Intérpretes do Brasil – José Bonifácio de Andrada e Silva

cultura

Felipe Maruf Quintas – 13/07/2020 Segunda, de julho de 2020

Este é o primeiro de uma série de artigos de Felipe Quintas sobre os intérpretes do Brasil. O Instituto Bonifácio promoverá, a partir da série, o curso Intérpretes do Brasil, a ser ministrado pelo próprio Felipe Quintas.

José Bonifácio de Andrada e Silva (Santos, 1763 – Niterói, 1838), o Patriarca da Independência brasileira, foi um caso raro, na História mundial, de um homem ao mesmo tempo de ciência e de ação política.

Conhecido nos principais círculos intelectuais europeus, foi um dos maiores mineralogistas de sua época, responsável pela descoberta de quatro minerais, entre eles a petalita, a partir da qual se extrai o lítio e a andradita, batizada em sua homenagem.  Ocupou a cátedra de Metalurgia na Universidade de Coimbra e também funções de destaque na administração pública portuguesa, onde se empenhou em desenvolver, pela ação do Estado, a mineração e a siderurgia nacionais.

Em 1808, quando da invasão napoleônica a Portugal, comandou batalhões portugueses contra as tropas francesas.

Tendo retornado ao Brasil em 1819, assumiu papel de destaque na Independência, por ele chamada “Revolução Brasílica”. Foi iniciada em reação ao intento das Cortes portuguesas de recolonizar o Brasil e fazê-lo voltar ao estatuto pré-1808, o que Bonifácio foi um dos primeiros a denunciar, ainda que tivesse sido até então um ardente defensor do Império luso-brasileiro sediado no Brasil.

Dom Pedro I, Príncipe Regente e herdeiro da Coroa Portuguesa, foi o eixo em torno do qual José Bonifácio reuniu as forças necessárias para a proclamação da Independência.

Tendo sido ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros de janeiro de 1822 a julho de 1823, comandou com mão firme a Guerra de Independência contra Portugal e atuou com severidade contra as facções radicais, por ele chamadas de “anarquistas”, e as reacionárias, por ele chamadas de “corcundas” e “pés de chumbo”. Nesse processo, organizou o Exército e a Marinha brasileiros, bem como a diplomacia, tendo contado com a importante colaboração da Imperatriz Maria Leopoldina. Dessa maneira, estabilizou o cenário político na Independência e impediu que o País se fragmentasse. Após ter sido demitido do Ministério, fundou, junto aos seus dois irmãos, o jornal nacionalista O Tamoio. Em seguida, foi eleito, também com os irmãos, deputado constituinte em 1823, incendiando os debates com ousadas propostas nacionalistas e abolicionistas. Quando da dissolução da Assembleia Constituinte, perdeu seu mandato, foi preso e exilado.

Em sua trajetória política, exerceu a função de estadista consoante uma interpretação do Brasil, segundo a qual o nosso País, mais do que uma Nação, seria, pela sua grandeza e fertilidade, um Império e uma Civilização singular, de caráter mestiço e autossuficiente em termos materiais e culturais. Foi o primeiro a elaborar e colocar em prática um projeto nacional de emancipação política, desenvolvimento econômico e justiça social à altura das amplíssimas potencialidades brasileiras.

Maria Leopoldina, esposa de Dom Pedro I, era filha do imperador Francisco I da Áustria, da Casa de Habsburgo-Lorena, a mais importante da nobreza europeia, e cumpriu papel decisivo ao lado do Patriarca na articulação da Independência do Brasil.

Para tanto, ele defendia a edificação de um Estado unitário que, por um Poder Executivo enérgico, constituísse “um centro comum de União e de força entre todas as Províncias deste vastíssimo País”, de modo a resguardar e aperfeiçoar “a responsabilidade e harmonia mútua entre os Poderes Civil, Militar e Financeiro” e “desempeçar o caminho para o aumento da civilização e riqueza progressiva do Brasil”, conforme expresso no Manifesto da Independência, redigido por ele e proclamado por Dom Pedro I. Ou seja, um Estado capaz de dirigir e coordenar a Nação, dando-lhe a musculatura institucional necessária para a manutenção da ordem e a condução do progresso.

Sua defesa da monarquia constitucional centralizada não derivava de nenhum apreço ao passado como tal, mas à consideração pragmática e realista de ser essa a forma de governo mais adequada para preservar a unidade nacional de um país de grande extensão territorial como o Brasil. Esse posicionamento encontrava respaldo na observação empírica do sucesso das experiências europeias de centralização territorial pela via monárquica – sendo o caso mais marcante o da Rússia, único país que, à época, superava o Brasil em território -, do malogro do republicanismo na América Hispânica em evitar a balcanização e a conflagração das ex-colônias espanholas e do exotismo da forma institucional federalista adotada nos EUA, país de formação, raízes e tradições muito distintas.

A proposta do Patriarca de transferência da capital para o interior, mais especificamente para o Planalto Central visava promover essa centralização política na base física do País.

José Bonifácio concebeu a libertação dos escravos como uma etapa essencial para a consolidação da unidade e da independência do Brasil. Quadro de Johann Moritz Rugendas (1802-1858).

O exercício da autoridade estatal em todo o território viabilizaria a integração nacional pelo desenvolvimento produtivo e social. Em sua concepção, o eixo econômico e demográfico brasileiro deveria ser deslocado para o interior, amplificando-se na imensa base continental. Daí a necessidade, segundo ele, de ocupar o interior por meio de empreendimentos estatais de infraestrutura e de fomento à agricultura, à mineração e à indústria, entendidas como complementares entre si.

Para isso, Bonifácio propunha a criação da Direção Geral de Economia Pública, órgão estatal responsável pelo planejamento e execução de tais iniciativas, de maneira também a estimular a criação de um empresariado nacional ainda inexistente. Em muitos aspectos, e com mais de um século de antecedência, a Direção Geral de Economia Pública assemelhava-se ao famoso MITI japonês (Ministério do Comércio Exterior e da Indústria), responsável pela alavancagem econômica do Japão após a II Guerra Mundial.

Suas ideias sobre preservação ambiental eram subsidiárias, não antagônicas, ao desenvolvimento agrícola e industrial, pois a racionalização do uso do solo e das riquezas naturais seria condição indispensável para a manutenção das atividades produtivas e das condições de antropização da continentalidade brasileira.

O Patriarca também defendeu, de maneira incisiva, a abolição gradual da escravidão e do tráfico negreiro, chegando a apresentar um projeto de lei nesse sentido durante o seu mandato de deputado constituinte em 1823, conhecido como Representação sobre a Escravatura. Não lhe interessava apenas abolir a escravidão, mas também, e sobretudo, os seus efeitos funestos em termos de desigualdades sociais e aviltamento humano e produtivo do País.

Então, ele defendeu a execução de uma reforma agrária que coibisse o latifúndio e distribuísse terras aos negros libertos, aos indígenas e aos brancos pobres, bem como fornecesse instrução formal e assistência técnica a esses grupos. Não por menos, advogou pela criação de escolas e universidades em todas as províncias, para “espalhar pelo Povo os conhecimentos, que são indispensáveis para o aumento, riqueza e prosperidade da Nação”. Em sua concepção, os negros e os índios deveriam ser incorporados, de forma pacífica e consistente, ao progresso nacional, cabendo haver, inclusive e na contramão do racismo imperante, o estímulo público à homogeneização étnica e social do Brasil pela miscigenação entre eles e os brancos, com o fito de assegurar a unidade nacional.

O caráter desenvolvimentista e social do projeto nacional de Bonifácio inseria-se no plano maior de avançar a Independência do Brasil em relação aos âmbitos comercial e financeiro relativos à Europa, sobretudo à Inglaterra, não limitando a emancipação nacional à libertação política a Portugal. Sendo o Brasil dotado de inesgotáveis recursos, não dependeria do comércio com os países centrais para prover seu próprio sustento. O Brasil deveria orientar suas atividades para dentro, e não mais para o exterior, rompendo definitivamente com o estatuto colonial.

O Patriarca defendeu a emancipação dos índios e sua plena integração à sociedade nacional. Pintura de Frans Post (1612-1680).

Ele o seu irmão Martim Francisco, 1º Ministro da Fazenda do Brasil, foram, nas ideias e na prática, ferrenhos opositores do livre-comércio, do endividamento externo e da submissão do País a grupos financeiros. Martim Francisco, com o aval do irmão e contrariamente aos interesses britânicos, elevou as tarifas alfandegárias sobre produtos importados, recorreu a um empréstimo interno para sanear as contas públicas, impedindo a tomada no exterior, e reestruturou o Banco do Brasil, salvando-o momentaneamente da bancarrota no intento de torná-lo, enquanto banco estatal, a agência central de crédito do País. Ambos criticaram veementemente os empréstimos externos, o arrendamento das finanças e os tratados comerciais desfavoráveis ao Brasil, feitos logo após a saída deles do governo.

A autossuficiência do Brasil também foi utilizada por Bonifácio como instrumento dissuasório para obter da Inglaterra o reconhecimento da Independência, em admirável postura soberanista. Na Instrução diplomática endereçada a Felisberto Caldeira Brant Pontes, representante do Brasil na Inglaterra, o Patriarca escreveu: “Este Reino […] está resolvido a fechar seus portos a qualquer Potência que não quiser reconhecer nele o mesmo direito que tem todos os Povos de se constituírem em Estados independentes […]. O Brasil não receia as Potências Europeias, de quem se acha apartado por milhares e léguas, e tampouco precisa delas, por ter no seu próprio solo tudo que lhe é preciso”.

Os ideais republicanos de um Brasil desenvolvido buscaram inspiração nas teses do Patriarca.

A fim de zelar por essa autossuficiência, caberia ao País constituir sólida defesa nacional para proteger e defender o seu patrimônio físico e humano. Daí o já citado esforço empreendido por Bonifácio de organizar o Exército e a Marinha nacionais, bem como um serviço de inteligência, por ele chamado “alta polícia estrangeira”, para vigiar e espionar outros países – no que ele incluiu nominalmente EUA e Inglaterra -, de maneira a fazer valer os interesses do Brasil no mundo. Como ele afirmou, em passagem citada por Glycon de Paiva, membro da Assessoria Econômica de Getúlio Vargas, em artigo presente no Volume 1 das Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva: “Pão, pólvora e metais são o que sustenta e defende as nações: sem eles de próprio fundo, são precárias a existência e a liberdade de qualquer Estado”.

Por fim, em seus esforços para assegurar a soberania nacional, Bonifácio, em Instruções diplomáticas a Correa da Câmara e Rivadavia, representantes do Brasil nos Estados do Prata, propôs a seus respectivos governos a formação de uma Confederação entre o Brasil e os países da América Hispânica para juntos se defenderem contra o imperialismo europeu. Bonifácio antecipou-se ao presidente estadunidense James Monroe, idealizador da Doutrina Monroe, ao propor um pacto de defesa continental liderado pelo Brasil.

Significativamente, os EUA não seriam abrangidos, o que sinaliza para possíveis desconfianças que o Patriarca já tinha em relação ao país cujos líderes declaravam pretensões imperialistas, a exemplo do Destino Manifesto e dos Artigos Federalistas, que posteriormente tornar-se-iam a realidade da sua política externa.

O presidente Getúlio Vargas e a Revolução de 30 retomaram o projeto nacional sonhado por José Bonifácio.

Integrando as dimensões política, econômica e militar em um projeto nacional, o Patriarca orientava sua liderança no sentido de romper a subordinação brasileira, em todos os sentidos, às potências europeias e ao comércio atlântico com elas. O intuito era fazer o Brasil emergir como potência mundial, altiva para fora e generosa para dentro. 

Não admira que, na sua vida política no Brasil, Bonifácio tenha colecionado, entre as oligarquias, mais desafetos que aliados, e tenha pagado o preço com a prisão por mais de uma vez, o exílio e o ostracismo ao final da vida, levada por ele de forma pacata em Niterói. Seu projeto nacional ameaçava interesses e preconceitos arraigados, todos voltados para manter o Brasil escravocrata, primário-exportador e subjugado à Inglaterra, mesmo depois da sua Independência.

Todavia, o Patriarca inspirou inúmeros movimentos posteriores de libertação nacional, como o abolicionismo, que o considerava um mentor; o positivismo, que resgatou a sua memória como Pai da Pátria, defensor de um Poder Executivo forte e protetor dos índios; a Revolução de 30, cujos programas educacional e de implementação da mineração e da siderurgia nacionais foram abertamente inspirados nas suas ideias.

Ainda hoje, a sua visão e interpretação de Brasil permanece atual e por ser feita. O desafio de formar o Brasil soberano, desenvolvido e fraterno mantém-se de pé. A memória de José Bonifácio ilumina os fundamentos da Independência brasileira, em sentido formal e substantivo. A importância em fazê-la viva na prática política consiste em que, como ele afirmou: “sem independência não há para as nações nem constituição, nem liberdade, nem pátria”.

Referências para o estudo do pensamento e da obra de José Bonifácio:

– Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva (3 volumes). Coligidas e Reproduzidas por Edgard de Cerqueira Falcão. Câmara dos Deputados, 2006.  

– José Bonifácio de Andrada e Silva: Projetos para o Brasil. Organizado por Miriam Dohlnikoff. Companhia das Letras, 1998.

– José Bonifácio. Autor: Octávio Tarquínio de Sousa. Biblioteca do Exército, 1974.

– José Bonifácio e a Unidade Nacional. Autora: Therezinha de Castro. Biblioteca do Exército, 1984.

– O Homem que Inventou o Brasil – Um Retrato de José Bonifácio de Andrada e Silva. Autor: Geraldo Lino. Capax Dei, 2019.

– 1822. Autor: Laurentino Gomes. Globo, 2010.

– A Era Vargas (vol.1, cap. 5 – A Revolução de 30 retoma propostas de José Bonifácio). Autor: José Augusto Ribeiro. Casa Jorge, 2001.

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