Os belos bordados poéticos da Armênia

cultura

Coletânea bilíngue editada pela FFLCH traz, pela primeira vez em português, a obra de 15 autores do país do Cáucaso

Por Marcello Rollemberg Editorias: Cultura – URL Curta: jornal.usp.br/?p=371626

Responda rápido: o que você sabe sobre a Armênia, aquele país incrustado em uma região montanhosa da Eurásia, com mais de 99% de seu território na Ásia mas com os olhos voltados para a Europa? Talvez não muito, mas com tonalidades dramáticas: que seu povo, entre 1915 e 1923, foi vítima, segundo historiadores, do primeiro genocídio do século 20, praticado pelo então Império Otomano, que deixou mais de 1,5 milhão de mortos e obrigando outros milhões a uma diáspora mundo afora. Até hoje a Turquia – sua vizinha a oeste e  herdeira dos otomanos – nega o massacre. Que o país esteve envolvido recentemente e por seis semanas em uma guerra com o Azerbaijão – seu vizinho a leste – na disputa pela região de Nagorno Karabakh, nas montanhas do Cáucaso. Derrotados desta vez- tinham ganho a pendenga nos anos 1990 -, os armênios foram obrigados a abandonar – e até a queimar – suas casas e deixar uma história de vida para trás. Além disso, o que mais? O sufixo patronímico “ian” (ou “yan”) de seus sobrenomes, talvez, como o da atriz Aracy Balabanian, do empresário Yervan Kissajikian e do reitor da USP Vahan Agopyan. 

Mas a história e a cultura da Armênia vão muito além, por mais que o país ocupe um lugar secundário nas atenções geopolíticas. Afinal, estamos falando de um povo que na Antiguidade clássica já era citado por babilônios, persas e gregos. Isso, sem se falar na questão bíblica: segundo diversas lendas, era na região da Armênia que estava o Jardim do Éden e que foi justamente no Monte Ararat – historicamente armênio, mas hoje pertencente à Turquia – que Noé estacionou sua arca depois do dilúvio. Não é à toa que, em 301 da nossa era, a Armênia se tornou o primeiro país cristão do mundo. É muita história. E muita cultura. E uma parte dessa produção cultural mais recente está agora à disposição de leitores com paladar mais apurado – e curioso – com a publicação da antologia Poesia Armênia Moderna e Contemporânea, editada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH. A coletânea é organizada pela professora Deize Crespin Pereira, do curso de Português-Armênio do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH e está disponível, em versão gratuita, no portal de livros abertos da USP.

São 330 páginas que reúnem 55 poemas de 15 poetas dos séculos 19 e 20, fruto do trabalho de oito tradutores. E uma informação interessante: o volume é bilíngue e preserva a grafia armênia original dos textos, o que é incomum inclusive na atual república da Armênia (pós-acordo ortográfico). Há ainda um glossário, essencial, feito por Lucca Tavano Baccal, para uma melhor compreensão do que é dito e referido.

Bordados poéticos

O poeta Yeghiche Tcharents – Foto: Wikipedia

“As  traduções  são apresentadas com os originais em armênio, de modo que o leitor consiga apreciar os textos simultaneamente, observar a fidelidade ao pensamento e à emoção do original, ‘senti-lo’,  enxergar sua métrica, a  rima, a  forma e a configuração. Para os não conhecedores do armênio, um ensejo para contemplar a estética de um alfabeto criado em 401 por Mesrop Mashtots”, escreve a professora Lusine Yeghiazaryan no prefácio. Certo, ler os poemas no alfabeto armênio talvez seja ir longe demais para os não-iniciados – até porque ele parece absolutamente impenetrável para olhos ocidentais, um intrincado e fino bordado vernacular. Mas a edição é bilíngue, relembre-se, e os tradutores se esforçaram para manter a beleza poética, que muitas vezes tem na história milenar armênia sua grande fonte de inspiração, como em Da Terra de Nairi, de Yeghiche Tcharents (nome artístico de Yeghiche Abgari Soghomonian, 1897-1937):

Eu — sou eu de novo —

a veia de ouro desta raça milenar,

o braço valoroso, de teu vigoroso povo

o elo final,

e dou meu coração

ao canto de ferro dos dias vindouros,

e uno minha vida ao Futuro ardente —

e levo no meu grande, gigante coração —

um novo e poderoso mundo forjado em ferro

O poeta Mikayel Nalbandian – Foto: Wikipedia

“A arte poética armênia passou por um desenvolvimento difícil e expoente. Ela se lapidou no percurso de milhares de anos, sofreu transformações significativas, mas preservou a sua essência, espelhando os sentimentos e pensamentos do povo, sendo a quintessência  e  a  personificação  de  uma  filosofia  nacional  complexa,  que  carrega  as idiossincrasias do seu destino. A poesia armênia, mais que qualquer outra expressão de arte, representa a luta do povo por sua independência, um marco notável de sua história”, afirma Lusine.

A arte poética armênia do período açambarcado pela coletânea da FFLCH, em muito do que suas estrofes têm a dizer, lança olhares para a independência do país, assim como flerta diretamente com o lirismo, as ideias mais radicais e ideais progressistas. A poesia de valorização da terra pátria que canta Tcharents, entre outros poetas traduzidos nesta edição, é na verdade o eco à poesia de Mikayel  Nalbandian (1829-1866), um  dos fundadores  do  realismo  armênio  e  uma  figura  de  enorme  influência  na  ideologia nacional do país – tanto que seus versos compuseram o Hino Nacional da Armênia, criado em 1918. Seu poema Liberdade é considerado o clássico dos clássicos da poesia armênia: 

— “Liberdade!” — gritei.

— “Pois que troveje sobre minha cabeça

raio, relâmpago, ferro e fogo.

Que o inimigo arme sua emboscada.”

Até a morte, até a forca,

até o vil cadafalso,

bradarei, repetirei,

sem cessar, “liberdade!”     

O poeta Petros Durian – Foto: Wikipedia

Mas nem só de amor à terra natal se faz a poética armênia. Amores, digamos, mais “terrenos” e carnais também estão presentes na antologia, mostrando que o lirismo vai muito além de loas à pátria. É o que mostra, por exemplo, Petros Durian (1851-1872), “que vivia na realidade da Armênia Ocidental, onde a política interna com relação aos armênios ficava cada vez mais alarmante”, como informa Lusine Yeghiazaryan no prefácio, referindo-se àquela porção de terra armênia sob o domínio dos otomanos. Mas, mesmo sendo partidário da luta pela independência, Durian não deixava de mirar também no amor – e justamente por isso se apresentava como o primeiro grande “amante” da poesia armênia, como lembra Lusine. Um exemplo é esse trecho de seu poema Amei-te:

Com uma única centelha de teus olhos,

com uma única sílaba, fizeste-me escravo,

acorrentaste-me, cruel,

com os raios de luz de tua alma sublime.

Outro exemplo da poesia lírica armênia é aquela criada por Vahan Terian (1885-1920), que ao morrer jovem e de tuberculose (não com 27 anos como é informado no livro, mas com 35) quase que emulou a complexidade, o drama e a vida turbulenta de poetas românticos como Shelley e Keats – mas com um forte viés nacionalista. Ele é considerado o mais influente poeta lírico de sua época, com versos como os de Ao Ararat:

Celeste e leve,

coberto por uma fina névoa azul,

tu, anjo de asa luminosa,

nunca és material.

Do mundo ensanguentado dos armênios

tu és o espírito puro.

Que sempre se aticem as chamas do fogo

em tua fronte altiva, Ararat!

Capa do livro Poesia Armênia Moderna e Contemporânea – Foto: Reprodução

A coletânea de poesia armênia editada pela FFLCH talvez não se torne uma campeã de acessos  e de dowloads de PDF do portal de livros da USP, mas deveria ter um lugar de honra garantido. Trazer à luz poetas de qualidade de uma cultura pouco falada e que a esmagadora maioria de leitores iluminados muito provavelmente sequer sabia da existência já é um mérito e tanto. E mostra que, em meio à turbulência que marca sua história, a Armênia vai muito além das montanhas do Cáucaso.

O livro Poesia Armênia Moderna e Contemporânea, organizado pela professora Deize Crespin Pereira e publicado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), está disponível gratuitamente no portal de livros abertos da USP.

Fonte: USP

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