Escrita como tese de doutorado na Faculdade de Direito da USP, obra põe ênfase na forma como os juízes julgam
Sexta, 18 de março de 2022
De acordo com um mito grego, certa vez Hades – o deus do mundo dos mortos – levou a Zeus a seguinte reclamação: almas justas estavam sendo lançadas no Tártaro, lugar de sombras e escuridão, enquanto almas injustas partiam para a bem-aventurança eterna das Ilhas Afortunadas. O deus supremo deu razão a Hades e esclareceu que o erro se devia ao fato de que, para saber se uma pessoa era justa ou injusta, o julgamento estava sendo feito por seres viventes, ou seja, almas vestidas em corpos – invólucros que se prendem ao mundo sensível e a suas paixões e interesses. Para resolver a situação, Zeus ordenou que o julgamento de cada ser humano fosse feito somente após a morte, porque, após a morte, quem julga e quem é julgado estão nus, despidos de corpos. Para que se julgue com justiça, “o juiz deve estar nu, morto”.
Esse mito está na base da concepção de justiça elaborada pelo filósofo grego Platão (427-347 antes de Cristo), segundo o livro O Juiz Nu – A Morte e a Justiça em Platão e na Tradição Platônica Antiga, de Jonathas Ramos de Castro, que acaba de ser lançado pela Editora Dialética. Escrita como tese de doutorado defendida em 2020 na Faculdade de Direito da USP – sob orientação do professor Ari Marcelo Sólon –, a obra extrai das ideias de Platão críticas e recomendações para os juízes do século 21.
Entre essas críticas e recomendações está a ideia de que, assim como no mito grego, ninguém pode julgar sem antes se “purificar”, “libertar sua alma”, separando-a do corpo, que é passível de ser seduzido pelas riquezas e por discursos bem constituídos. Em outras palavras, nenhum juiz julga corretamente sem praticar o “exercício da morte”. “Morrer é se preparar para dizer a verdade”, escreve Castro. “Esse preparar a si mesmo para o discurso verdadeiro, no platonismo, é o exercício, ou a prática, ou a ascese, da morte.”
Uma das formas de praticar o “exercício da morte” – a separação da alma em relação ao corpo – é a educação nas ciências, segundo Platão e a tradição platônica. Essas ciências correspondem à matemática – incluindo aritmética, geometria, estereometria (estudo do volume dos sólidos), astronomia e música – e à dialética, a mais perfeita das ciências. “A educação é uma correção do olho da alma, quando este ‘não está na posição correta e não olha para onde deve’”, escreve Castro, reproduzindo trechos da República, uma das principais obras do filósofo grego. “Pela educação, o olho da alma é desviado ‘das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do ser e da parte mais brilhante do ser’. A educação, portanto, está intimamente relacionada à ascensão da alma, isto é, ‘sua elevação até a realidade’.”
Mas a educação nas ciências não é a única forma de praticar o exercício da morte. Outra maneira de separar a alma do corpo é a educação nos prazeres ou nos “assuntos do amor”. Agora citando outra obra-prima de Platão – o diálogo Banquete –, Castro destaca a importância do amor, que é purificação. “Amar é amar coisas belas, que são aquelas que nos proporcionam prazeres, os quais, se direcionados corretamente por uma educação erótica fundada na medida, nos conduzem a experimentar prazeres superiores e a amar coisas belas superiores”, escreve. “Nesse caminho, a alma se separa do corpo e, subindo os degraus da scala paradisi erótica, aproxima-se do inteligível. Assim, o amor purifica a alma: sendo amor do belo, ele conduz a alma da beleza dos corpos à beleza do inteligível; sendo o belo um prazer, o amor conduz a alma do prazer do corpo – que a prende ao corpo e a torna corpórea – ao prazer do inteligível.”
Ponto culminante do “exercício da morte”, esse movimento em direção ao “prazer do inteligível” só é possível àqueles que se dedicam à filosofia, aos filósofos, diz Platão. Por isso os filósofos – e não os juristas – é que são realmente justos e conhecedores da justiça. “Assim como é o verdadeiro político, o filósofo é o verdadeiro juiz, e pela mesma razão: porque conhece a ciência da justiça e, mais fundamentalmente, porque pratica o exercício da morte. Não há ciência da justiça sem exercício da morte”, explica Castro.
Sem se exercitar na morte, os juízes não se diferenciam dos sofistas, diz Platão em outro de seus diálogos, o Teeteto, numa passagem em que critica os dikastaí, os membros dos tribunais de Atenas em sua época. Como escreve o filósofo grego, tanto os juízes como os sofistas se utilizam da retórica – que equivale a um discurso bajulador –, vivem nos tribunais, usam linguajar solene e complicado e se prendem a leis e decretos da mesma forma como a alma se prende ao corpo.
Para Castro, essa crítica de Platão aos juízes não consiste em dizer somente que eles, sendo sofistas, falam do que não sabem e não vivem. “Ela consiste também, e mais fundamentalmente, em dizer que os juristas, pretendendo falar da justiça, não praticam o exercício da morte. Que eles não buscam purificar a própria alma, deixando para trás o erro e o vício provocados pela ausência da reta razão entre a alma e o corpo, ausência essa que faz com que, na alma, o concupiscível e o irascível prevaleçam sobre o racional. Que, neles, a alma se deixa tão facilmente seduzir pelo sonho narcísico do corpo, pela festa dionisíaca do corpo, descurando da ordem que a faz se mover no compasso da alma do mundo.”
Segue daí a exortação aos juízes que Castro faz no final de sua obra, sempre citando Platão: “Mais do que juristas, tornem-se filósofos”.
Orfeu e Pitágoras
As ideias de Platão sobre o “exercício da morte” não têm origem na religião pública da Grécia antiga – em que está baseada a mitologia de Homero e Hesíodo, por exemplo –, uma vez que ela não fala de purificação e libertação, como mostra Castro em O Juiz Nu. Antes, elas devem ser buscadas na religião órfica e no pitagorismo. À diferença da religião pública, que destinava todos os seres humanos para o mesmo lugar de sombras, os órficos tinham a crença em destinos diferentes, um bom e um ruim, o bom para o puro e livre, o ruim para o impuro e escravo. Já entre o grupo dos pitagóricos mathematikoí (“alunos”) – surgidos de uma cisão do pitagorismo ocorrida no século 5 antes de Cristo –, as noções de purificação e libertação foram esvaziadas do seu conteúdo mágico-ritual para se ligar às ciências, como a geometria, o verdadeiro meio de purificação. “Platão subtraiu os componentes mitológicos e rituais presentes em suas fontes (a culpa original pela morte de Dioniso, as iniciações, fórmulas etc.), mantendo somente os componentes científico-racionais (as matemáticas) e acrescentando a estes o componente filosófico-racional (a dialética)”, defende Castro.
“Ao longo de todo o trabalho, em verdade, o ‘exercício da morte’ é muito mais um ‘exercício de vida plena’, pois ‘morte’ será compreendida como purificação (kátharsis) da alma”, escreve no prefácio do livro o professor Eduardo Bittar, da Faculdade de Direito da USP. “Aqui, como não poderia ser diferente, a filosofia exerce uma profunda ruptura na forma de ver e perceber o tema da justiça; ela assume o sentido profundo de ascese de vida, de compromisso com a justiça, criando uma ruptura com a vida comum, permitindo que seja possível renascer nesse novo nível de compreensão.”
Como apêndice, O Juiz Nu traz a tradução de Por Que Platão Disse Que Deus Sempre Geometriza, de Plutarco, autor do século 5 da era cristã, feita por Castro diretamente do texto grego, que constitui um exemplo da tradição platônica sobre o “exercício da morte”.
O Juiz Nu – A Morte e a Justiça em Platão e na Tradição Platônica Antiga, de Jonathas Ramos de Castro, Editora Dialética, 140 páginas R$ 54,90.
Fonte: Jornal USP