Livro traz a trajetória da cantora que fez parte da bossa nova paulista, nos anos 60, e foi a primeira a gravar Chico Buarque
Por Claudia Costa – Domingo, 7 de domingo de 2022
Elogiada por João Gilberto como uma cantora de “voz colorida”, a paulista Maricenne Costa foi a primeira artista a gravar Chico Buarque, cantou em festivais de MPB dos anos 60 – um dos quais a consagrou como “A Voz de Ouro do Brasil” – e fez parceria com o grupo punk Inocentes nos anos 1990. Sua vida e trajetória estão no livro Maricenne Costa – A Cantora de Voz Colorida, escrito por sua irmã caçula Elisabeth Sene Costa (médica psiquiatra com mestrado pela Faculdade de Medicina da USP) e pela jornalista Laïs Vitale de Castro. A biografia, que acaba de ser lançada pela editora Álbum de Família, é baseada em entrevistas com músicos, críticos, jornalistas e produtores, e traz um retrato dessa intérprete e compositora que fez parte do auge da bossa nova paulista e representou a música brasileira em Portugal e nos Estados Unidos, além de ter se destacado também como atriz.
A homenagem da irmã é mais do que uma biografia. “O objetivo é mostrar realizações de Maricenne (ela fez muita coisa) e, através de suas histórias, compor um registro da música popular brasileira daquele tempo”, diz Elisabeth. Ainda segundo ela, a ideia do livro surgiu quando Maricenne resolveu parar de cantar. “Levou cerca de cinco anos para ficar pronto. Ficou guardado um tempo, mas em 2021 fui apresentada ao editor Edilson Rodrigues da Silva, que o ‘tirou da gaveta’ e, juntos, o refizemos”, conta, acrescentando que organizou a trajetória artística e incluiu cartas, frases e convites feitos por amigos. Nas 260 páginas do livro, pode-se acompanhar a carreira da cantora, hoje com 86 anos. “São apresentados vários momentos artísticos dela, shows, gravações, festivais, premiações, peças de teatro, assim como os aplausos recebidos e as decepções ocorridas”, enumera Elisabeth, dando como exemplo o espetáculo Mulher, Vai Cavar Nota, que mostrava a subjugação das mulheres pelos homens, sem esquecer um projeto sobre a Amazônia, da qual pouco se falava naquela ocasião.
Nascida Maria Ignez Senne Costa, em 3 de dezembro de 1935, na cidade de Cruzeiro, no Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, ainda menina cantava músicas acompanhando a mãe, dona Sara, que tocava o piano disposto no canto de uma grande sala de visitas. Como conta a própria Maricenne, “essa paixão por uma escolha, um dom, vai surgindo de dentro para fora, pela própria natureza. Eu acho que com todo mundo acontece assim, seja qual for o dom. Eu fui sendo levada para dentro da música, sem saber aonde ia dar. E mergulhei naquelas notas de cabeça, esquecendo de perguntar se aquele atraente lago azul da música tinha fundo. A força interior que nos atrai é indecifrável”.
A cantora de voz colorida
A carreira musical de Maricenne Costa começou antes de ela se formar no Curso Normal (para professora de primeiro grau, em 1953), quando cantava no Coral Branco, na sua cidade natal, que era formado por mais de 50 integrantes e regido pela professora Olga Caputo. De 1953 a 1956, Ignezita, como era conhecida na época, participou de alguns programas de calouros, dentre eles A Hora do Calouro, de Ary Barroso, na Rádio Cruzeiro do Sul, e depois na Rádio Tupi. Mas foi no concurso da Fábrica de Televisores ABC, criado para eleger a melhor voz do País, que a cantora viu sua chance de cantar na televisão – o prêmio era cantar por um ano na TV Tupi de São Paulo. Com cerca de 3 mil candidatos inscritos e várias eliminatórias, das quais só um representante de cada Estado era selecionado, o concurso chegou ao fim depois de quase um ano, com apenas 15 calouros, que se apresentaram para um júri composto de instrumentistas, representantes de gravadoras, jornalistas especializados e cantores consagrados, além de professores de música e de canto e compositores. E foi ela a vencedora, eleita, como anunciou o apresentador Jota Silvestre, “A Voz de Ouro do Brasil de 1958”. Foi aí que ganhou também o seu nome artístico, Maricene (que depois, nos anos 80, incluiu mais um n).
Maricenne integrou-se ao movimento da bossa nova e foi acompanhada por grandes nomes, como César Camargo Mariano e Walter Wanderley. “Lembro de uma música que marcou a carreira da Mari no tempo da bossa nova”, diz Alaíde Costa no livro, citando Céu de Azul Contente, de Walter Santos e Tereza Souza. “O que eu lembro da boemia”, diz Maricenne, “é que a Praça Roosevelt, em São Paulo, era um centro musical palpitante. Na Baiuca cantavam Dick Farney, Johnny Alf e Claudete Soares. Minha praia era um pouco mais abaixo, no Hotel Cambridge, no comecinho da Avenida Nove de Julho. Havia também o bar do luxuoso Hotel Comodoro, então o melhor de São Paulo, na Avenida Duque de Caxias. Nessas verdadeiras trincheiras da bossa, cantavam ainda Marisa Gata Mansa, Alaíde Costa, Djalma Dias e muitos outros craques. Jair Rodrigues corria entre as boates para dar canja ou cantar uma música no show de um amigo. Foi acolhido pela boate Stardust, onde deu os primeiros passos para uma carreira bem-sucedida.”.
Ouça no link abaixo a música Marcha Para Um Dia de Sol, de Chico Buarque de Holanda, interpretada por Maricenne Costa.
Maricenne seguiu por novos caminhos, e foi parar nos palcos. Estudou teatro e conviveu com nomes como Sebastião Milaré, Myriam Muniz, Ricardo Blat e Marcos Caruso. “O teatro realmente quebrou a minha carreira de cantora e dividiu meu coração, porque eu queria voltar a cantar na noite, em shows, e ao mesmo tempo suspirava pelos palcos”, lembra a cantora. E voltou à música, lançando discos marcantes, como Correntes Alternadas (1992), produzido por Paulo Barnabé, que juntava o punk Inocentes e o rap do Moleque de Rua à ousadia de Tom Zé e Ritchie, e o CD Como Tem Passado!! (1999), sucesso de crítica e público, em que Maricenne faz um apanhado dos primeiros ritmos brasileiros gravados (lundu, maxixe, samba e outros). Em 2005, lançou o CD Movimento Circular, com produção de Tuco Marcondes e Fernando Nunes (da banda de Zeca Baleiro), com músicas inéditas de Fernanda Porto, Moisés Santana e Johnny Alf, e mais tarde o CD Bossa.SP (2009), que reuniu compositores de São Paulo, trazendo convidados de diferentes gerações, como Alaíde Costa e Eduardo Gudin.
“Muitas pessoas entrevistadas, artistas e colegas, enfatizaram que Maricenne sempre foi uma artista com personalidade no cantar, muito solidária com as pessoas, e também uma descobridora de talentos”, lembra Elisabeth. Além disso, diz, é inegável que seu trabalho preserva preciosas raridades do acervo da MPB.
Maricenne Costa – A Cantora de Voz Colorida, de Elisabeth Sene Costa e Laïs Vitale de Castro, Editora Álbum de Família, 260 páginas, R$ 40,00 (edição em preto e branco) e R$ 60,00 (edição colorida). Contato com Elisabeth Sene Costa: [email protected].
Fonte: Jornal da USP