Por Roberta Angheleanu
Josh Firth tinha nove anos de idade e estava no carro com seus pais, quando percebeu algo estranho acontecendo com os prédios ao seu redor. Eles pareciam estar ficando maiores.
Quando ele contou à sua mãe, Sonja, ela ficou surpresa. Para ela, os prédios estavam como sempre foram.
“Conforme o carro se movia, [na visão dele] os prédios dos dois lados começaram a crescer de repente e pareciam estar se aproximando dele”, ela conta.
E não foi a única vez. Em outro dia, depois de voltar da escola, Josh – que é de Canberra, na Austrália – contou à sua mãe que “os rostos dos professores ficaram maiores, desproporcionais ao corpo, e as paredes da sala de aula se alongaram e se afastaram dele”.
Josh afirma que, certa vez, quando jogava xadrez na escola, ele observou “seus dedos ficando maiores e mais largos, até o ponto em que ele não conseguia mais segurar as peças de xadrez”.
Esses episódios estranhos eram mais assustadores à noite, quando “os cantos do seu quarto mudavam, as paredes se deformavam e se fechavam em direção a ele”, gerando uma sensação de terror noturno, segundo Sonja.
Ela conta que, às vezes, seu filho dizia que sua voz parecia diferente. Ele sentia que sua fala ficava “mais grave e lenta”.
Levou cerca de dois anos para que a família descobrisse o que estava acontecendo. Josh sofre de um distúrbio raro, conhecido como síndrome de Alice no País das Maravilhas, também conhecida como síndrome de Todd.
A síndrome afeta a forma como as pessoas percebem o mundo à sua volta e pode distorcer a sua experiência dentro do próprio corpo e o espaço que ele ocupa. Ela pode incluir distorções da visão e do tempo.
Imagine passar a vida observando os rostos das pessoas se transformando em dragões. Este sintoma é apenas um dos 40 tipos de distorções visuais características da síndrome.
Alguns pacientes descrevem ver diferentes partes do corpo sendo acrescentadas às pessoas à sua frente, como um braço mais curto fixado ao rosto da pessoa sentada à frente deles. Outros sintomas incluem ver pessoas ou objetos se movendo em câmera lenta ou de forma rápida e não natural, ou ainda imóveis.
A audição também pode ser prejudicada. As pessoas que sofrem da síndrome podem ouvir entes queridos falando lenta ou rapidamente, de forma estranha ou não natural.
E eles relatam ver objetos ou suas próprias partes do corpo encolhendo ou aumentando de tamanho, bem diante dos seus olhos. A sensação é que elas mesmas estão mudando de tamanho, que foi a experiência vivida por Josh.
Este último sintoma deu o nome ao distúrbio. Alice, a personagem do escritor Lewis Carroll, encolheu depois de beber uma poção e cresceu depois de comer bolo.
Carroll pode ter sido inspirado por suas próprias distorções de percepção, talvez causadas por enxaquecas com aura, que são distúrbios visuais temporários que ocorrem com frequência em pessoas que sofrem de enxaqueca.
Outros estudiosos especularam que o escritor pode ter sofrido da síndrome de Alice no País das Maravilhas, causada por epilepsia, abuso de substâncias ou até por uma infecção.
As causas ainda são um mistério
Mesmo depois de ser formalmente descrita pelos médicos como uma síndrome específica em 1955 e ter alguns dos seus sintomas registrados até mesmo anteriormente, as causas exatas da síndrome permanecem obscuras até hoje. É um mistério que deixaria a própria Alice cada vez mais curiosa.
Os pesquisadores seguem tentando desvendar essa estranha condição. Eles esperam poder fornecer indicações vitais sobre a forma em que o nosso cérebro interpreta o mundo à nossa volta.
Os sinais dos nossos sentidos reunidos, combinados com as nossas experiências de vida acumuladas, fazem com que cada um de nós perceba o mundo de forma diferente dos demais. Todos nós vivemos na nossa própria e única realidade.
“A percepção não é um processo passivo de meramente ver, ouvir, sentir, provar ou cheirar”, afirma Moheb Costandi, neurocientista e escritor de Londres que discute a síndrome de Alice no País das Maravilhas no seu livro Body Am I (“O corpo sou eu”, em tradução livre).
“Trata-se de um processo ativo”, explica ele. “O cérebro age mediante os estímulos sensoriais que recebe, com base nas nossas experiências e inclinações do passado. A forma como percebemos as coisas influencia como agimos – e a forma como agimos influencia o que percebemos.”
Mas, às vezes, nossa percepção pode ficar desordenada, como ocorre quando as pessoas sofrem alucinações, ilusões ou distorções.
Com a percepção distorcida de nós mesmos e do mundo em que vivemos, corremos o risco de perder nossa sensação de nós mesmos e sofrer despersonalização. Podemos até acabar experimentando o próprio mundo como sendo irreal, em um processo conhecido como desrealização.
No passado, a síndrome de Alice no País das Maravilhas costumava ser considerada uma condição geralmente inofensiva, que não precisa de intervenção médica.
Seus sintomas são encontrados, em algum grau, na população em geral e até 30% dos adolescentes relatam experiências suaves ou transitórias da síndrome. Sabe-se também que certos medicamentos para tosse e substâncias alucinógenas ilícitas ativam essa condição.
Mas, às vezes, as mudanças de percepção do mundo são causadas por alguma razão subjacente. Já se sugeriu uma ampla variedade de causas da síndrome de Alice no País das Maravilhas em adultos e crianças, incluindo derrames, tumores cerebrais, aneurismas, infecções virais, epilepsia, enxaqueca, doenças dos olhos e distúrbios psiquiátricos, como depressão e esquizofrenia.
A síndrome já foi associada a infecções como doença de Lyme, influenza H1N1 e vírus Coxsackie B1. Um estudo chegou a identificá-la como manifestação da doença de Creutzfeldt-Jakob, um distúrbio neurodegenerativo de rápido desenvolvimento e, muitas vezes, fatal.
O professor de psicopatologia clínica Jan Dirk Blom, da Universidade de Leiden, na Holanda, é um dos poucos pesquisadores que se dedicaram ao estudo da síndrome de Alice no País das Maravilhas. Ele enfatiza que os médicos precisam levar a sério os pacientes que descrevem esses sintomas.
Blom afirma que o diagnóstico e o reconhecimento da síndrome progrediram pouco nas últimas décadas. Por isso, muitas vezes, o diagnóstico dos pacientes pode levar anos. “É um verdadeiro desafio”, segundo ele.
Gillian Harris, de Pulborough, no Reino Unido, foi diagnosticada apenas seis anos atrás, com 48 anos de idade, depois de sofrer com a síndrome de Alice no País das Maravilhas desde jovem.
“Quando criança, às vezes, eu me sentia como se as coisas estivessem mais distantes de mim”, ela conta. “E, quando adolescente, também percebia que meus membros estavam enormes e meus braços absolutamente imensos.”
Com cerca de 16 anos, Harris foi diagnosticada com epilepsia e recebeu tratamento para a doença.
Mas as pesquisas já existentes, por menores que sejam, estão começando a fornecer algumas indicações sobre os motivos que fazem com que a síndrome afete alguns pacientes e não outros.
“A genética talvez ajude a criar a suscetibilidade à síndrome de Alice no País das Maravilhas em algumas pessoas, mas ainda é preciso ter confirmação empírica”, segundo Blom.
Nas crianças, a encefalite causada principalmente pelo vírus Epstein-Barr é a causa mais comum da síndrome. Já entre os adultos, ela é mais frequentemente associada a enxaquecas.
Enxaqueca no estômago
Surpreendentemente, as distorções sensoriais da síndrome de Alice no País das Maravilhas podem também ocorrer em pessoas que sofrem de enxaqueca abdominal, uma condição que apresenta os mesmos gatilhos e curas da enxaqueca mais conhecida, acrescidos de dores abdominais lancinantes que vêm em ondas e duram de duas a 72 horas.
As pessoas com enxaqueca abdominal, muitas vezes, têm histórico pessoal ou familiar de dores de cabeça causadas por enxaqueca.
Estudos do cérebro
Exames de imagem do cérebro também vêm oferecendo algumas indicações. Eles sugerem que a síndrome pode ser causada por um distúrbio em uma região do cérebro chamada junção temporoparietal-occipital.
Nela, as informações visuais e espaciais são combinadas com sinais oriundos do tato, da posição do corpo e de dores.
Alterações desse ponto de encontro importante das informações sensoriais, causadas por lesões, danos neurológicos ou inchaços, podem mudar a forma como o cérebro interpreta os sinais recebidos.
Blom afirma que ainda existe muito trabalho a ser feito para entender exatamente o que se passa no cérebro dos pacientes com a síndrome de Alice no País das Maravilhas.
Mas ele acredita que a condição pode fornecer indicações vitais sobre a forma em que o cérebro compila informações sobre o nosso mundo.
“Acho que a síndrome pode nos ensinar como é sofisticado, complexo e equilibrado todo o processo de percepção, ao qual normalmente não damos importância”, afirma Blom.
“Às vezes, a percepção dificilmente é prejudicada quando partes razoavelmente grandes do cérebro são comprometidas ou até inexistentes (como ocorre na prosopometamorfopsia causada por feridas a bala, que tende a desaparecer em semanas)”, prossegue o professor.
“Em outros casos, o mau funcionamento de pequenos conjuntos de células nervosas [na síndrome] pode causar alterações grandes e duradouras da nossa percepção.”
“Esta síndrome nos ensina que toda a rede de percepção (visual) tem partes enormes que podem ser contornadas ou compensadas por outras, enquanto algumas parecem ser absolutamente fundamentais, se quisermos poder perceber adequadamente aspectos muito básicos, como rostos, linhas, cores e movimentos”, explica Blom.
Mas realizar estudos cerebrais para chegar à raiz do que acontece em pacientes com a síndrome de Alice no País das Maravilhas não é fácil.
“Acho que o grande obstáculo é a raridade da síndrome e o fato de que os sintomas são passageiros”, segundo Costandi. “Por isso, é difícil examinar o cérebro do paciente quando ele está experimentando os sintomas.”
Enquanto, em alguns casos, as distorções sensoriais decorrentes da síndrome podem ser suavemente desorientadoras, elas também podem ser apavorantes e até representar risco a outros pacientes.
Como descreve Harris, agora com 54 anos, “quando os sintomas aconteciam muitas vezes, eu não queria ir a uma estação de trem sozinha, se acontecesse na plataforma, ou pegar um ônibus sozinha, se acontecesse; você perde sua independência. Ela afeta tudo”.
As pesquisas indicam que, em sua maioria, os casos da síndrome de Alice no País das Maravilhas costumam se resolver ao longo do tempo. Mas, às vezes, os sintomas podem ser recorrentes, dependendo da causa subjacente.
Gillian Harris toma a dose mais alta de dois medicamentos antiepilépticos. Ela não sofre de convulsões, nem da síndrome, há dois anos. Mas Josh ainda sofre sintomas da “Alice”, como ele chama, mas desenvolveu mecanismos para lidar com ela.
“Olhar pela janela ou ver-se no espelho realmente ajuda”, segundo Sonja.
“Quando tudo está acontecendo, ele olha para as suas características faciais e isso ajuda a reduzir seu episódio de Alice.”
Josh agora carrega com ele um espelho de bolso quando está fora de casa, para o caso de precisar “verificar a realidade”.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1m09g62d2o