Em 1972, sociólogo e professor da USP mostrava como capitalismo brasileiro se fez a partir da desigualdade. Tema será debatido na USP nos dias 26 e 27
por Luiz Prado – Domingo, 23 de outubro de 2022
Arte: Guilherme Castro
Faça um exercício de imaginação. Reflita sobre o capitalismo brasileiro – para ajudar, olhe as páginas econômicas dos jornais e websites, ouça analistas em algum podcast ou simplesmente caminhe pelas ruas da cidade. Depois disso, o desafio mental: se o capitalismo brasileiro pudesse ser representado por algum animal, qual seria?
Para o sociólogo Francisco de Oliveira (1933-2019) – Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP -, a resposta, inspirada em Charles Darwin, é simultaneamente cômica e absurda: um ornitorrinco. Mamífero que bota ovos, possui um bico parecido ao do pato, dá leite mas não conta com mamas, tem algumas características reptilianas e vive em lagos e rios da Austrália e Tasmânia. Uma criatura estranha, reunindo atributos diversos e dispersos que ora são excessivos, ora imperfeitos e destoam de uma bela e harmônica evolução das espécies.
Pois é assim que o Brasil aparece para Oliveira. Um país altamente urbanizado, com pouca força de trabalho e população no campo e um agronegócio forte. Ao mesmo tempo, um setor industrial oriundo da segunda revolução industrial que avança gaguejando para a terceira, a revolução molecular-digital. Com uma estrutura de serviços extremamente diversificada de um lado, voltada para as classes altas, e, simultaneamente, um primitivismo avassalador quando se pensa no consumo dos estratos pobres. Um sistema financeiro atrofiado, mas que leva uma parte considerável do PIB. E uma população economicamente ativa declinante nos setores rurais e industriais mas com números explosivos no setor de serviços.
Essas ideias do sociólogo e professor da USP serão debatidas nos dias 26 e 27 de outubro, durante o evento on-line A Fortuna Crítica de Chico de Oliveira: 50 Anos de Crítica à Razão Dualista. No evento, professores de diferentes universidades vão abordar a mais famosa obra de Oliveira.
Lançada como ensaio em 1972, durante o máximo vapor da máquina da ditadura militar sob a presidência Médici, a Crítica à Razão Dualista representou uma renovação nos estudos sobre a economia brasileira, oferecendo uma nova visão para o binômio atraso e modernização. O livro foi relançado em 2003, acompanhado de um breve ensaio, O Ornitorrinco.
Fruto da vivência de Oliveira no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o texto de 1972 contrariava as teses que procuravam explicar o subdesenvolvimento como consequência de uma dicotomia entre o arcaísmo do País e as tentativas de modernização. A nova abordagem defendia que o atraso era exatamente parte do processo de modernização brasileira, estruturada na superexploração dos trabalhadores e na concentração de renda.
“Francisco de Oliveira mostrou como era falaciosa a interpretação dualista a respeito do País, já que o Brasil moderno não se opõe, mas se alimenta do Brasil arcaico”, explica o professor Bernardo Ricupero, do Departamento de Ciência Política da FFLCH. “Mais especificamente, a indústria de São Paulo podia manter os salários de seus operários baixos por conta dos migrantes nordestinos que não paravam de se dirigir ao centro urbano e funcionavam como um verdadeiro exército industrial de reserva, além de os preços dos alimentos não serem tão altos devido à agricultura tradicional.”
Para Ricupero, Oliveira assinalou de maneira original a existência no Brasil do que chama “acumulação primitiva estrutural”, representando a gênese de nosso capitalismo, em vez da acumulação primitiva descrita por Marx em O Capital.
A mesma interpretação é partilhada por Camila Góes, pós-doutoranda em Ciência Política na FFLCH. “Vários autores entendiam o golpe de 1964 a partir da oposição entre um setor moderno e um setor atrasado, como se ele tivesse sido dado como um compromisso com um setor atrasado”, conta Camila. “Oliveira demonstra que, no processo real do capitalismo brasileiro, o setor moderno crescia e se alimentava do atrasado. Um tipo de modernização que sempre repunha o atraso e reafirmava a exclusão.”
A tese teve repercussão entre a intelectualidade, pautando agendas na ciência política, economia, sociologia e filosofia. Oliveira polemizava com as posições que viam o golpe militar como uma revolução burguesa. Defendia, ao contrário, que se tratava de uma contrarrevolução social, o progresso das contradições nacionais.
Para Camila, O Ornitorrinco completa, 30 anos depois da Crítica à Razão Dualista, o diagnóstico de época realizado por Oliveira sobre a situação brasileira. “A alteração mais importante entre os textos é que, na Crítica, havia a expectativa de uma via para a superação daqueles problemas”, comenta a pesquisadora. “Em O Ornitorrinco, Oliveira não vai negar seu diagnóstico, mas vai tratar das razões da derrota daquelas possibilidades de transformação.”
O que Oliveira constatava, em 2003, é que o subdesenvolvimento havia sido superado – em muitos aspectos o Brasil se equiparava às nações desenvolvidas –, mas, por outro lado, as imensas desigualdades sociais continuavam vigorando. “Estávamos em uma sociedade que funcionava muito bem do ponto de vista da acumulação capitalista, mas também em uma das sociedades mais desiguais do mundo”, aponta Camila.
E, em 2022, o que os dois textos ainda podem nos dizer? Segundo a pesquisadora, Oliveira não previu a ascensão da extrema direita, com sua capacidade de mobilizar eleitoralmente setores importantes da sociedade. Essa novidade impõe um desafio semelhante ao enfrentado pela Crítica, de criar novas categorias de análise. “Estamos em um ornitorrinco 2.0 e a realidade se tornou ainda mais bizarra”, diz Camila.
Além disso, os novos tempos não trouxeram a superação das antigas interpretações combatidas pelo texto de 1972, de acordo com Ricupero. “Hoje, 50 anos depois, ainda há muitos que pensam em termos da oposição entre ‘Brasil moderno’ e ‘Brasil arcaico’, como ficou claro, por exemplo, pela maneira como foram entendidos os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais, neste ano”, afirma o professor.
Recuperando a fortuna crítica
A metáfora do Ornitorrinco, a relação entre modernidade e arcaísmo e outras contribuições do sociólogo e professor da USP Chico de Oliveira, que morreu em 2019, serão revisitadas nos dias 26 e 27 de outubro no evento A Fortuna Crítica de Chico de Oliveira: 50 Anos de Crítica à Razão Dualista. Em formato on-line, com mesas às 18 horas, a iniciativa é uma parceria do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP com o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) e a Boitempo Editorial. A organização é de Camila Góes, que fará a abertura das atividades, e de Ronaldo Tadeu de Souza, ambos pós-doutorandos em Ciência Política da FFLCH.
No dia 26, Bernardo Ricupero será o mediador de uma mesa que contará com a participação de André Singer, professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH, Ermínia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, e Wolfgang Leo Maar, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
Já no dia 27, Ronaldo de Souza fará a mediação do debate entre o professor Ruy Braga, do Departamento de Sociologia da FFLCH, a professora Joana Barros, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e a professora Sara Freitas, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
“O intuito do evento é retomar o desafio colocado para Oliveira e sua geração a partir do golpe de 1964, que desestabilizou as teorias”, comenta Camila Góes. “O momento que vivemos, se pensarmos o Brasil desde 2016, oferece um desafio análogo e queremos retomar essa fortuna crítica, que pautou uma agenda enorme.”
O evento on-line A Fortuna Crítica de Chico de Oliveira: 50 Anos de Crítica à Razão Dualista acontece nos dias 26 e 27 de outubro, a partir das 18 horas. A participação é gratuita e a transmissão acontecerá neste link: https://www.youtube.com/watch?v=OnSw4pdRthQ
Fonte: Jornal USP