Publicação do Memorial da América Latina traz reflexões sobre o modo como a Independência foi vista e retratada ao longo de duzentos anos
por Luiz Prado – Domingo, 17 de julho de 2022
Arte: Ana Júlia Maciel
Debater as contradições do processo de Independência do Brasil, proclamada em 1822, e as representações e leituras feitas sobre ele ao longo dos últimos 200 anos é uma necessidade. Olhar para o que foi pensado e produzido sobre a questão nos séculos 19 e 20 e nestas primeiras décadas do 21 permite compreender quais visões de nação e de sociedade foram valorizadas e quais omitidas, que personagens e sujeitos sociais tornaram-se emblemas e quais foram trancados no quarto de despejo da história. Hoje, voltar para o 7 de setembro de 1822 é, na verdade, pensar o Brasil que queremos ser.
Uma das mais recentes contribuições para esse debate está na edição 59 da revista Nossa América, publicação do Memorial da América Latina disponível gratuitamente no site da instituição. Com a contribuição de especialistas da USP, o periódico trata do bicentenário da Independência, propondo um olhar para a construção das representações feitas sobre esse processo e se detendo nos personagens obliterados no meio do caminho.
Um museu para a Independência
Uma das materialidades mais representativas desse imaginário ao redor da Independência, o Museu Paulista Paulista da USP – também conhecido como Museu do Ipiranga – é tema de dois textos de Alexandre Barbosa, editor da revista e gerente de assuntos acadêmicos do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina. Fechado desde 2013, o Museu Paulista prepara sua reabertura nas comemorações do bicentenário, após um longo trabalho de restauro e ampliação de suas dependências e de conservação de seu acervo, para os quais foram captados R$ 211 milhões via lei federal de incentivo à cultura.
Com espaço ampliado para 6.800 m², o museu dobrou de tamanho, ganhou um novo auditório e uma série de recursos de acessibilidade, como rampas, elevadores e tratamento multissensorial para mais de 350 peças do acervo, incluindo telas táteis, reproduções em metal, maquetes tridimensionais, dispositivos olfativos e cadernos em braile. O Jardim Francês em frente ao prédio, com seus oito espelhos d’água, também foi restaurado.
Jardim Francês em frente ao Museu do Ipiranga, em São Paulo – Foto: Ana Clara Gaspar
Projetado pelo arquiteto italiano Tommaso Bezzi e construído entre 1885 e 1890, o museu surgiu como um edifício-monumento para celebrar a Independência, uma das razões que explicam a centralidade dos investimentos e esforços ao seu redor. Com um acervo de 450 mil itens e documentos, é o museu público mais antigo de São Paulo e um dos mais antigos do País, fazendo parte da USP desde 1963. Seu edifício é tombado pelo patrimônio histórico municipal, estadual e municipal.
Doze exposições estarão à disposição do público quando o museu abrir as portas. Parte delas apresentará aos visitantes a história da instituição e seus procedimentos de trabalho, enquanto outras abordarão os processos sociais relacionados à construção da história do Brasil. Conforme Barbosa aponta em seu texto, a reinauguração do Museu do Ipiranga é um momento oportuno para a reflexão sobre as formas pelas quais a sociedade brasileira cria e recria sua memória.
Isso porque passear pelas salas e corredores do edifício-monumento é percorrer não apenas a história do Brasil e de sua Independência, mas a história de como esses processos foram pensados e representados. Estátuas de bandeirantes, quadros com ilustrações que celebram a destruição de populações indígenas e obras como a monumental tela Independência ou Morte, de Pedro Américo, são alguns dos itens guardados pelo museu e que revelam as escolhas narrativas de seus autores e patrocinadores ao longo dos anos.
“Os curadores do museu tiveram um cuidado especial com essas obras, que devem ser tratadas como documentos históricos, portanto, como obras que nos informam sobre um modo de pensar de determinados grupos sociais em um determinado período de nossa história”, escreve Barbosa. “Como pensar os monumentos que glorificam heróis que não queremos mais exaltar? Que perguntas o presente faz ao passado?”
Trabalho de restauração no Museu do Ipiranga – Foto: José Rosael
Representações da nação
É justamente o olhar atento para as diferenças e semelhanças nesses modos de pensar que norteia a contribuição de Maria Ligia Coelho Prado, Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. No texto que assina para a revista, ela compara a representação pictórica dos processos de independência e constituição da nacionalidade em cinco países da América Latina.
Maria Ligia analisa as obras Independência ou Morte (1888), do brasileiro Pedro Américo, O Juramento dos 33 Orientais (1877), do uruguaio Juan Manuel Blanes, O Suplício de Cuauhtémoc (1893), do mexicano Leandro Izaguirre, La Batalla de Carabobo (1887), do venezuelano Martín Tovar y Tovar, e El Ensayo del Himno Nacional en la Sala de la Casa de María Sánchez de Thompson (1909), do chileno Pedro Subercaseaux Errazuriz, feito para as celebrações do centenário da independência argentina.O juramento dos 33 Orientais (1877), de Juan Manuel BlanesO suplício de Cuauhtémoc (1893), de Leandro IzaguirreDetalhe de La Batalla de Carabobo (1887), de Martín Tovar y TovarEl ensayo del Himno Nacional en la sala de la casa de María Sánchez de Thompson (1909), de Pedro Subercaseaux Errazuriz
Ao longo do texto, a professora mostra como as escolhas artísticas de cada autor, a produção de cada obra e sua recepção podem ser relacionadas ao momento histórico de seus respectivos países. Enquanto o quadro de Pedro Américo – que foi encomendado e habita o Salão Nobre do Museu do Ipiranga – traria motivos pictóricos relacionados ao imaginário simbólico da monarquia, por exemplo, a tela de Blanes revelaria inspirações do ideário republicano. “São as afinidades políticas que nos fazem entender as concepções diferentes dos dois pintores sobre o mesmo tema da independência”, escreve a autora.
Da mesma forma, a sangrenta história mexicana no século 19 ajudaria a compreender a ausência de uma representação da independência como no Brasil e no Uruguai e a predileção pelo tema do enfrentamento colonial entre astecas e espanhóis. Tendo entrado em confronto com os Estados Unidos entre 1846 e 1848 e perdido metade de seu território, enfrentado uma guerra civil entre liberais e conservadores, sofrido uma invasão europeia que resultou na tomado do poder pelo imperador austríaco Maximiliano de Habsburgo e depois passado pela restauração da república por Benito Juárez, o México viu suas elites e seus artistas se voltarem para as raízes indígenas na busca do genuinamente nacional como forma de encarnar a resistência frente aos estrangeiros.
Por outro lado, as disputas entre unitários e federalistas, com a consequente demora na organização de um Estado nacional centralizado, explicariam a falta de uma pintura representativa da constituição da nação na Argentina. Isso porque a feitura de tais obras, durante todo o período e em todos esses países, era patrocinada pelo próprio Estado. Apesar de o trabalho de Subercaseaux tratar desse processo, Maria Ligia aponta que ele não adquiriu a mesma importância que as pinturas dos outros países analisados. É digno de nota, indica a professora, que nenhum artista do país tenha se interessado pelo concurso promovido por ocasião do centenário da independência e o prêmio ter sido entregue a um chileno (Subercaseaux, na verdade, ficou com o segundo lugar, já que a comissão julgadora não concedeu o primeiro prêmio a ninguém e o negou ao artista por ele não ser argentino).
O grito que pode não ter existido
O tema da representação pictórica da Independência e da formação da nação volta a aparecer na entrevista do professor João Paulo Garrido Pimenta, também da FFLCH, publicada na nova edição de Nossa América. O professor reflete sobre o quadro de Pedro Américo e rebate os críticos que acusam o trabalho do pintor de falsificar a história. O que se vê em Independência ou Morte, explica o professor, não é uma imagem que tenta descrever a realidade, mas uma representação criada no intuito de gerar um sentimento. “Não é uma falsificação. E não é uma representação da Independência. É uma representação da nacionalidade brasileira, aproveitando-se de um episódio ligado à Independência do Brasil”, defende.
Na realidade, nenhuma memória histórica é construída somente com a verdade, pondera o professor na entrevista. Ela se vale, sim, de algumas verdades para construir uma versão do passado que interesse ao presente. Isso pode ser pensado não só em relação às pinturas citadas, mas em referência a todo processo de reconstrução da memória. As ideias ao redor dos acontecimentos do dia 7 de setembro de 1822 são um exemplo disso, acrescenta o professor.
“Algo aconteceu nesse 7 de setembro relacionado à Independência. Nós não sabemos exatamente o quê, mas temos certeza de que foi muito menos do que a memória histórica atribuiu a esse acontecimento”, relata Pimenta. Segundo ele, dos quatro relatos produzidos posteriormente por pessoas da comitiva de Dom Pedro, nenhum é confiável o bastante para termos certeza de que houve um grito de “independência ou morte” ou qualquer gesto solene, como um erguer de espada, por exemplo. Sabe-se apenas que o futuro imperador estava de passagem entre São Paulo e Rio de Janeiro quando recebeu algumas cartas em caráter de urgência.
O famoso quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo – Foto: Reprodução
“Nada disso deve ter acontecido”, comenta Pimenta. “Mais importante para o processo de Independência foram a aclamação pública a Dom Pedro, em 12 de outubro, e a sua coroação como imperador, em 1o de dezembro de 1822. Esses são os grandes marcos de ruptura.”
Outra questão em torno da construção da história brasileira abordada pelo professor envolve o mito de nossa singularidade dentro dos processos de independência latino-americanos. Considerar a experiência brasileira única quando comparada aos acontecimentos da América espanhola seria ignorar que estes ofereceram parâmetros para quem estava buscando a independência ou tentando evitá-la.
“Essas independências compõem uma unidade histórica. Separá-las, como se elas tivessem acontecido de maneira isolada, é uma violência contra a própria história”, explica. “As memórias históricas nacionais pretenderam que cada país seja diferente e superior. O mito da singularidade brasileira no século 19 é um mito porque é exagerado. É claro que o País foi diferente, mas os outros países também eram diferentes entre si.”
O lugar das mulheres, música, vestuário e identidades indígenas
Além das contribuições de docentes da USP, o número 59 de Nossa América traz também uma série de textos que abordam o lugar das mulheres na memória dos processos de independência e constituição da nação. Anna Carolina Longano, doutoranda pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, comenta o fato pouco conhecido de a declaração de Independência do Brasil ter sido assinada por D. Leopoldina, a esposa de D. Pedro. “Por que tanto se fantasia sobre um grito dado por um homem, mas não se fala sobre a assinatura de uma mulher?”, questiona a autora.
Também interessada em Leopoldina, Bruna Kalil Othero apresenta trechos de seu livro inédito Tinha Um Pedro no Meio do Caminho, no qual constrói um diário ficcional da imperatriz. Já Ciça Carboni comenta os perfis das personagens históricas Joana Angélica, Maria Felipa e Maria Quitéria, mulheres que lutaram durante o processo de independência e tiveram suas contribuições esmaecidas pela memória oficial.
Dentre outros artigos, a revista conta com textos de Luciana Camara e José de Almeida Amaral Jr. sobre a música no Brasil imperial e seu caminho em busca de um caráter nacional. Traz ainda apontamentos de Suelen Karini Almeida de Matos e Mara Rúbia Sant’Anna acerca do vestuário durante o Império e também uma reunião de depoimentos indígenas sobre ressurgimento étnico e proteção ambiental.
A revista Nossa América, edição 59, publicada pelo Memorial da América Latina, em São Paulo, está disponível gratuitamente neste link.