Por Rosemberg Cariry
Em cada mesquita, a fé, em cada casa, um lume e, em cada lume, uma voz resgatada dos primórdios do tempo, o som de quando a luz se separou das trevas e no barro bruto foi soprado o Espírito.
Para Juraci
Sobre o terraço de um ryad, na antiga cidade murada (a Medina de Marraquexe), ao crepúsculo, quando os mantras islâmicos, nas mesquitas e casas, se elevam para louvar a glória de Alá – o misericordioso, é como se um cortejo de anjos sussurrassem na alma da cidade e ela entrasse em suspensão. Momento mágico e de comunhão profunda entre a terra e o céu, entre o profano e o sagrado, entre o efêmero da vida e a perenidade do espírito. Homens e mulheres se inclinam sobre o chão, com as cabeças e os corações voltados em direção à Meca. Em cada mesquita, a fé, em cada casa, um lume e, em cada lume, uma voz resgatada dos primórdios do tempo, o som de quando a luz se separou das trevas e no barro bruto foi soprado o Espírito.
Ao entardecer, na paisagem da cidade ocre, lá longe, divisada no azul do céu ainda límpido, mas já tocado pelos tons laranja e vermelho do sol que se põe, avisto as cordilheiras nevadas de Atlas, muralhas eternas que dividem a grande planície do Saara, onde os homens, em Caravanas, ainda se guiam pelas estrelas e refazem caminhos seculares. No colo da cordilheira, na antigo e pequeno povoado de Agmate, foi erguido um singelo mausoléu (um marabuto – lugar sagrado) para Maomé ibn Abade Al Mutamid (nascido em Beja – Al Garb português, no ano de 1040), onde não cabe o tamanho do esplendor e da grandeza desse poeta e Rei de Sevilha, da dinastia Abádida. Ali estão também os corpos da sua amada Itamad – a escrava que conquistou a liberdade e o coração do guerreiro pela força da poesia, e de um dos filhos desse amor. A história trágica desse poeta-guerreiro foi estudada pelo arabista português Adalberto Alves, que também traduziu os seus poemas, no livro “Al-Mu’tamid, Poeta do Destino”.
Al Mutamid e Itamad viveram o esplendor e a grandeza da civilização do Al Andaluz, na península ibérica, mesmo na época das taifas, depois do fim do grande Califado de Córdoba, com sua avançada ciência e a vitalidade das artes e da filosofia (saberes e belezas que floresceram sobre as ruínas do império romano e dos reinos bárbaros), o que contribuiu para que a Europa despertasse das trevas e construísse a sua modernidade, como legado mediterrânico, fruto do grande encontro do oriente com o ocidente.
Os reis cristãos guerrearam sem cessar contra a civilização do Al Andaluz. Em 1085, o rei Afonso VI, de Leão e Castela, conquistou Toledo e avançou sobre a taifa de Sevilha. Al Mutamid pediu ajuda do emir Yûsuf ibn Taxufine, senhor absoluto do império berbere, da dinastia Almorávida do norte da África, que concordou em enviar os seus exércitos. Seguiram-se alguns anos de luta e, por fim, o emir almorávida conquistou e reuniu as taifas dispersas e ameaçadas, impondo no Al Andaluz um islamismo rigoroso e fundamentalista, o que conflituou a convivência tolerante dos três povos do livro (judeus, cristãos e islâmicos), em determinados períodos do império árabe-berbere. Al Mutamid foi feito prisioneiro pelo novo senhor Almorávida e enviado para o exílio no Marrocos. Viveu pobremente em Agmate, com a sua amada Itamad e seu o filho, até a sua morte (1095), cercado por poetas e peregrinos que vinham de várias partes do mundo para reverenciá-lo.
Como os antigos poetas-peregrinos, fui a Agmate e visitei o mausoléu do poeta Al Mutamid. Ali, diante das lápides de azulejos andaluzes, depois de atravessar mares, cordilheiras e desertos, humildemente curvei-me e murmurei: poeta, sou do sertão, das lonjuras da terra seca e do império do sol; o meu coração também é árabe.
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TRÊS POEMAS DE AL-MUTAMID
ITAMAD
invisível a meus olhos,
trago-te sempre no coração
te envio um adeus feito paixão
e lágrimas de pena com insónia.
inventaste como possuir-me
e eu, o indomável, que submisso vou ficando!
meu desejo é estar contigo sempre
oxalá se realize tal desejo!
assegura-me que o juramento que nos une
nunca a distância o fará quebrar.
doce é o nome que é o teu
e aqui fica escrito no poema: Itimad.”
(Tradução Adalberto Alves)
ALVES, Adalberto. “Al-Mu’tamid, Poeta do Destino”. Assírio e Alvim, Lisboa 1996
QUEIXUME
eu era o aliado do orvalho,
companheiro da generosidade,
amigo das gentes e dos espíritos.
foi minha mão direita generosa
na hora da dádiva
e letal açoite no dia do combate.
a esquerda segurava as rédeas dos corcéis
para me arrojar no meio das lanças.
hoje sou cativo,
refém da pobreza,
presa da doença,
frágil pássaro de asas rotas.
já não posso acudir aos que me gritam,
suplicando dádivas,
nem aos mendigos que me pedem pão.
conheceste-me alegre? só ficou a tristeza
das penas, desterrando a alegria.
este aspecto que ora ofende a vista
já foi deleite dos olhares argutos.
(Tradução Adalberto Alves)
ALVES, Adalberto. “Al-Mu’tamid Poeta do Destino”. Assírio e Alvim, Lisboa 1996
A BATALHA FINAL
eu tinha mal contidas lágrimas
e o coração destroçado.
e me diziam: «<a rendição convém-te! rende-te!»
mas o pior veneno seria melhor que a rendição.
os inimigos a pátria me roubavam
e o povo dava-me a provar o gosto da traição.
porém, o coração ainda estava no meu peito
e o corpo jamais entrega o coração.
tudo me levaram menos o carácter nobre,
a nobreza pode alguém arrebatá-la?
no dia da batalha eu não quis couraça,
e saí para a luta sem protecção para o peito.
mortifiquei a alma julgando que a perdia.
a rodos o sangue então corria.
mas nem assim a morte quis chegar
pra me poupar ignomínia e submissão,
lancei-me na batalha julgando não voltar.
assim os meus avós, assim sou eu:
quem soube da raiz o ramo conheceu.
(Tradução Adalberto Alves)
ALVES, Adalberto. “Al-Mu’tamid, Poeta do Destino”. Assírio e Alvim, Lisboa 1996
Com Informações do Portal Vermelho