A neuroplasticidade pode ser influenciada por estímulos internos e externos, por meio do aprendizado constante e tem influência na recuperação após traumas e acidentes, como o AVC
Por Julia Estanislau – Sábado, 20 de maio de 2023
Quantas vezes já ouvimos que, quando se aprende a andar de bicicleta, nunca mais se esquece? Isso é graças à neuroplasticidade do nosso cérebro, que é o poder que ele tem de adaptar sua arquitetura e suas funções a partir de estímulos internos e externos, como ouvir música. “A neuroplasticidade é a capacidade do cérebro de se adaptar, do neurônio, por exemplo, formar novas conexões. Ou seja, ele passa a se comunicar com outros neurônios com os quais não se comunicava antes”, explica Raphael Spera, médico do setor de Saúde Suplementar da Divisão de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Nosso cérebro é feito de neurônios, de células nervosas, que se comunicam entre si por sinapses elétricas, com liberação de mediadores neuroquímicos. De acordo com os estímulos recebidos, pode haver um rearranjo dessas células. Isso quer dizer que, quanto mais utilizamos uma área do nosso cérebro, mais desenvolvida ela se tornará.
Como explica o professor Octávio Pontes Neto, chefe do Serviço de Neurologia Vascular e Emergências Neurológicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, “o que acontece com a estimulação do cérebro é que, com o passar do tempo, algumas vias, algumas conexões, elas se fortalecem, e algumas áreas da arquitetura cerebral acabam também se modificando à medida que a gente vai utilizando. Nós priorizamos algumas atividades”.
A neuroplasticidade, além de proporcionar um melhor desenvolvimento de certas áreas cerebrais, aumentando o desempenho das atividades relacionadas a elas, permite a recuperação neuronal após certos acidentes. Após lesões do sistema nervoso central (SNC), os axônios podem desenvolver novas ramificações e estabelecer novos contatos sinápticos, alterando funções e comportamentos. O SNC tenta recuperar suas funções perdidas ou fortalecer aquelas que se enfraqueceram.
“A fisioterapia e a fonoterapia vão proporcionar um tipo de reabilitação, para que você restaure parcialmente ou completamente essas funções perdidas. Isso é feito através de neuroplasticidade”, diz Spera. Por exemplo, se há algum trauma na região do cérebro responsável pela linguagem, é possível trabalhar a linguagem para que as regiões das adjacências possam, às vezes, assumir aquela função.
Há pessoas que já têm uma predisposição para certas atividades porque nasceram com a parte do cérebro responsável mais desenvolvida, mas isso não significa que ele não possa ser treinado para desenvolver alguma habilidade. “A gente pode estimular isso. Eu costumo falar para os meus pacientes que a atividade física do cérebro é o aprendizado: aprender uma língua, um instrumento musical e trabalhos manuais. Tudo isso vai estar reforçando essas vias de aprendizado e estimulando a plasticidade”, diz Spera. Uma vez traçados, esses caminhos neuronais não são perdidos mesmo após anos em desuso.
O médico ainda cita um caso curioso. Na Inglaterra, a prova para ser taxista incluía decorar o mapa da cidade em que iria se atuar, assim como saber o nome das ruas. “Fizeram um trabalho com taxistas ingleses de Londres, mostrando que algumas regiões parietais eram mais espessas. São áreas do cérebro responsáveis por funções espaciais e de navegação, que é a capacidade de se deslocar no espaço.”
O cérebro dos músicos
Durante treinos musicais, uma área grande é estimulada, o que faz com que novos circuitos sejam explorados e criados, para que um caminho mais eficiente para a realização dessa tarefa seja descoberta. Por meio de estudos de ressonância magnética funcional e de Imageamento de Tensores de Difusão (DTI), foi possível constatar que há uma diferença significativa entre a estrutura e as conexões das áreas do cérebro de músicos e não músicos. “Isso sugere que o estudo do efeito da música no cérebro é uma boa maneira de estudar plasticidade cerebral, porque a gente consegue perceber essas alterações em áreas específicas do cérebro”, diz Pontes.
Visualmente, o volume de massa cinzenta deles é maior nas áreas relacionadas a funções executivas, como a atenção e percepção. Os músicos profissionais ainda têm um maior volume de massa cinzenta no hipocampo, além de uma matéria branca mais desenvolvida na conexão entre o córtex motor e a medula espinhal. Assim, eles têm um melhor desempenho em atividades motoras, memorização de trechos de música e até mesmo um aperfeiçoamento auditivo.
Raphael Spera explica que em outras atividades isso também acontece. “Quando você aprende uma língua, uma regra nova, grava novas informações, tudo isso é feito através de neuroplasticidade. Não por acaso a estrutura do hipocampo, que é a região do cérebro que vai fixar novas informações, é um córtex mais modificável. Apesar de ele ser mais simples, mais rudimentar, ele tem essa capacidade de se transformar.”
Por isso, a musicoterapia é algo muito explorado como forma de tratamento de certas doenças. Em conjunto a outras terapias, ela é indicada para tratamentos clínicos, reabilitação e prevenção de doenças como o Alzheimer, Parkinson, demência frontotemporal, epilepsia e AVC, e para doenças psicológicas como depressão, esquizofrenia e ansiedade. O autismo também pode ser tratado por meio da musicoterapia. “A música pode estimular emoções. É uma comunicação da região auditiva com o circuito do cérebro de emoções, que é principalmente da amígdala cerebral, uma região que vai liberar a dopamina, que é um hormônio que dá bem-estar”, diz Spera.
Neurofeedback na psicologia
Na psicologia, há uma área de tratamento que se baseia na neuroplasticidade e é chamada de neurofeedback. Os cerca de 87 bilhões de neurônios presentes no cérebro produzem, por meio de seus sinais elétricos, diferentes frequências, ou padrões eletrofisiológicos.
A técnica do neurofeedback consiste em treinar o cérebro para normalizar esses padrões, a partir de estímulos na faixa de frequência desejada, como tentativa de potencializar o desempenho de dimensões eletrofisiológicas ou curar sintomas de doenças psicológicas, como a depressão e a ansiedade. Outro aspecto é o uso do neurofeedback para aumentar as funções normais, como a capacidade cognitiva ou aumento das capacidades artísticas e da criatividade.
Um exemplo disso é escutar música clássica para estudar, ou então colocar frequências sonoras para “regular” emoções ou possibilitar entrar em estados de relaxamento, como a frequência 432 Hz, usada para a meditação. As ondas de frequência são categorizadas em delta, theta, alpha, beta e gama. Cada uma está relacionada a um estado do encéfalo: frequências baixas, como o delta, são dominantes durante o sono, coma ou anestesia. Diferente dessa, a frequência theta é observada em estado de baixo nível de alerta e sonolência.
Estudos apontam que, quanto maior a frequência de alpha, menor é o funcionamento do cérebro. Essa frequência está relacionada a um maior relaxamento e conforto. Já a frequência beta representa um estado de alerta maior e está presente em momentos de estresse, fortes emoções e tensão.
As ondas alpha de frequência estão relacionadas a uma maior concentração, diz estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A pesquisa descobriu que, ao suprimir a frequência cerebral alpha em um dos hemisférios de seu cérebro, as pessoas conseguiram se concentrar mais em coisas que apareceram do outro lado no seu campo visual. Ou seja, é possível controlar a atenção manipulando o uso da frequência alpha.
O neurofeedback atua para condicionar o cérebro a pegar caminhos neuronais diferentes daqueles já traçados em concordância com alguma doença, melhorando o quadro clínico e o bem-estar do paciente. A técnica estimula a neuroplasticidade.
Fonte: Jornal USP