Adriano Machado

Damares Alves arma uma farsa no púlpito de uma igreja em Goiânia

Brasil

Estrela do ultraconservadorismo, Damares Alves é um retrato irretocável da subserviência de extremistas a Jair Bolsonaro. Com o presidente posicionado como ídolo em um pedestal, a senadora eleita pelo DF destila desinformação e faz declarações envolvendo crianças indefesas — um jogo sujo feito em nome da moral e da religião, mas que choca a Nação por sua brutalidade.

Balizada pela fidelidade ao bolsonarismo, a pastora demonstrou no sábado, 8, o quão baixo está disposta a descer em defesa da candidatura do capitão. Do alto do púlpito de uma igreja evangélica em Goiânia, Damares blasfemou dizendo que Bolsonaro enfrenta uma “guerra espiritual” pelo Brasil e, sem provas, detalhou, diante de dezenas de famílias, e até da primeira-dama Michelle, casos de abuso sexual de crianças supostamente identificados à época em que comandava o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Em uma ação orquestrada, o senador Flávio Bolsonaro, que coordena a campanha do pai ao Palácio do Planalto, rapidamente compartilhou o vídeo com os relatos insidiosos feitos pela ex-ministra e, de forma irresponsável, aproveitou a deixa para vincular o partido de Lula aos casos de pedofilia elencados pela aliada: “Ainda há resquícios do PT pelo Brasil”.

As falas de Damares tratam de episódios atordoantes, sobre os quais, segundo ela própria, Bolsonaro teria ciência. Se verdadeiras as denúncias, o material que as embasa já deveria estar nas mãos de órgãos de investigação, como a Polícia e o Ministério Público, e até mesmo das Comissões de Direitos Humanos da Câmara e do Senado. Mais do que isso, membros do governo, sem tergiversar, precisariam ter anunciado, há meses, programas emergenciais de assistência às crianças encontradas nas condições calamitosas narradas pela ex-ministra e de busca por outras vítimas.

Não há indícios, no entanto, de que qualquer medida foi adotada, o que obriga Damares a explicar se ela e o presidente cometeram prevaricação diante de graves casos de pedofilia ou se ela mergulhou no lamaceiro das fake news e mentiu para tentar mudar os rumos da corrida pelo Planalto, praticando ilícito eleitoral.

Informações preliminares mostram que a segunda opção é a mais plausível e indicam que Damares valeu-se de um assunto dramático para manipular fiéis e conduzir a política para mais perto do abismo. Na igreja, a ex-ministra alegou saber de crianças de três a quatro anos da Ilha do Marajó, no Pará, que são traficadas para o exterior e submetidas a mutilações corporais e a regimes alimentares que facilitam abusos sexuais.

“Os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral. Essa nação que a gente ainda tem irmãos. Nós descobrimos que essas crianças, elas comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”, disse, ao microfone. Apesar da sordidez dos supostos casos, a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Pará já revelaram não terem recebido de Damares quaisquer denúncias. As instituições, aliás, pediram provas “a fim de que os relatos sejam investigados e todas as providências cabíveis possam ser adotadas”. Indagaram ainda quais providências foram adotadas desde então.

Depois da repercussão, o Ministério dos Direitos Humanos, comandado por Cristiane Britto, correligionária e aliada de Damares, expediu uma nota em que atesta que as declarações foram embasadas por “numerosos inquéritos instaurados que dão conta de uma série de fatos gravíssimos praticados contra crianças e adolescentes”. O posicionamento foi vago. A pasta não explicou onde tramitam as investigações, por que MP e Polícia não foram notificados e nem se, de fato, guarda vídeos de pelo menos parte dos episódios, como alega a senadora eleita. O texto mais parece uma defesa de Damares do que uma manifestação de um órgão federal comprometido com o combate ao abuso infantil.

Enquanto o ministério trabalha nas explicações, internautas notaram que a história contada por Damares guarda grandes semelhanças com textos que circulam em fóruns da dark web como peças de ficção desde pelo menos 2010. Particularidades da narração são comparáveis, por exemplo, a um conto apócrifo, intitulado “Lolita Slave Toys”, em que, de forma doentia, o autor afirma sequestrar crianças, arrancar seus dentes e implantar uma camada de silicone nos maxilares para evitar mordidas.

Cinco dias depois e diante da ameaça de ser processada por prevaricação, ela mesma confessou não ter provas do que disse e que ouviu nas ruas os casos relatados de criancinhas abusadas sexualmente, o que só aumentou os seus devaneios. A mentira tem pernas curtas. O MPF diz que nenhuma denúncia sobre tráfico de crianças no Marajó foi feita por Damares.

Irresponsabilidade

O presidente da Comissão dos Direitos Humanos do Senado, Humberto Costa, assegurou que o colegiado não recebeu ofícios do ministério sobre os episódios estarrecedores. “Isso, por ora, parece uma lenda, uma fake news das mais grosseiras. Utilizar algo assim em um culto religioso é algo de uma irresponsabilidade gigantesca”, declarou. No meio jurídico, o grupo Prerrogativas, ligado a Lula, pediu que o Supremo Tribunal Federal ordene a investigação sobre os relatos.

“Damares tem instrumentalizado a fé e a religião de milhares de brasileiros, mas desta vez passou de todos os limites e expôs crianças a um constrangimento absurdo e asqueroso. Propagando mentiras, criou pânico em todos que a escutaram. Merece, pois, responder por seus atos”, diz Marco Aurélio Carvalho.

A irresponsabilidade sem precedentes de Damares provocou um levante popular. Quinhentas mil pessoas apoiaram um abaixo-assinado que defende a cassação da senadora eleita. O documento, criado por Maria Christina Mendes Caldeira, ex-mulher de Valdemar Costa Neto, foi compartilhado por dezenas de famosos como Patrícia Pillar, Marcelo Tas e Xuxa Meneghel. Em sua página no Instagram, a apresentadora de TV pede que a ex-ministra seja investigada. Seja qual for o desfecho da história, Damares cometeu um crime e deve ser punida.

Profanação da fé

Não há maior sinal de desrespeito à fé cristã do que a exploração eleitoral da religião para a construção de um projeto de poder. Ao transformarem templos em palanques, sobretudo em datas especiais de devoção, políticos demonstram colocar as ambições pessoais acima da deferência aos momentos sagrados para a Igreja Católica. É o que fez Jair Bolsonaro. Em uma semana, o presidente estampou, duas vezes, menosprezo pelo catolicismo ao provocar constrangimentos no Círio de Nazaré e nas festividades de Nossa Senhora Aparecida.

Embora se declare católico, Jair Bolsonaro já foi batizado nas águas do Rio Jordão pelo pastor Everaldo. O presidente, aliás, transita bem no meio evangélico — ostenta, segundo pesquisas, mais de 60% das intenções de votos deste segmento. Entre os adeptos do catolicismo, porém, fica atrás de Lula. De olho nesse cenário o capitão reformulou a estratégia no 2º turno e focou a agenda em templos religiosos. O tiro saiu pela culatra.

Durante a passagem dele por Aparecida, na quarta-feira, 12, o Santuário transformou-se em palco para tumultos provocados por bolsonaristas. O arcebispo dom Orlando Brandes, que pregava dentro do Santuário, enfrentou vaias externas ao declarar que o Brasil precisa “vencer muitos dragões”, como o do ódio, da mentira e da fome. O padre Eduardo Ribeiro chegou a pedir que Bolsonaro e sua comitiva fizessem silêncio no interior da Basílica. Alguns dos fiéis bolsonaristas entoaram o grito de “mito” na chegada do presidente ao templo. Do lado de fora, um jovem de camiseta vermelha virou alvo de uma multidão vestida de verde e amarelo, que bradava: “Lula, ladrão, seu lugar é na prisão” e “a nossa bandeira jamais será vermelha”. A camiseta, porém, tinha inscrição da Nike e não do PT. Jornalistas, inclusive os da TV Aparecida, emissora da Igreja Católica, foram hostilizados e ameaçados.

O desrespeito ganhou ainda mais magnitude porque, na véspera, sem citar nomes, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil havia feito um apelo pela interrupção da exploração da fé. “A manipulação religiosa sempre desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados”, pontuou. Antes disso, Bolsonaro já havia nutrido mal-estar ao participar do Círio de Nazaré. Na ocasião, a Arquidiocese de Belém explicou não tê-lo convidado e frisou que não permitiria “qualquer utilização de caráter político ou partidário das atividades do Círio”.

O uso político da fé virou um prato cheio para o PT, pois avalia que Lula acertou ao evitar eventos religiosos e pretende viralizar os vídeos de Aparecida para evitar a ascendência de Bolsonaro sobre católicos. O ex-presidente, aliás, aproveitou a deixa para dizer que o capitão “usa o nome de Deus em vão” e tenta “tirar proveito da religião”. Geraldo Alckmin acrescentou estar “perplexo” com as hostilidades e pediu “respeito” aos fiéis. Apesar das críticas, Lula exibiu uma imagem de Nossa Senhora durante agenda no Complexo do Alemão, no Rio, e seu programa eleitoral mostrou imagens da Basílica enquanto a locutora celebrava o dia da “padroeira”. No Brasil, a instrumentalização da fé não tem partido.

Fonte: Isto é