O futebol, o esporte mais popular do planeta, nasceu basicamente em um pub na Inglaterra em 1863, quando alguns indivíduos decidiram estabelecer regras para um jogo que já era praticado regularmente naquele país, com a ideia de diferenciá-lo de outra modalidade muito popular por lá: o rúgbi.
Domingo, 11 de dezembro de 2022
A verdade é que em, menos de quatro décadas, o futebol já marcava presença em vários países do mundo.
E essa propagação tinha entre seus motivos o fato de esse esporte ter nascido na potência mais poderosa do planeta à época: o Reino Unido, que controlava grandes territórios ao redor do mundo.
No entanto, o futebol não é atualmente o esporte mais praticado ou acompanhado em muitos dos territórios que pertenceram ao poderoso Império Britânico.
Em Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, por exemplo, o rúgbi é muito mais popular do que o futebol, enquanto na Índia e no Paquistão o críquete é quase uma religião.
“O que aconteceu com a Austrália ou a Índia é que, quando os britânicos chegaram, o esporte nacional na Inglaterra era o críquete, e não o futebol. E o rúgbi era o esporte favorito dos aristocratas enviados para governar esses lugares”, explica a historiadora esportiva Jean Williams.
Williams esclarece que o futebol era um esporte para a classe média e trabalhadora no Reino Unido daquela época.
“A popularização do futebol no mundo se deu por dois motivos: um, pela proliferação das ferrovias construídas por engenheiros ingleses e, dois, pelo intercâmbio acadêmico que acontecia com pessoas de outros países, principalmente da América Latina e da Ásia” , aponta Williams.
Críquete e rúgbi: os esportes do império
O críquete é um esporte de bola e tacos (como o beisebol, mas com diferenças substanciais no modo e na estratégia) jogado em um campo oval onde o objetivo principal é marcar corridas (pontos).
A modalidade, que tem suas raízes na Idade Média, tornou-se o esporte nacional da Inglaterra a partir do século 18 e, claro, durante o apogeu do Império Britânico.
Soma-se a isso a popularidade de outra modalidade: o rúgbi, considerado por décadas como “um esporte de feras jogado por cavalheiros”.
“Esses esportes estavam concentrados nas classes altas e nos líderes da época. O que eles fizeram foi introduzi-los quase oficialmente em territórios como Austrália, Índia ou África do Sul”, diz Williams.
Embora o críquete já tivesse sido trazido para a Índia pelos mercadores britânicos no século 17, foi com a conquista desses territórios em meados do século 19 que finalmente deu ao esporte o reconhecimento que ele mantém até hoje por lá.
Algo semelhante aconteceu com o rúgbi, que também começou a se popularizar em meados do século 19, principalmente na Oceania e na África do Sul.
“O esporte no Império Britânico serviu como uma força unificadora, muitas vezes imbuída de retórica nacionalista, e serviu para representações focadas no clima de luta social e política”, observa o historiador Patrick Hutchinson no ensaio Sports and British Colonialism (“Esportes e Colonialismo Britânico”, em tradução livre).
Essa influência tornou a Índia e o Paquistão — e também a Austrália — atuais potências do críquete.
No rúgbi, as únicas equipes masculinas que foram coroadas campeãs mundiais além da Inglaterra foram Nova Zelândia, África do Sul e Austrália, todas ex-colônias britânicas.
Na verdade, o esporte mais popular na Austrália é o futebol australiano, que é uma combinação de críquete, rúgbi e futebol, muito semelhante à versão inicial do rúgbi inglês.
Além disso, o futebol tinha duas características que o distanciavam daqueles territórios colonizados: ele foi codificado tardiamente (em 1863) e tinha raízes na classe média e trabalhadora britânica.
“Na época em que o futebol se tornou o esporte mais popular no Reino Unido, o críquete e o rúgbi já haviam se estabelecido nas colônias e ainda eram os esportes favoritos das classes altas e da aristocracia”, explica Williams.
No entanto, isso não significa que o futebol não tenha sido usado pelas autoridades imperiais como uma “força unificadora”, especialmente nas colônias britânicas da África.
“Em Zanzibar, no Egito e em outros lugares, as ligas foram criadas com o objetivo de exercer uma forma de controle por meio do esporte. O futebol era usado para isso”, diz Hutchison.
Mas o esporte também tinha outras formas de se expandir.
Muito além das ferrovias
No início do século 20, a principal potência mundial ainda era o Império Britânico, com territórios que se estendiam por África, Ásia e Caribe.
Na Europa, o esporte se popularizou graças à presença de expatriados que viajaram para diversos países como Alemanha, França, Itália e Espanha.
Porém, em outras latitudes, uma das principais formas de influência foi a construção de ferrovias, uma invenção britânica.
“Muitos acham que foram os ferroviários que levaram o futebol pelo mundo. Mas, na verdade, foram os engenheiros, já que o futebol era o esporte da classe média na Inglaterra”, diz o acadêmico.
Segundo Williams, esses profissionais foram influentes o suficiente não apenas para praticar o esporte, mas para instruí-lo e implementá-lo de forma organizada nesses países, como os aristocratas haviam feito por meio das faculdades nas colônias com o críquete e o rúgbi.
No início do século 20, especialmente no Brasil, na Argentina e no Uruguai, começaram a ser criados os primeiros clubes, muitos deles com nomes em inglês que ainda se mantêm: River Plate ou Boca Juniors (Argentina); Club Nacional de Football (Uruguai) e Fluminense Football Club (Brasil), por exemplo.
“O que aconteceu com o futebol é que ele não foi dividido em classes: ele popularizou-se em todos os níveis [na América Latina]”, esclarece Williams.
Mas a especialista destaca que as ferrovias não foram o único meio de difusão do futebol pelo mundo: estudantes e visitantes do Reino Unido foram um meio de propagação extensivo do esporte.
“Muitos dos que partiram da América Latina ou da Ásia para estudar em uma das universidades inglesas viram esse esporte tão popular e quiseram levá-lo de volta para seus países de origem”, diz Williams.
Os exemplos não faltam: o Deportivo Cali, um dos mais tradicionais clubes colombianos, foi fundado pelos irmãos Nazario, Juan Pablo e Fidel Lalinde Caldas, que viajaram para o Reino Unido no início do século 20 e passaram cerca de cinco anos por lá.
O próprio Charles Miller, considerado o responsável por trazer o futebol para o Brasil no final do século 19 após estudar na Inglaterra, era filho de um engenheiro escocês que trabalhava em ferrovias no Estado de São Paulo.
“O futebol, por ter nascido na Inglaterra, tornou-se algo aspiracional para pessoas que viviam fora do Império Britânico e assim muitos clubes de futebol foram fundados por pessoas que viajaram para o Reino Unido”, diz.
Mas houve territórios que tiveram influência britânica, como os Estados Unidos ou o Canadá, onde o futebol também não conseguiu criar raízes.
“O futebol tentou entrar na cultura americana várias vezes, mas as regras e a contagem de gols não ajudam a modalidade a ficar mais popular”, avalia James Brown, da Associação de Historiadores de Futebol dos Estados Unidos.
Para Brown, os americanos gostam de esportes de contato e com placares dinâmicos, onde podem ser alcançadas pontuações mais elevadas.
“Mas a verdade é que até os 16 anos de idade, o futebol é o esporte mais praticado pelos jovens americanos. Por isso, há um futuro para a modalidade no país.”
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63851563
Fonte: BBC Brasil