Alerta: Essa reportagem contem depoimentos e imagens que podem sensibilizar ou entristecer.
Sara Tonkin e o marido passaram dez anos tentando engravidar até que decidiram fazer fertilização in vitro. Dos quatro embriões viáveis, um deles foi implantado. A expectativa era grande para saber se tinha dado certo, se Sara estava grávida.
Quando o teste de farmácia deu positivo, a alegria foi enorme. “Eu ia ao banheiro a toda hora fazer exame de novo, mesmo sabendo que estava grávida, que tinha dado certo. Foi uma felicidade imensa.”
Sara é brasileira e mora em Londres com o marido inglês. Ela conta que a gestação foi tranquila, sem intercorrências.
“Eu era saudável, fazia exercícios, não tive problema nenhum. A nossa bebê estava muito saudável e nos preparamos para um parto normal.”
Quando estava com 40 semanas de gravidez, o hospital marcou uma indução.
“A indução foi marcada para quando eu estava com 41 semanas e meia. Fui ao hospital num sábado à tarde e a médica me disse que eu não precisava fazer a indução e que eu poderia ir para casa e esperar até segunda pelas contrações, porque estava tudo bem.”
Sara foi para casa e as contrações começaram. Ela ligou para o hospital, que a orientou a esperar até que o intervalo entre as contrações fosse de três minutos para voltar. “Tomei banho e esperei, até que estava sentindo muita dor e fui ao hospital. Era domingo.”
Depois de chegar, ficou um tempo na sala de espera até ser atendida por uma enfermeira, que trouxe um aparelho para ouvir os batimentos do bebê. “Não conseguiam achar os batimentos. Até que trouxeram uma pequena máquina de ultrassom. Mais uma vez, nada de batimentos.”
Foi então que Sara ouviu da enfermeira a notícia mais temida por uma mulher prestes a dar à luz. “Ela disse: ‘mãe, me desculpa, mas o batimento não está aqui.’”
Uma autópsia depois revelaria que havia mecônio no corpo da bebê – as fezes do feto que, se eliminadas no líquido aminiótico antes do nascimento, podem ser perigosas tanto para a mãe quanto para a criança.
A filha de Sara possivelmente havia morrido por asfixia, pelo contato com o fluído com mecônio.
Sara conta que, a partir dali, viveu o momento mais traumático de sua vida. A dor física das contrações se misturavam ao desespero de ter perdido a filha. Ela já estava com dez centímetros de dilatação e foi encaminhada para concluir o parto normal.
“Ali eu já comecei a gritar, porque já estava com bastante dor e ao mesmo tempo a emoção de ouvir que eu tinha perdido a minha filha, minha filha que eu tanto quis.”
A foto
Quando a bebê finalmente nasceu, perguntaram se ela queria ver e segurar o corpinho. Mas, no momento de choque e dor, Sara disse que não.
“Foi muita emoção. Era demais. Na minha cabeça, eu só queria sair daquele hospital.”
Também perguntaram se ela queria uma foto e lembranças da filha, como fios de cabelo e a digital dos pezinhos.
“No choque, eu recusei tudo. Na hora de ir embora, eu pedi para ver a minha filha. E, quando eu segurei ela, eu desmoronei. Eu me agarrei a ela e chorei. Mas aí eu já estava indo embora e meu marido tentou me levar”, contou Sara.
“Eu não passei muito tempo com ela e eu me arrependo muito disso, mas eu estava em choque.”
Alguns dias depois de chegar em casa, Sara foi visitada por uma enfermeira especializada em luto, um serviço oferecido pelo NHS, o serviço público de saúde britânico.
No Reino Unido, a prática de tirar fotos de bebês que nascem mortos para oferecer às mães virou orientação oficial em vários hospitais públicos.
Enfermeiras são treinadas para fazer o registro ou trabalham em contato com ONGs que oferecem fotografias profissionais.
“Ela me explicou sobre uma ONG chamada Remember my Baby que tirava as fotos gratuitamente e enviava. E disse: ‘Sara, eu vou estar lá e vou garantir que eles vão cuidar bem da sua filha e que ela vai usar a roupinha que você escolheu.’”
A empatia da enfermeira emocionou Sara e ela concordou em tirar as fotos e em pedir a caixinha de memórias que o hospital havia oferecido.
A bebê permanecia no hospital porque faria uma autópsia e o funeral ocorreu algumas semanas depois.
“Eu decidi ir ao hospital no dia das fotos. Tomei coragem e fui. A sessão de fotos já tinha terminado, mas eu pude segurar a TT (apelido dado por Sara à filha, que depois foi registrado como nome) mais uma vez e reparar em detalhes que eu não tinha visto antes, as mãozinhas, o cabelo. Ela realmente era linda.”
‘É tudo o que tenho dela’
Dias depois, as fotos da bebê, que durante a gestação era chamada pelo casal de TT ou Tiny Tonkin (pequena Tonkin), chegaram à casa de Sara. Ela conta que foi um momento de muita emoção para ela e o marido.
“Eu sou muito grata por essas fotos terem sido tiradas. Foi muito importante para meu processo de luto. As fotos são tudo o que eu tenho dela.”
Sara passou a integrar grupos de apoio para mães que tiveram bebês natimortos e explica que falar sobre o tema, ter as fotos, reconhecer a existência e a perda de TT, foram etapas importantes para processar o luto.
“Eu quero falar sobre a TT, quero mostrar a foto dela. Quando estou num momento difícil ou com muita saudade, eu abro, vejo as fotos, mostro.”
Sara conta que montou um cantinho na casa com as fotos da bebê. Um ano depois ela teve outra filha, que hoje está com três anos, e em 2022, teve outra bebê, hoje com sete meses.
“Eu mostrei para a minha filha mais velha e expliquei: essa é a TT, sua irmã mais velha, que faleceu”, conta Sara.
“Um dia eu estava triste e a Luna (filha de 3 anos) me perguntou o que eu tinha. Eu disse: ‘Estou com muita saudade da TT’. Ela pegou as fotos, levou até mim, apontou para a imagem e disse: ‘não fica triste mamãe, a TT está aqui.’”
A importância das fotos no luto
A psicóloga Daniela Bittar, especializada em luto materno, explica que o contato da mãe com o bebê e o acesso a fotos dele, são importantes para processar a perda.
Ela explica que, no Brasil, muitas pessoas e até médicos obstetras acham, por desconhecimento, que o melhor para amenizar a dor de uma mãe que perde o bebê ao nascer é limitar o contato dela com o filho que partiu.
“Muitas vezes recomendam que a mãe não veja o corpinho do bebê, fazem cesárea e dizem coisas como: você vai superar, já, já vem outro filho. Não pensa nisso.”
No choque, muitas mulheres não querem ver o corpo do neném ou seguem o conselho dos médicos, de não segurarem o bebê. Mas, depois, essa ausência de despedida dificulta o processo de elaboração do luto, diz a psicóloga.
“A grande maioria das mulheres que não tiveram contato com o filho se arrepende. Muitas entram num luto traumático, ficando estagnadas num loop, pensando em como era o rosto do bebê, querendo ‘desenterrar a criança’, pensando no que poderia ter dito para ela”, explica.
As fotos ajudam a mulher que, no choque da perda não quis ver o filho, a se despedir posteriormente, a reconhecer a existência daquele filho e iniciar o processo de luto, diz Bittar.
Fotógrafa oferece fotos gratuitas em MG
Enquanto no Reino Unido a prática de tirar fotos de bebês natimortos é bem difundida, no Brasil o tema é pouco discutido. O único projeto que existe foi iniciado pela fotógrafa Paula Beltrão, em Minas Gerais.
Juntamente com a psicóloga Daniela Bittar e a obstetra Mônica Nardy, ela fundou o Grupo Colcha, para oferecer fotografias e apoio psicológico a mulheres que perderam seus bebês.
Também formaram um grupo de apoio para que possam compartilhar suas experiências.
“Com nossos, filhos, a gente tem fotos em todas as situações. Tiramos foto quando são recém-nascidos, quando começam a andar. Uma mãe que perde o filho no parto, ela vai ter um único momento com o filho. Então, a fotografia vem justamente para registrar essa única memória”, explicou Beltrão à BBC News Brasil.
Segundo Beltrão a fotografia também tem a função de garantir às mães um registro que “comprove” ou torne “mais real” a parentes e amigos a existência do filho que morreu antes de nascer.
“Essas mães que perdem os bebês ainda muito novinhos ou ainda na barriga, elas já são mães e elas querem e têm o mesmo orgulho de falar, de mostrar o filho delas como qualquer outra mãe”, diz.
“A fotografia, ela ajuda a tampar a lacuna daquele vazio, daquele silêncio, daquele luto invisível. Ajuda no reconhecimento daquele bebê que existiu, mas que a sociedade não viu.”
A psicóloga Daniela Bittar explica que é comum parentes de mulheres que tiveram filhos natimortos não entenderem a dimensão da dor delas.
Isso porque esses familiares e amigos não tiveram a oportunidade de conhecer a criança e criar memórias afetivas com ela.
Mas a mãe do bebê já desenvolveu, ao longo da gestação, uma conexão emocional e biológica com ele.
“O trauma muitas vezes não vem do evento em si. Ele advém do fato de esse filho não ter o reconhecimento. Ele vira um bebê fantasma”, explica.
Reconhecer a perda para processar o luto
Segurar o filho e ter fotos dele ajudam no processo de luto, porque o luto passa primeiro pelo reconhecimento daquela pessoa que partiu, explica a psicóloga.
“Quando uma mãe perde um filho com dois, três anos, as pessoas se comovem exatamente por se colocarem no lugar dela e perceberem o tamanho dessa dor com nitidez. Essa criança tinha nome, tinha memórias afetivas com várias pessoas”, exemplifica.
“Quando o bebê morre intraútero, esse bebê não foi visto, não construiu memória afetiva com ninguém, a não ser com essa mãe. Essa mulher está ali completamente atrelada a essa criança de forma psíquica, visceral, mas não tem a dor e o luto compreendidos pela sociedade.”
Segundo Bittar, muitas mulheres que, no momento de choque, não seguraram seus filhos e que não tiveram a oportunidade de ter fotos deles, acabam presas num loop de culpa por não terem estado com seus bebês, olhado para eles e se despedido.
“Por isso, é tão importante ter profissionais de saúde treinados nas maternidades para explicar sobre as fotos, fazer os registros e ajudar a mãe a processar o que aconteceu.”
Sara Tonkin conta que, pouco após a filha nascer sem vida, ela viajou ao Brasil. Lá, percebeu que amigos e parentes tentavam evitar o assunto, por considerarem que falar sobre a morte de TT iria deixá-la mais deprimida.
“Ninguém sabia como lidar comigo, porque eles não queriam falar do assunto. Eles achavam que se falassem iriam me magoar. Mas eu achei pior, porque para mim eles tinham esquecido da TT. Ninguém queria falar sobre ela. E eu gosto quando as pessoas falam dela.”
Foi em grupos de apoio, compartilhando sua experiência e ouvindo outras mães, que Sara primeiro encontrou acolhida e espaço para falar da filha.
E as fotos a ajudaram a comunicar para os outros a dor e saudade que sentia, mas também todo o amor que tem por TT.
“Para mim, é muito importante manter a memória dela viva. Ela viveu dentro de mim por 41 semanas e meia. Ela nasceu morta, mas ela existiu. Ela é amada e quero que seja lembrada.”
Fonte: BBC Brasil