Livro analisa mudanças nas instituições culturais latino-americanas e aponta maior protagonismo de artistas e comunidades locais
Cultura como política pública e mobilização social em tempos de globalização, neoliberalismo e pandemia na América Latina. É disso que trata Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México, livro recém-lançado pela Editora da USP (Edusp).
Com autoria coletiva de Néstor García Canclini, Juan Ignacio Brizuela, Sharine Machado Melo e Mariana Martínez Matadamas, a obra é resultado do trabalho de Canclini como titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência da USP, entre setembro de 2020 e março de 2022. Primeiro estrangeiro no posto, o argentino é antropólogo, professor-pesquisador da Universidade Autônoma Metropolitana da Cidade do México e pesquisador emérito do Sistema Nacional de Pesquisadores, também do México.
Durante sua passagem pela cátedra, Canclini liderou a pesquisa A Institucionalidade da Cultura e as Mudanças Socioculturais, realizada em meio aos limitadores e às surpresas trazidos pela pandemia de covid-19. O volume que chega agora às livrarias sintetiza os resultados das investigações e analisa as mudanças nas instituições culturais latino-americanas e em suas dinâmicas com artistas e comunidades locais.
“Como as relações entre instituições, artistas, trabalhadores da cultura e públicos estão se transformando?”, questiona Canclini na apresentação do volume, revelando os temas centrais dos trabalhos. “Em que sentido as instituições culturais estão mudando quando acontecimentos como a irrupção das redes digitais alteram a comunicação entre criadores e receptores, ou catástrofes como a pandemia deixam centenas de milhares sem trabalho, fecham cinemas, teatros e centros comunitários?”
As investigações que culminaram na publicação foram pautadas por pesquisas documentais e etnográficas, inseridas no contexto das limitações impostas pela pandemia. Houve algumas entrevistas presenciais, mas grande parte das atividades foi desenvolvida com o auxílio de ferramentas como Google Meet e Zoom e a própria comunicação entre os pesquisadores acabou acontecendo sobretudo de maneira virtual.
“A situação de laboratório sociocultural em que a pandemia nos colocou interrompeu a vida normal das instituições presenciais, obrigou a repensar os dispositivos e as plataformas digitais como cenários onde se institui o social”, escreve Canclini. “Incitou a reimaginar os museus, cinemas, festivais e outras atividades presenciais na era do Zoom e do streaming, a pensar como superar a quedas das bilheterias e a redução de recursos públicos, a experimentar outros modos de comunicar e tornar presentes as artes na vida social.”
Ao longo das atividades de Canclini na cátedra, Juan Ignacio Brizuela, pós-doutorando do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, investigou os Pontos de Cultura do agreste baiano. Um estudo localizado, mas que resultou em reflexões mais amplas a respeito da crise da cultura pública institucionalizada no País, cujos desdobramentos envolvem o surgimento de uma nova institucionalidade e a criação de mercados culturais paralelos.
Já Sharine Machado Melo, que é gestora cultural na Funarte (Fundação Nacional de Artes) e também pós-doutoranda do IEA, pesquisou os processos que resultaram na promulgação da Lei Aldir Blanc, em 2020. De acordo com a autora, a medida emergencial foi fruto da mobilização de gestores, ativistas culturais, artistas, comunidades afro e indígenas, diante do contexto da pandemia de covid-19 e seus impactos no setor cultural.
“Sharine se propôs a entender de que maneira, em um governo como o de Jair Bolsonaro, autoritário e desestimulador das instituições culturais, se organizou um gigantesco ‘exercício coletivo de memória e escrita’, que gerou comunicações no Zoom e no Google Meet, por meio das quais milhares de gestores, ativistas culturais, artistas da periferia e do centro, moradores de comunidades indígenas e afro, elaboraram uma lei de auxílio nacional”, registra Canclini na introdução ao livro.
Por sua vez, o catedrático e Marina Martínez Matadamas, graduada em Antropologia Social pela Universidade Autônoma Metropolitana Iztapalap e sua assistente no Sistema Nacional de Pesquisadores, se debruçaram sobre a experiência mexicana. A dupla reconstituiu o percurso histórico das políticas institucionais do país, pesquisando os recentes cortes orçamentários e seus impacto sobre artistas. Canclini e Marina também discutem em seu trabalho as ações contra monumentos representativos da opressão e o movimento de criação de antimonumentos na capital mexicana.
Redefinindo as instituições culturais
Resgatando algumas cifras da área cultural, transformadas radicalmente pela pandemia, Canclini cita que o Zoom, com 10 milhões de usuários em dezembro de 2019, viu esse número saltar para 300 milhões em março de 2020. Paralelamente, teatros, salas de cinema, livrarias e museus se viram desertos. Em 2021, o Centro de Estudos das Finanças Públicas do México registrava 828.352 postos de trabalho perdidos no setor cultural em virtude da pandemia.
Contudo, se a migração da produção e do compartilhamento das atividades culturais para as plataformas digitais e a queda na frequência aos espaços físicos pelo público foram brutalmente intensificadas pela covid-19, não começaram com ela, aponta o catedrático. Para Canclini, vivemos um momento de mudança, no qual as antigas instituições se foram e as novas ainda não estão consolidadas.
De acordo com o pesquisador, a intensificação do virtual, que já estava em curso, mas disparou com a pandemia, leva à redefinição do entendimento do que é uma instituição cultural. É a passagem, segundo Canclini, de instituições que podiam acolher, mas também afastar, como os gabinetes oficiais, as livrarias e os museus, para as redes digitais, que institucionalizam relações diversas: sedução e distanciamento com usuários e públicos, ocultamento e transformação da história em acontecimentos.
Se tradicionalmente o termo “instituição” evoca museus, teatros, bibliotecas, cinemas, livrarias, ministérios da Cultura, a Unesco – ou seja, entidades localizáveis no território –, a passagem para o virtual e a “desmaterialização”, como diz o catedrático, mudam o jogo. Essas instituições passam a competir, sobretudo com o advento da pandemia, com plataformas como Netflix, Youtube, Facebook e Instagram. “Em que sentido cabe considerar essas plataformas como instituições?”, questiona Canclini.
Mas, sem desconsiderar os impactos das plataformas digitais no conceito de instituição cultural, o que o livro realmente destaca é a existência de outros atores nesse jogo, para além de governos e grandes corporações. Trata-se dos movimentos socioculturais e comunitários, que trazem novas ideias e práticas de institucionalidade.
“As instituições culturais – mais ou menos sedimentadas – nos territórios da América Latina existem para quem?”, indaga Juan Ignacio Brizuela em seu artigo. O ponto, para o pesquisador, é que grande parte da população não usufrui das instituições consolidadas, como salas de teatro, museus e bibliotecas, por exemplo. Brizuela identifica que os processos para a institucionalização de uma cultura pública, democrática e cidadã são exceção nos países da América Latina ao longo do século 20.
É nesse contexto que surgem movimentos de resistência, buscando renovar essas instituições ou mesmo sugerir outras formas de institucionalização da cultura, mais amplas, participativas, democráticas e públicas. A experiência brasileira dos Pontos de Cultura e o movimento latino-americano Cultura Viva Comunitária, inspirado na política brasileira, seriam exemplos disso.
O centro do argumento de Brizuela é que existem, na América Latina, dois processos simultâneos em andamento. O primeiro diz respeito à debilitação das políticas culturais de Estado. Já o segundo corresponde justamente a essa institucionalidade alternativa, de base social, gerada pelos movimentos culturais. “Que tipo de alcance, êxito e estabilidade pode ter essa institucionalidade ‘experimental’ de base comunitária, sem o Estado?”, pergunta o pesquisador.
Os Pontos de Cultura, relembra Brizuela, uma das políticas implementadas pelo Ministério da Cultura durante o primeiro governo Lula, foram pensados como integrantes de uma rede de criação e gestão, que procurava oferecer apoio oficial a iniciativas artísticas e culturais da sociedade, incluindo aí grupos comunitários tradicionalmente deixados à margem. Isso tudo amparado em uma concepção ampla de cultura, que privilegia seu caráter comunitário, popular e participativo. Assim, seu principal público seriam os setores sociais que não haviam recebido benefícios diretos das políticas culturais, como as leis de incentivo fiscal.
“Ao longo de sua execução inicial (2004-2010), essa iniciativa governamental induziu à formação – mais ou menos intencional – de um movimento social e uma rede nacional que retroalimentam, ou mais, que são constitutivos da política estatal”, escreve Brizuela. “Trata-se de uma experiência inédita no Brasil, que procurou conectar e dar nome a diversas entidades artísticas e culturais, consolidando um movimento sociocultural com características próprias.”
A iniciativa bem-sucedida dos Pontos de Cultura no fomento de comunidades locais e intercâmbio entre elas chega a outros territórios da América Latina, sendo inclusive replicada em países como Peru e Argentina, em um processo de “latino-americanização” da experiência. Analisando esse processo, o pesquisador vê o que considera uma certa institucionalidade alternativa, de base comunitária e não estatal, gerada pelos movimentos socioculturais. Não se trata de movimentos anarquistas ou antiestatais, que rejeitam o Estado ou fontes de financiamento privado, frisa, mas de coletivos que consolidam uma institucionalidade mais fluida e experimental.
“Na trajetória que vai dos Pontos de Cultura no Brasil, em 2004, e chega à lei de emergência cultural Aldir Blanc em 2020, passando pela consolidação do movimento continental da Cultura Viva Comunitária em 2013, observamos articulações transnacionais cada vez mais sedimentadas, nas quais a dimensão popular e comunitária vai se consolidando como eixo fundamental desses novos processos de institucionalização, desinstitucionalização e reinstitucionalização cultural na América Latina”, registra o pesquisador. “Não obstante, esse processo se desenvolve em meio ao desinvestimento generalizado do Estado em programas e instituições culturais, à retração das economias nacionais e à queda de público em eventos presenciais por causa da pandemia.”
O entendimento de que a Lei Aldir Blanc é justamente resultado dessas novas formas de institucionalização de base popular e comunitária é o que informa a contribuição de Sharine Machado Melo para o volume. Tendo destinado R$ 3 bilhões para a cultura e as artes, o maior investimento em uma política pública para a área no País, a lei foi resultado, na visão da pesquisadora, não só da inteligência política no uso do “orçamento de guerra”, mas também de uma articulação social intensa.
Sharine invoca uma hipótese do próprio Canclini para sua argumentação. “A descrença na participação política tradicional convive com novas formas de exercer a cidadania, entre elas, reivindicações de direitos para grupos minoritários, articulações em rede e movimentos sociais. A Lei Aldir Blanc é fruto direto dessas contradições”, escreve a autora.
Formulada em 2020, quando o lockdown inviabilizou grande parte do setor cultural do País, a lei previa renda mensal aos trabalhadores da cultura, subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias e a publicação de editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor. Com orçamento vindo de recursos não utilizados do Fundo Nacional de Cultura, seu modelo de execução foi descentralizado, com 50% dos recursos destinados para os Estados e o Distrito Federal e a outra metade para os municípios. Apesar de seus méritos, a lei também apresentou falhas, reconhece a pesquisadora, como falta de estrutura local, baixa qualificação de gestores, prazos curtos para o planejamento de ações e dificuldades de acesso às políticas públicas.
“A articulação pela Aldir Blanc opera justamente sobre as ruínas de uma ideia de institucionalização que, longe de se concretizar na cultura brasileira, parece ser um constante horizonte”, escreve Sharine, valendo-se do conceito de ruínas-sementes do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, para quem as ruínas reúnem tanto a nostalgia de um mundo anterior quanto a orientação para um futuro alternativo. “Aliada aos movimentos sociais, esta pode ser uma semente para novos projetos em políticas públicas.”
Segundo a autora, o jogo entre produção independente ou precarizada e institucionalização da cultura foi um elemento-chave da Lei Aldir Blanc. Uma relação que, para Sharine, tem tudo a ver com o Programa Cultura Viva, lançado em 2004 pelo Ministério da Cultura comandado por Gilberto Gil e que teve nos Pontos de Cultura seu expoente. Para um dos entrevistados da pesquisadora, não seria possível entender a Lei Aldir Blanc sem conhecer o Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Isso porque a articulação para a lei teria se dado muito a partir de artistas vinculados a movimentos comunitários, diversos deles formados a partir dos próprios Pontos de Cultura.
Isso é ainda mais notável porque a Lei Aldir Blanc surgiria em um cenário pouco favorável às políticas públicas culturais, conta Sharine. O ministério da Cultura havia sido extinto em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, e tornara-se uma secretaria especial, primeiro do ministério da Cidadania, depois da pasta do Turismo. “Foi em meio a esse cenário improvável que a Lei Aldir Blanc emergiu”, escreve.“Mais do que um modo de executar com eficiência os recursos do Fundo Nacional de Cultura ou de implementar o Sistema Nacional de Cultura, a articulação pela Lei Aldir Blanc não teve o mérito, mesmo que por um átimo, de abrir um possível para as políticas públicas brasileiras?”
No México, por sua vez, Canclini e Mariana Martínez Matadamas mapearam em sua pesquisa um setor cultural caracterizado por baixa inovação institucional diante das mudanças tecnológicas e socioculturais, apertado por orçamentos insuficientes e poucas pesquisas avaliativas. No geral, os pesquisadores afirmam que as instituições culturais mexicanas continuam parecidas às de 40 anos atrás.
“As instituições mostram um rosto pouco próximo da sociedade, pouco acessível a ela e pouco receptivo às reivindicações dos movimentos socioculturais”, apontam. “E as negociações que os movimentos travam com as instituições são motivadas acima de tudo por questões econômicas. Essa tendência, além de restringir os movimentos ao plano conjuntural, reforça a crença de que a instituição deve dar, oferecer ferramentas conforme as necessidades de quem a interpela, mas deixa de lado a ideia de que, sobre esses vínculos, é possível criar novas institucionalidades e transformar as já existentes.”
A chegada à Presidência do México de Andrés Manuel López Obrador, em 2018, poderia indicar mudanças positivas com seu Programa Setorial de Cultura, mas não foi o que ocorreu, segundo os autores. “Um fato com alto potencial de institucionalização da cultura como foi, no México, a criação de uma Secretaria – equivalente a um ministério em outros países – da Cultura, em 2015, não teve o impacto que poderia ter alcançado”, explicam, atribuindo tal estado de coisas às decisões governamentais da presidência de López Obrador, sem deixar de lembrar os problemas causados pela pandemia.
“A promoção do Conaculta (Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, então subordinado à Secretaria de Educação Pública) a secretaria não foi acompanhada de um empoderamento econômico, e sim de uma redução orçamentária. Depois da criação do órgão, passaram-se onze meses até a formulação do seu regulamento, o que debilitou a articulação das instituições no setor cultural”, escrevem Canclini e Mariana.
É nesse cenário de instituições pouco afins aos movimentos socioculturais que os autores se detêm sobre o fenômeno mexicano dos antimonumentos, enxergando uma importante iniciativa comunitária, capaz de desafiar as noções tradicionais de instituição. Estruturas que desde 2015 povoam os espaços públicos mexicanos, ostentando cores chamativas e dizeres como Ni una +, Porque vivos los llevaron, vivos los queremos e Nuestra lucha no claudicará jamás, os antimonumentos são símbolos contemporâneos de denúncia das violências de Estado e reividincações do espaço público. Como o próprio nome sugere, surgem em contraponto aos monumentos oficiais.
“Os monumentos contêm um discurso oficial, que evoca fatos ou personagens importantes para a história de uma nação. Os antimonumentos, ao contrário, surgem no México como resposta a situações de impunidade e injustiça; são elementos que lutam contra o esquecimento e procuram interpelar os transeuntes, materializando a injustiça, a impunidade e a invisibilização da violência vivida no país”, escrevem Canclini e Mariana.
Conforme explicam os pesquisadores, enquanto os monumentos têm sua existência questionada e a história que contam é posta em dúvida, os antimonumentos revelam uma sociedade civil organizada e ativa, que não pode ser invisibilizada. Concebidos para reforçar uma identidade nacional ligada ao ideal do mexicano, os monumentos são alvo de críticas por serem seletivos na escolha dos personagens retratados e por buscar criar uma identidade única, deixando a diversidade de lado.
“Os valores e ideais que eles simbolizam não são atemporais”, registram os autores. “Assim como a sociedade se transformou, há uma exigência de que os monumentos mudem, não apenas fisicamente, mas repensando o próprio conceito de monumento. Apesar de serem calcados à identidade nacional, as pessoas têm consciência de que esses elementos legitimam o discurso oficial, já que são implantados pelo governo; o monumento se torna, portanto, um espaço ocupável, que permite questionar a oficialidade que esse espaço representa e deflagrar reflexões sobre ela.”
Seja nas ruas do México, seja no agreste baiano, seja nas salas de conferência virtual, o que parece surgir a partir das pesquisas reunidas no livro é uma transformação no entendimento de instituição cultural. Não só física, mas também virtual; menos centralizada e mais capilarizada para as periferias; menos estatal e corporativa e mais comunitária e participativa. Não que esse seja um cenário consolidado. Longe disso. A própria citação do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) que abre a introdução da obra já adianta as incertezas: “Vivemos tempos (…) em que os velhos deuses já se foram e os novos ainda não chegaram”.
Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México, de Néstor García Canclini, Juan Ignacio Brizuela, Sharine Machado Melo e Mariana Martínez Matadamas, Editora da USP (Edusp), 256 páginas, R$ 56,00.
Fonte: Jornal da USP