro que só existira em seu sonho. Em nove dias, havia escrito 56 sonetos, que saem agora sob o nome de “Engenheiro Fantasma”.
São, portanto, rimas de Corsaletti que saíram da mente de um onírico Bob Dylan exilado na América do Sul, ou vice-versa. Corsaletti, que foi colunista da Folha entre 2011 e 2019, morou em Buenos Aires em 2005.
“Na Recoleta a morte é pedra e gesso/ enterrei meus avós numa campina/ ao lado de uma casa sem telhado/ cada passo que dou cobra seu preço/ não sei onde enfiei minhas botinas/ o futuro é uma espécie de passado”, diz o segundo soneto.
Outro exemplo: “No fim do dia conversei com um bruxo/ que disse ‘cara, a vida é uma piada/ não perca tempo caçando tesouros'”. São frases que fazem parte do imaginário de Dylan, o maior poeta do rock americano, e poderiam ser trechos de suas canções.
Às vezes, são mesmo. No soneto mais literal a uma música do cantor, o de número 27, Corsaletti chama os personagens de “All Along the Watchtower”, o ladrão, o coringa e “os príncipes da torre sentinela”.
Em outros momentos há citações menos óbvias, que serão captadas por fãs pesados do compositor. Como o surgimento de um homem pelado (o mesmo de “Ballad of a Thin Man”, talvez?), uma Garota Leopardo (possível eco de “Leopard Skin Pill-Box Hat”?) e os personagens oníricos de um hotel que somem após o narrador ligar a TV (lembranças de “Black Diamond Bay”?).
Corsaletti não sabe responder sobre todas essas citações, e até se surpreende com uma ou outra que ele não tinha percebido até então. Aficionado por Dylan há pelo menos 15 anos (“sendo que nos 10 primeiros eu ouvia todo dia e só ele”), ele se diz um tanto aliviado ao escrever esse livro não planejado, que saiu de sopetão. “Desde então, me senti liberto do Dylan. Estou até conseguindo ouvir outras coisas”, brinca o autor.
Os 56 sonetos de “Engenheiro Fantasma” (título original de uma canção de Dylan dos anos 1960 que acabou mudando de nome) têm todos 14 linhas e seguem as mesmas rimas, a saber: ABBA, ABBA, CDE, CDE.
“Mas o que me impressiona em Dylan são as imagens que ele cria. Você nunca sabe o que vai aparecer no próximo verso. Ele é clássico, moderno, sóbrio, cômico, tudo ao mesmo tempo, tudo misturado.” É o que “Engenheiro Fantasma” busca fazer em seus sonetos. E alcança essa meta em diversos bons momentos.ENGENHEIRO FANTASMA
Preço: R$ 54,90 (128 págs.) e R$ 37,90 (e-book)
Autor: Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Fonte: Notícias ao Minuto