No dia 4, em meio à Semana Mundial da Saúde Pública, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) fez um debate virtual que reuniu importantes autoridades sanitárias de países latino-americanos, onde se fez um balanço sobre as lições legadas pela pandemia em nossas sociedades. Ao conectar as políticas sanitárias com o contexto políticos, os participantes foram enfáticos em reforçar a necessidade de uma luta conjunta estratégica em nome da soberania em saúde.
Trata-se da criação de condições para garantir acesso a medicamentos e vacinas, além da ampliação da resiliência dos próprios sistemas de saúde, expostos a uma experiência inédita a partir do coronavírus. Além disso, blindar o setor de influências políticas sabotadoras de sua função, mais especificamente do negacionismo científico que tanta gente matou.
“Podemos refletir sobre como a política de saúde se articula com a política em geral de um país. O Brasil foi um grande exemplo a partir da criação da narrativa anticientífica, com discursos conspiratórios antiChina etc. E o negacionismo esteve presente na legalidade, até certificação de óbito foi questionada. Houve lutas contra medidas de proteção. Houve aliança com entidades de classe que validaram coisas como a cloroquina”, pontuou Rômulo Paes de Sousa, epidemiologista, pesquisador da Fiocruz e especialista em políticas públicas.
Mediado por Rosana Onocko, presidente da Abrasco, o evento que contou com interlocutores estrangeiros acabou, mesmo não intencionalmente, por deixar clara a particularidade brasileira na relação com a pandemia. “O negacionismo entrou em cena em todas as camadas de políticas públicas necessárias ao enfrentamento da pandemia. E aqui houve a contradição, uma mescla entre medidas necessárias e outras de baixa eficácia, porque parte da ação política não depende da vontade do presidente, mas é um processo que inclui vários atores sociais e econômicos, com interesses diversos, que influenciam o tomador de decisão”, completou Rômulo.
No entanto, a experiência de autoridades de saúde de outros países também elucidou como o tema da saúde é atravessado pelas contradições socioeconômicas de qualquer localidade. Ivan Landires, pesquisador panamenho, trouxe interessante estudo, no qual fez um ranking sobre a capacidade de compra de uma “cesta básica de remédios” por parte da população de 12 países das Américas do Norte e Central.
“Somamos preços, salário médio e criamos o índice de acessibilidade. Estados Unidos e Canadá lideram. Um norte-americano médio teria condição de comprar 70x por mês o que chamamos de cesta básica de remédios. Países como El Salvador e Panamá ficam muito atrás. Os números têm correlação direta com índice de Gini (medidor da desigualdade) de cada país. Apesar da pandemia, alguns países encareceram preços e a política pública não se dirigiu a cuidar de problemas básicos de saúde. Nossas iniquidades sociais e outros determinantes de saúde se agravaram”.
Como não poderiam deixar de concluir os envolvidos, a política de saúde e o acesso a tal direito por parte da população estão diretamente relacionados com as decisões da classe política. E a pandemia apenas deu tons mais dramáticos às tragédias sociais arraigadas nos países latinos.
“Vacinamos a população, pelo menos 55% da população tem esquema vacinal completo, e estamos na quarta dose (pelo menos 70% com duas doses). Mas temos cólera, difteria, mortalidade materno-infantil aumentou. A pandemia mostrou a realidade da dívida social de nossos países e a necessidade de trabalhar o lado social. O nosso setor de saúde depende muito de outros setores políticos, do orçamento, de compromisso com equidade. Falam de equidade e eficiência, mas quando se trata de colocar esses conceitos no orçamento temos um problema. A pandemia aumentou desigualdades. E isso mesmo jorrando dinheiro de todo lado”, ilustrou Ramon Anulfo Lopez, presidente da Sociedade Dominicana de Saúde Pública.
Dessa forma, o que essas lideranças do campo sanitário, com suas experiências distintas, acabam por colocar no centro da cena é a importância da política como espaço organizador do direito à saúde em sua concretude. E, em termos práticos, a inerência de tal direito para além dos dogmas de austeridade fiscal eterna, presentes em todos esses países.
“Precisamos de plano estratégico para uma nova normalidade. A covid veio pra ficar. Se não fizermos nada mais pessoas vão morrer, desigualdades e iniquidades vão aumentar. Precisamos fortalecer nossos sistemas de saúde. Todo mundo fala da importância da atenção básica, mas segue nulo o nível de prioridade. Ainda vejo 80, 90% dos orçamentos direcionados a média e alta complexidade, sendo que a atenção básica pode resolver e prevenir doenças nessas mesmas taxas”, alertou Jesus Roldan, presidente da Sociedade Mexicana de Saúde Pública.
Em meio a isso, não é só o negacionismo de uma ultradireita que, apesar dos estragos, ainda é minoria na sociedade e não conseguiu bloquear o movimento em defesa das vacinas e da ciência. Interesses econômicos que operam em meio às necessidades sociais e populares precisam ser enfrentados por governos firmes o bastante para não deixar o povo à mingua.
“Nenhum sistema de saúde estava preparado, nem especialistas do maior nível tinham experiência nisso. Temos que nos preparar para outras epidemias, os sistemas de saúde devem prever isso. Também aprendemos a lidar com duas curvas, a de saúde e a econômica. A República dominicana cultiva mais tabaco que alimentos, por exemplo. Estamos desperdiçando a chance de criar programas nacionais de vacinação, voltados a populações mais vulneráveis. Nossa região precisa se unir para criar alguma declaração conjunta nesse sentido, que garanta acesso a vacinas. Dengue, febre amarela e outras doenças estão aí”, explicou o representante dominicano.
“Também vimos a dimensão econômica. Muitas mentiras sendo disseminadas a fim de potencializar a venda de produtos. Na gripe espanhola houve muito isso. E teve a dimensão da disputa pela venda da vacina entre grandes fabricantes, ataques à vacina chinesa etc. Aqui, tivemos exemplos claros de como a política se tornou mais importante que as convicções profissionais. Vivemos a dimensão de ver políticas de enfrentamento ao vírus prejudicadas pelas próprias elites locais, tanto da área da saúde como da política”, complementou Rômulo.
Para os debatedores, a saúde aparece para além de um direito social democrático e mesmo um catalisador econômico, como muitos têm destacado recentemente, inclusive no novo governo brasileiro. A saúde é, também, um mecanismo de integração da região. De soberania e desenvolvimento socioeconômico, como sonhado por tantos teóricos e protagonistas da dura história latino-americana de luta pela democracia. A pandemia apenas revelou a urgência dessa compreensão.
“No fim das contas, estamos falando de pobreza e determinantes sociais de longa data. Covid e o que produziu na economia, em necessidades de trabalho conjunto, a exemplo dos tomadores de decisões políticas e elaboradores de políticas sanitárias, são exemplos que devemos reter. Temos de criar mais consciência para aumentar investimentos em saúde. E também criar comunidades mais resilientes. Aumentar a proximidade entre população e profissionais da saúde é outra lição que fica. Devemos pensar globalmente em saúde, mas também trabalhar localmente”, resumiu Ramon Anulfo Lopez.
Fonte: Outra Saúde