Por Sabrina Neumann, do Um Só Planeta
Em entrevista ao podcast Entre no Clima, artista maranhense radicada no Rio fala sobre a desconstrução de preconceitos e sobre o resgate de formas de viver valorizando a natureza
Alimentação e conflito. Esses são os dois temas que vêm à mente de Kaê Guajajara quando ela pensa nas diferenças e semelhanças entre o território indígena onde nasceu, no Maranhão, e o complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, onde viveu por muitos anos. Em Mirinzal se comia o que a terra dava: carambola, buriti, palmito jussara, peixe, mandioca. Na cidade, ela conheceu o hambúrguer, a pipoca e o macarrão instantâneo. Apesar da distância que os separa, os dois lugares, no entanto, têm algo em comum: são focos de confrontos. “Como não tinha nenhuma regulamentação, o território era bastante invadido por madeireiros. Na favela a gente também está constantemente sendo invadido. Eram muitas as situações que eu passava ali dentro, tanto de polícia quanto de bandido. Era um contato bem próximo com a morte, com a sobrevivência”, conta a artista.
Aos 9 anos de idade, Kaê e a mãe vieram morar no Rio, cidade natal do pai da artista. Como muitos indígenas que vivem fora dos seus territórios de origem, a jovem maranhense conheceu desde cedo o preconceito contra os povos originários brasileiros e, particularmente, contra aqueles que migraram para zonas urbanas. “Nao se deixa de ser o que se é. E muitas vezes não é que as pessoas que queiram vir para a cidade, elas vêm por uma questão de sobrevivência”
Na adolescência, Kaê começou a buscar emprego e se deparou com uma realidade que não esperava e que a marcou profundamente: para ocupar postos de trabalho no setor de serviços, não podia expressar sua personalidade e suas origens. “Tem um preconceito muito grande nestes trabalhos formais, que não aceitam que a gente use as nossas artes, um brinco de pena, ou mesmo o jenipapo, que fica 15 dias na pele e não tem como tirar, e é uma coisa que é uma prática cultural nossa, de proteção”.
A cantora e compositora, que se apresenta nesta terça-feira (06) na Semana de Meio Ambiente do Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio de Janeiro, conta que encontrou na música uma forma de se expressar e de se fazer ouvir sobre tudo o que ela tinha para falar e muitas vezes parecia que ninguém escutava. “Se eu não consigo trabalhar em algum lugar, eu preciso transmutar tudo isso que eu estou sentindo e de, uma forma ou de outra, estar seguindo nisso, indo nos lugares, levando essa mensagem para as pessoas”, afirma.
Em entrevista ao podcast Entre no Clima, a artista lamenta a falta de reconhecimento e de valorização dos indígenas que estão se adaptando ao meio urbano e também daqueles que permanecem nos seus territórios de origem — e que são um símbolo tão essencial de como deve ser a nossa relação com o meio ambiente, que nos acolhe e garante a sobrevivência da espécie humana. “A gente tem que estar questionando que avanço é esse, que mais está matando, não só os povos originários, como também os não indígenas. Porque essa colonização não faz bem para a saúde mental de ninguém e nem para a saúde física do próprio povo. Isso atinge a comida, o ar, a terra, e por aí vai”, afirma.
Unindo suas vivências urbanas com as origens indígenas, em suas obras, Kaê busca chamar a atenção para a existência — e a resistência — da pluralidade dos povos originários e mostrar que já não é mais preciso fazer uma longa viagem para conhecer melhor essas culturas ancestrais, pois elas podem estar bem mais perto do que as pessoas imaginam. “As vezes é um vizinho, um projeto, um coletivo, um povo que está resistindo em algum lugar e muitas pessoas não sabem. Tem até aldeias próximo das cidades, ou até dentro também, como a Aldeia Maracanã”. Resumindo sua busca, a artista diz que quer trazer para a música a existência do corpo indígena na cidade. “Não é porque a cidade invadiu e chegou, que a gente não está infelizmente inserido nela”.
Fonte: Um só planeta