- Shin Suzuki
- Da BBC News Brasil em São Paulo
“O príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejava. (…) Muito me tem custado alcançar isto tudo: só desejava insuflar uma decisão mais firme”, escreve Dona Leopoldina, em janeiro de 1822, a seu secretário particular. Ela está empenhada a convencer o marido, D. Pedro, a permanecer no Brasil.
No dia seguinte a essa carta aconteceria um capítulo importante para o país: o Dia do Fico. O príncipe resolve, então, não acatar ordens vindas de Lisboa e entra definitivamente em um caminho que vai levar à proclamação da independência do Brasil oito meses depois.
D. Pedro, um pouco antes, pendia para o retorno a Portugal. O rei D. João 6º voltou no ano anterior e a atmosfera na sociedade portuguesa era em prol da retirada das vantagens e dos avanços obtidos pelo Brasil, como sede da família real, a partir de 1808. O objetivo era restabelecer o status de colônia do território brasileiro.
A visão e a atuação política da arquiduquesa austríaca nos bastidores do processo de independência tiveram considerável peso para o trajeto que tomou a história do país. O que pode soar contraditório quando, em outros momentos, Leopoldina é vista fragilizada e impotente diante das humilhações impostas por D. Pedro – principalmente quando o imperador favorece de forma ostensiva a amante Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos.
Os traços de personalidade e as atitudes da primeira imperatriz brasileira são ligados por historiadores a sua origem na dinastia dos Habsburgos, reinante na Áustria por mais de 600 anos.
A família mantinha uma tradição de “política de casamentos” para aumentar territórios e se manter nos centros do poder. As princesas dos Habsburgos recebiam uma formação que deixava claro que os interesses da dinastia estavam acima dos pessoais. A irmã Maria Luísa se casou com Napoleão Bonaparte.
Leopoldina nasceu em 1797, filha de Francisco 1º, imperador da Áustria. Teve instrução ampla, rica e estava em um ambiente sofisticado intelectualmente: conviveu com o compositor clássico Schubert e o escritor Goethe. Desenvolveu o seu interesse pela mineralogia com as aulas de ciências naturais.
Mas principalmente recebeu educação calcada na obediência e na moral religiosa.
Sacrifício
Carlos H. Oberacker Jr, um dos principais biógrafos de Leopoldina, escreve que “outro traço, sem o qual não se entenderá o comportamento com o qual ela se submete – quase como um sacrifício – em sua vida conjugal, é a religião. Sua formação religiosa teve uma profundidade e uma intensidade que raramente se encontrava nos altos estratos sociais daquele tempo”.
A união de Leopoldina com o príncipe e herdeiro da coroa portuguesa, D. Pedro 1º, era vista pelos Habsburgos como uma porta de entrada para as Américas, o “Novo Mundo”. A Casa de Bragança, por sua vez, decidiu se ligar a uma força da Europa pós-napoleônica para o casamento arranjado.
“D. Leopoldina era uma legítima representante da dinastia dos Habsburgos da Áustria. Seu casamento foi, como eram os casamentos reais, baseado em um tratado entre Portugal e a Áustria. Era uma mulher inteligente, culta, bastante honesta e ciosa dos valores da religião católica em que fora educada”, diz a historiadora Isabel Lustosa, autora do livro D. Pedro 1º: Um Herói sem Nenhum Caráter (Companhia das Letras, 2006).
Foram construídos arcos no Rio de Janeiro para a recepção da princesa vinda da Áustria em 1817. Eles continham inscrições com virtudes atribuídas a Leopoldina: bondade, amabilidade, doçura. Havia também bandas e crianças jogando flores no caminho do cortejo da chegada, segundo um cronista do período, o Padre Perereca.
Leopoldina descreve em carta a impressão ao chegar ao Rio: “A entrada do porto é sem par, e acho que a primeira impressão do paradisíaco Brasil a todo estrangeiro é impossível de descrever com qualquer pena ou pincel”.
Mas logo a arquiduquesa austríaca estranharia o ritmo lento do cotidiano na corte.
Escreve ela em carta à irmã: “Apesar de estar feliz, o modo de vida, no qual as pessoas nunca vão ao teatro, não se frequentam em sociedade, a não ser para ver as pessoas que se vê todos os dias, para uma pessoa que está acostumada a diversões é de enlouquecer: até meu esposo suspira por isso. Ler e escrever, o calor do clima e a preguiça que é sua consequência não permitem”.
Independência
Uma das “missões” assumidas por ela após a instalação no Brasil foi aumentar a bagagem cultural de D. Pedro, visto como alguém perspicaz e com grande capacidade de comunicação, embora, aos olhos dela, com formação educacional deficitária para um futuro rei.
O entendimento sobre como funcionava o jogo de poder, desenvolvido como uma integrante do clã Habsburgo, influenciou sua atuação em prol da independência do Brasil.
A historiadora Mary del Priore afirma que Leopoldina “vai lentamente se convencendo que a emancipação [do Brasil] será boa para os seus filhos, garantiria um trono para a sua descendência. Isso é de fundamental importância. Depois ela pensa na união do Brasil, pensa no seu marido como monarca reinante”.
Em outra carta, D, Leopoldina analisa que “esse é o único meio de evitar a queda total da monarquia portuguesa”.
“Ela teve visão bastante pragmática dos acontecimentos e compreendeu que seria melhor para a Áustria e para a família que havia formado viver em um país independente”, diz Isabel Lustosa.
D. Leopoldina, então, toma à frente de reuniões ao lado de outro artífice da proclamação, José Bonifácio, e firma contato com grupos como os “Patriotas Brasileiros”.
“Ela vai ajudar muito D. Pedro no processo de independência porque ele falava muito mal línguas”, diz Del Priore, que escreveu A Carne e o Sangue: A Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro 1º e Domitila, a Marquesa de Santos (Rocco, 2012) .
“Leopoldina vai acolher marinheiros e sobretudo soldados contratados – mercenários – para a marinha brasileira. Vai a cavalo pro arsenal com D. Pedro, encomenda cavalos para a cavalaria brasileira, ela tem uma série de cuidados: participa ativamente desse momento.”
Enquanto D. Pedro estava em São Paulo para a costura de apoios, D. Leopoldina assumia como regente, tornando-se a primeira mulher a governar o Brasil. Ela convoca e preside uma reunião do Conselho de Estado em 2 de setembro de 1822 e sanciona a deliberação do grupo: deveria ser proclamada a independência do Brasil.
Em correspondência ao seu pai, o imperador Francisco 1º, ela relaciona suas ações ao compromisso de se sacrificar pela família: “O Todo-Poderoso sabe que nunca tive ambição pelo poder, nunca gostei de reinar, muito menos nas condições atuais; por este motivo, certamente este é o sacrifício mais pesado e maior que eu faço”.
O pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, autor de D. Leopoldina: A História Não Contada (Leya, 2017), diz que “o papel dela, em determinados momentos, foi mais importante que o do marido. Enquanto d. Pedro, ainda no final de 1821, estava disposto a fazer tudo o que as Cortes Constitucionais Portuguesas queriam dele, com medo de ser destituído como herdeiro do trono, D. Leopoldina já tinha se desenganado quanto ao que se esperar dos portugueses”.
“O Fico, por exemplo, é um movimento que não teria o fim que teve sem ela agindo nos bastidores como elemento que teceu as bases para que ele ocorresse”, afirma Rezzutti.
Sofrimento
A sintonia de Leopoldina com D. Pedro 1º durante o processo da independência não reflete a grande infelicidade na relação conjugal – manifestada em cartas.
Em correspondência com a irmã Maria Luísa, em 1821, ela conta: “Começo a acreditar que somos muito mais felizes quando solteiros, pois agora tenho preocupações e dissabores que engulo em segredo, pois queixar-me seria ainda pior; infelizmente, vejo que não sou amada”.
Em outro trecho ela compara sua vida vigiada com a do marido: “No Brasil não se dança nunca, e meu esposo tem o belo costume de se divertir de qualquer maneira; os outros, porém, nunca podem rir e devem viver como eremitas, sempre cercados da polícia secreta, o que intimamente me repugna, mas me calo”.
“Nós temos abundantes documentos que comprovam que Leopoldina foi abandonada desde o segundo mês de casamento”, diz Mary del Priore.
A imperatriz também tinha de enfrentar problemas financeiros. Chegou a pedir dinheiro a membros do império austríaco para honrar dívidas e custos de obras sociais.
“Gastos imprevistos, ordenados e pensões a famílias necessitadas e aos criados, que, infelizmente, põem toda a sua esperança em mim, obrigam-me a desembolsar a quantia de 24 mil florins. Não posso pagar essa dívida, e menos ainda meu esposo. Minha mesada não é paga, ou, quando é, meu marido a retém, e não posso tirá-la dele, pois ele mesmo a necessita.”
Essa situação se contrastaria com os custosos privilégios, presentes e benesses que receberia Domitila. D. Pedro teve diversas amantes e casos, mas a Marquesa de Santos ganharia um status diferenciado.
Seus irmãos obtiveram promoções para avançar na carreira militar. Os pais e cunhados se tornaram viscondes e barões. Domitila também começou a gerenciar tráfico de influência na corte, ao intermediar acesso de quem precisava de favores na burocracia real.
Em um episódio no ano de 1825, o imperador exigiu que a amante pudesse frequentar a tribuna reservada às damas do Paço Imperial. O grupo de mulheres, em gesto de apoio a Leopoldina, deixou o local com a chegada de Domitila.
D. Pedro, em reprimenda ao protesto, nomeou a futura Marquesa de Santos a primeira-dama da imperatriz. Era uma posição de destaque na corte e que dava o direito de Domitila estar junto de Leopoldina em reuniões e excursões.
“Leopoldina foi certamente molestada psicologicamente. Nas correspondências com a irmã, ela se diz abandonada, traída, mal-amada. Descobri no arquivo do Museu Imperial de Petrópolis uma carta dela a um afilhado em que descreve seu estado, meses antes de morrer. Dizia que não dorme mais e só pensa em morrer. Ela sofreu uma violência psicológica”, afirma Del Priore.
Há suspeitas de violência física, mas os casos nunca foram estabelecidos historicamente. Uma carta atribuída a d. Leopoldina fala a respeito de um “horroroso atentado”, que alguns ligaram ao rumor de que ela teria sido agredida, quando grávida, com um chute de D. Pedro. “Mas a correspondência original nunca foi localizada e existem vários problemas com a cópia”, diz o pesquisador Rezzutti.
Para ele, “pensando cronologicamente, o aborto da criança ocorreu quase uma semana depois da saída dele do Rio de Janeiro, ele já partiu [para a Guerra da Cisplatina] com ela doente. O aborto, se fosse provocado por alguma agressão, teria ocorrido logo. O que muitos especialistas acreditam é que o aborto acabou ocorrendo não por agressão, mas por causa da doença e do estado de saúde debilitado em que d. Leopoldina se encontrava”.
Melancolia
O estado mental de D. Leopoldina começa a sofrer baques severos. Correspondências de diferentes pessoas em 1826 relatam que a imperatriz estava “fraca de saúde, e com maior depressão de ânimo do que de costume” e “pálida, por assim dizer, a apagar-se na flor dos anos”.
Há também observações sobre um crescente falta de vaidade com suas vestimentas e descaso com a aparência, algo que foi relacionado com o aprofundamento do quadro de depressão. Em uma carta para a tia, Leopoldina diz: “Estou na mais completa solidão”.
Grávida, a imperatriz passou 14 dias de cama, com febre, dores e diarreia até abortar um feto masculino. Na manhã do dia 11 de dezembro de 1826, segundo o barão de Mareschal, representante diplomático austríaco, “a morte terminou os seus sofrimentos, sem esforço, sem estertor, suas feições de modo algum eram alteradas, e ela parecia ter adormecido pacificamente e na posição mais natural”. D. Pedro I estava no sul do país.
Dona Leopoldina tinha 29 anos. Deu à luz sete crianças – três morreram precocemente. O filho Pedro se tornaria o segundo imperador do Brasil.
O Rio de Janeiro, que vinha acompanhando o drama público da imperatriz, entrou em luto, com toques de sinos e tiros de canhões. O austríaco Mareschal disse em correspondência: “Sua morte foi chorada sincera e unanimemente”.
Fonte: BBC Brasil