Por Tomaz Paoliello – Domingo, 10 de abril de 2022
O analista de Relações Internacionais, particularmente o que se dedica a estudar os conflitos internacionais, é constantemente desafiado a tentar compreender o significado político de violências que poderiam ser facilmente caracterizadas como a barbárie. Por um lado, devemos necessariamente condenar a violência produzida pela guerra, particularmente contra não-combatentes, por outro é necessário tentar compreender a lógica por trás de uma violência tão brutal. Se, conforme afirma Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios, sendo este meio particular o uso da violência, nos resta a indagação fundamental: quais são os objetivos políticos na promoção de massacres como o de Bucha?
De cara, creio ser importante desfazermos duas hipóteses que deveriam ser levadas em consideração apenas na ausência de outras mais certeiras. São duas hipóteses que tem aparecido bastante nas opiniões de analistas, e que dariam conta de uma irracionalidade na ação russa. Em outras palavras, o exército russo estaria exercendo violência sem significado e conteúdo político. Em geral esse argumento caracterizaria Putin (e não apenas ele, mas todo o governo) como louco, insano, lunático etc. A outra narrativa comum, também desta família de explicações, é de que os russos estariam agindo movidos por maldade ou vilania. Com afirmei, no centro destas hipóteses está a falta de objetivos políticos, e uma ênfase em características subjetivas. Isso pode eventualmente ser identificado em indivíduos, mas dificilmente na ação coletiva. Entre as tropas russas certamente há pessoas mal-intencionadas, inclinados à violência e criminosos. Mas as cenas de Bucha, assim como relatos de outras violências perpetradas na Ucrânia, indicam que há intencionalidade nas mortes de civis. A violência tem sido sistemática e em proporção que indica o envolvimento em larga escala das tropas russas.
Uma outra hipótese que merece ser considerada (e descartada), é a narrativa comum, muito utilizada em campanhas de bombardeios, por exemplo, afirma que a violência contra não-combatentes seria inevitável numa guerra. Se é verdade que essa violência é comum, isso não quer dizer que não existam meios mais ou menos violentos contra populações. O caso do bombardeio do hospital do Médicos Sem Fronteiras em Kunduz, no Afeganistão, por tropas dos EUA ajuda a ilustrar. Naquele momento, Washington afirmou que o hospital abrigava combatentes do Talibã. Mesmo se o hospital abrigasse um inimigo, fato negado pela MSF, a escolha por colocar o hospital abaixo é crucial para compreender como meios e fins estão relacionados no conflito. O termo bastante utilizado pelos EUA para se referir a vítimas não-combatentes, “danos colaterais”, é revelador da maneira como civis são tratados. Lá, como agora, o alcance e impacto das armas e dos alvos revela o grau de compromisso com a proteção ou não de civis.
Finalmente chegamos ao ponto central, descartadas hipóteses menos explicativas: por que os russos miram civis na Guerra da Ucrânia?
Uma primeira consideração sobre essa violência é que, apesar de parecer indiscriminada, não esteve dispersa nem territorialmente, tampouco espacialmente. Ela ocorreu nas regiões da linha de frente ou onde havia presença de tropas russas e, portanto, resistência ucraniana. Mesmo com amplo domínio do espaço aéreo e do mar, a Rússia tem optado por não fazer bombardeios mais generalizados. Quem se lembra das imagens de Aleppo, na Síria, sabe o potencial destrutivo de um possível bombardeio russo. A violência, portanto, não tem até o momento o significado de eliminar a maior quantidade possível de ucranianos, mas de produzir imagens, enviar recados na busca de resultados políticos.
A sinalização de violência contra não-combatentes busca atingir 3 alvos principais. O primeiro, mais óbvio, é a resistência civil. Desde o princípio do conflito, um dos símbolos da resistência ucraniana é a população em armas, lutando com equipamentos cedidos pelo governo ou com o que tivessem às mãos, como coquetéis molotov. Essa opção foi estimulada e amparada pelo governo, que em discurso e atos construiu a dimensão irregular do conflito. Não significa que todos os corpos encontrados em Bucha sejam de “guerrilheiros”, e pode mesmo acabar sendo provado que nenhum daqueles corpos era da resistência. Mas tem sido uma prática comum no repertório da contraguerrilha ou da contrainsurgência atacar as populações locais para minar o apoio à resistência. A população é a “camuflagem” do insurgente. Se, como afirma Mao Tse Tung, “o povo está para a guerrilha como a água está para o peixe”, uma das formas de desmobilizar a resistência é mirar “a água” para atingir “o peixe”. Acho que, a partir do caso de Bucha, veremos também crescentemente essa dimensão assimétrica do conflito, e a escalada de operações de contrainsurgência.
Além das vítimas diretas, os mortos e feridos em Bucha, as imagens de mortes, muitas delas com toda a indicação de execuções, enviam um recado para a resistência em outras partes do território ucraniano. Ao mostrar aos compatriotas os corpos de seus companheiros, os russos buscam minar a resistência em outras partes do país onde a guerra ainda ocorrerá. Esse seria um aspecto mais estratégico do massacre: passa a ideia de que civis que optarem pela resistência não serão poupados, particularmente no leste do país onde a guerra deve se concentrar daqui para frente. Se isso de fato será interpretado como elemento dissuasório pelas populações locais será visto apenas conforme o conflito se desenrole em sua nova fase.
Finalmente, o alvo político do massacre de Bucha são as instituições que deveriam proteger essas populações. Em primeiro lugar, evidentemente, o governo da Ucrânia. Conforme a guerra se prolongue, as mortes de civis, destruição de patrimônio etc. se tornarão um custo cada vez maior para a manutenção do conflito pelo lado ucraniano. Neste sentido, as mortes em Bucha prenunciam um futuro tenebroso, já que parece ter sido adicionada à estratégia russa o aumento do custo humano e material, que deverá ser observado em outras partes do país. Como Zelensky insuflou o povo ao combate, com o tempo essa violência inevitavelmente também cairá em seu colo. Mesmo que não sejam de fato alvos válidos, os russos poderão afirmar que os mortos civis eram na verdade combatentes irregulares armados pelo governo. Como afirmo desde o início do conflito, ao mobilizar a população à luta, o governo da Ucrânia comprou também a consequência negativa, o outro lado da moeda, transformar seu povo em alvo.
Em segundo lugar, toda a discussão sobre o massacre joga lenha na fogueira na falta de envolvimento direto dos EUA e OTAN no conflito. As imagens repercutiram muito nos círculos liberais intervencionistas nos EUA e Europa, setores que já vinham tocando os tambores de guerra. Caso Biden não se movimente, o que ainda é o mais provável, a conta deste e outros massacres ficará também nas suas costas. A violência visa, portanto, aumentar a percepção de irresponsabilidade dos Estados Unidos, que estariam se furtando a proteger e auxiliar as populações vulneráveis. A Rússia ainda testa sua mão nesse aspecto, já que a intenção não é que de fato os EUA entrem na guerra. Fosse este o caso, estaríamos diante de uma tragédia ainda maior, com proporções globais. O caminho mais curto para o fim da violência na Ucrânia ainda é a negociação em direção a um cessar-fogo. Ou seja, ao aumentar o dano humano, a Rússia busca chamar os EUA à mesa de negociação. Até o momento essa estratégia tem funcionado em sentido inverso, tornando cada vez mais difícil um fim negociado a uma guerra que apresenta cada vez mais letalidade para os ucranianos.
*Tomaz Paoliello é professor do curso de Relações Internacionais e do mestrado profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP. Pesquisador visitante no LACC – London School of Economics.
Fonte: Jornalistas Livres