LONDRES, REINO UNIDO (FOLHAPRESS) – Por 70 anos e 214 dias, os britânicos despertaram, trabalharam, festejaram e descansaram sob a presença discreta, porém constante, de Elizabeth 2ª. Para muitos, ela personificou o senso de continuidade num mundo em plena mudança, como definiu o arcebispo de Canterbury e chefe da Igreja Anglicana, Justin Welby. Sua maior contribuição para a instituição da monarquia, porém, foi, mais do que a estabilidade, certa capacidade de mudança.
É essa faceta, que transformou o caráter da instituição, talvez o principal desafio para a missão de continuidade a que se atribuiu o agora rei Charles 3º, proclamado neste sábado (10).
Quando a rainha subiu ao trono, em 1952, os britânicos ainda enfrentavam as privações da Segunda Guerra Mundial. Carne e alimentos básicos como açúcar e enlatados eram racionados. O NHS, sistema de saúde público que hoje orgulha os britânicos, dava os primeiros passos após sua fundação, em 1948. Mais de 70 territórios ultramarinos ainda faziam parte do império britânico –que já estava em pleno processo de dissolução.
De lá para cá, o Reino Unido transformou-se radicalmente. Potência menos global, mas ainda a sexta economia do mundo, virou uma sociedade multicultural, multiétnica e com multiplicidade de credos. Nesse contexto, como descreveu o jornal The Guardian, Elizabeth 2ª soube “se adaptar, cautelosa e pragmaticamente, para mudar”.
“O segredo da continuidade da monarquia é que ela representa estabilidade, continuidade e tradição, mas também a nação para si mesma”, diz à Folha Robert Hazell, professor de governo e Constituição na University College London (UCL). “Por isso, ela tem que se manter atualizada.” O analista chama a atenção para as mudanças no próprio falar da rainha, cujo sotaque foi perdendo um pouco de pompa à medida que a sociedade evoluía.
No contexto de desmembramento do império, Elizabeth 2ª fez da aparente manutenção da boa relação com ex-colônias uma prioridade do reinado –em que pese uma série de traumas que permaneceram aqui e ali. A rainha era entusiasta da Commonwealth, comunidade de 56 países, a maioria ex-colônias britânicas, e teve entre seus eventos históricos uma ida à Irlanda, em 2011.
Na ocasião, a primeira viagem de um soberano britânico ao país em cem anos, Elizabeth 2ª visitou marcos importantes para o nacionalismo irlandês e homenageou os mortos na guerra de independência. Ao mesmo tempo, ela seguiu à risca a lição de que monarcas bem-sucedidos, ao menos na Europa ocidental, devem permanecer estritamente neutros em questões políticas, limitando seu papel a opinar e advertir.
Internamente, contudo, os escândalos que cercaram a realeza britânica desde o fim dos anos 1980 reforçaram os críticos do sistema. O fundo do poço veio em 1992, ano em que três casamentos reais, incluindo o de Charles e Diana, implodiram aos olhos da opinião pública, afundados em mentiras e infidelidades. Ao usar o termo “annus horribilis” em sua mensagem de Natal, Elizabeth buscou demonstrar que compreendera os riscos que falhas de reputação representavam para a instituição que chefiava.
“O principal risco para a monarquia hoje não é o republicanismo, mas as pressões de expectativas conflitantes sobre o que é exigido das famílias reais, amplificadas pela intrusão da mídia e pela associação entre realeza e celebridades”, diz Hazell.
“Em uma época em que a personalidade e o comportamento mais do que nunca estão sob escrutínio, a inadequação das pessoas pode facilmente trazer descrédito à monarquia.”
Isso explica a direção da mudança adotada pela instituição para transformar sua imagem: forçar a mudança de “monarquia” para “família real”; diferentes gerações da realeza que apelavam a diferentes setores da sociedade.
Segundo Hazell, levar o simbolismo da família para a vida nacional é uma das maiores vantagens da monarquia sobre as repúblicas. Nestas últimas, a família dos mandatários raramente tem poder aglutinador, enquanto a Casa de Windsor elevou, por exemplo, o papel simbólico de cerimônias familiares, como casamentos –em 2011, estima-se que 2 bilhões de pessoas tenham assistido à união entre o príncipe William, agora primeiro na linha sucessória, e Kate Middleton.
Elizabeth 2ª também surfou essa onda pop. Em 2012, contracenou com Daniel Craig em uma paródia de 007 na abertura dos Jogos Olímpicos, que terminava com uma dublê pulando de paraquedas sobre o estádio. Em maio último, se sentou à mesa e batucou numa xícara com o urso Paddington em outro esquete para o Jubileu de Platina.
Tessa Clarke, jornalista e autora de um livro sobre a família real e a invasão de privacidade, diz à Folha que a rainha conseguiu manobrar para unificar a sociedade britânica “em todos os matizes da opinião cultural, tradicional, moderna e política”. Uma pesquisa do instituto de opinião YouGov na época do Jubileu mostrou que 81% dos britânicos tinham uma boa impressão da soberana; mesmo entre os mais jovens (18 a 24 anos), a aprovação chegava a 60%.
Agora cabe ao rei Charles 3º encabeçar a monarquia britânica. Segundo o YouGov, em maio sua popularidade era de apenas 54% –e 35% não tinham boa impressão do então futuro monarca.
Clarke afirma que Charles passa a impressão de ser um integrante privilegiado e “bastante antiquado da aristocracia”, em contraste com as famílias reais europeias que viajam de bicicleta. “Relatos de que seu mordomo coloca a pasta na sua escova de dentes não caem bem nos tempos atuais”, diz.
Sua reputação também ficou manchada por escândalos recentes, como a revelação de doações de Arábia Saudita e Qatar a organizações que ele fundou –Charles diz que ele não sabia do dinheiro no primeiro caso e que a operação foi legal no segundo. Curiosamente, as pautas pelas quais o agora rei ficou conhecido por encampar, como a proteção do meio ambiente e uma monarquia mais enxuta e menos dependente do dinheiro público, são populares.
Charles 3º inicia seu reinado em um país que pede mudanças profundas, muitas vezes em conflito direto com a monarquia que ele representa. Movimentos como o Black Lives Matter e ataques contra estátuas de personalidades ligadas ao comércio de escravos demandam a revisão do passado colonialista britânico e questionam o papel da aristocracia. Não está claro, ainda, de que forma se daria a adaptação a esses novos tempos.
Outro fator que corroeu a monarquia foi a decisão do príncipe Harry e de sua esposa, Meghan Markle, de abandonar as funções da monarquia e se mudarem para os EUA em meio a acusações de racismo dentro do Palácio.
Passado o luto por Elizabeth, essas tensões podem voltar à superfície e reacender a chama de antimonarquistas, acredita Clarke. Em editorial, o Guardian realçou que a monarquia, “construída sobre um sistema de privilégio hereditário, é um anacronismo na era moderna” e que uma “reflexão polêmica sobre o lugar contínuo da monarquia […] virá, e deverá vir, em breve”.
Em suas primeiras declarações no trono, Charles 3º fez acenos a alguns dos desafios que seu reinado enfrentará. Indicou entender que suas “novas responsabilidades” como monarca requerem estrita imparcialidade em certos temas. No primeiro pronunciamento, elogiou o papel do filho William e de sua esposa, Kate, na tarefa de “inspirar e liderar o debate nacional” e até ofereceu um ramo de oliveira a Harry e Meghan, citando, ainda que de forma menos solene, seu amor pelo casal “enquanto eles continuam construindo suas vidas” do outro lado do Atlântico.
É cedo para avaliar se isso será suficiente para neutralizar as antipatias à monarquia e o impulso republicano. “[A monarquia] é uma instituição popular neste momento, mas todos estamos curiosos para ver se isso mudará agora que Charles virou monarca”, disse o britânico Peter Harris, que leciona relações internacionais na Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos.
“Meu palpite é de que era fácil tratar a rainha Elizabeth 2ª com deferência. Ela era como a avó da nação, enquanto Charles –e William depois dele– serão como pais. As pessoas se rebelam contra o pai, mas não contra a avó.” Especialmente se ela pula de paraquedas.
Fonte: Notícias ao Minuto