Dissertação “O assombro encarnado” analisa três filmes brasileiros que exploram características do gênero para expressar questões históricas e sociais
Rosiane Lopes e Amanda Ferreira*
Quando se pensa em filmes de terror e no horror causado por eles, é comum que monstros grotescos e repulsivos venham à mente. Chucky, Freddy Krueger, Pennywise e Samara são alguns dos seres memoráveis do cinema internacional. Já o complexo Zé do Caixão pode ser o primeiro a ser citado quando se trata de cinematografia brasileira.
Mesmo que essas criaturas monstruosas sejam vistas como representantes do horror, o gênero não se resume a elas. É o que aponta a dissertação O Assombro Encarnado: Quando as Imagens do Horror Atravessam Filmes Brasileiros a Partir do Político. No trabalho, Felipe Borges direciona sua pesquisa para a expressão do gênero horror na cinematografia do Brasil a partir do distanciamento do que ele chama de “poética representativa”.
Borges é formado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Ele conta que sua pesquisa se iniciou na UFRB com sua participação no Cineclube Mário Gusmão, projeto de pesquisa e extensão da universidade.
No cineclube, o pesquisador pôde fazer uma curadoria própria, com a criação de uma mostra sobre horror. Depois disso, ele trouxe o trabalho da mostra como um projeto de pesquisa de mestrado para a USP, onde contou com a orientação do professor Mauro Wilton de Sousa, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR).
A dissertação foi apresentada em 2022 e aborda a construção do horror em filmes brasileiros contemporâneos por meio de estratégias que desafiam algumas características tradicionais do gênero. A principal delas é a figura do monstro, que no horror convencional é o vetor de sentimentos como medo e repugnância. Nos três curta-metragens estudados por Borges, esse tipo de emoção não é evocado por um personagem sobre-humano: o horror emerge de conflitos realistas que têm origem em problemas sociais e históricos.
O pesquisador toma como objetos de análise o documentário Menino Aranha (2008), de Mariana Lacerda, e as ficções Estado Itinerante(2016), de Ana Carolina Soares, e O Delírio É a Redenção dos Aflitos (2016), de Fellipe Fernandes.
A humanidade do horror
Felipe Borges aponta que o interesse de sua pesquisa é “olhar para o horror em seu comportamento material e como ele se integra às imagens dos filmes como uma contaminação”. “Dentro de todos os filmes há um processo de entendimento do que é a humanidade, no sentido de organizar o que é humano, o que é monstro. O monstro vem para definir o que é humano: por isso que o tema do horror é rodeado de monstros”, afirma. É através da luz, do enquadramento, da montagem, do som, das sensações provocadas pela fala dos personagens que o horror se instala como a ambiência, o clima no qual a história se desenrola.
Em Menino Aranha — documentário sobre Tiago, menino que escalava prédios de Recife e furtava objetos de residências —, imagens de prédios em diferentes ângulos são mostradas enquanto relatos são feitos, não sobre os edifícios, mas sobre a vida do jovem morto precocemente. O rosto de Tiago aparece apenas como última cena, em uma gravação de sua infância. A imagem de Tiago criança desconstrói a ideia de monstro construída pelo noticiário da época e que permeia o debate sobre menores infratores.
Já em Estado Itinerante — filme em que o espectador acompanha uma cobradora de ônibus, Vivi, em sua fuga de uma relação opressora e da violência doméstica — há o que Felipe denomina “território do medo”. Privado de plena autonomia, alvo de desumanização, “o corpo de Viviana é assombrado pelo próprio espaço-tempo. Por saber sua impossibilidade de agir diante do poder do território de seu agressor”, explica na dissertação.
No caso de O Delírio É a Redenção dos Aflitos — curta que trata de Raquel, moradora de um prédio que corre risco de desabamento —, o desespero da protagonista para garantir a segurança de sua família é tanto que os limites entre delírio e realidade começam a se borrar, conta o pesquisador. A fuga da realidade torna-se uma estratégia para superar, ainda que momentaneamente, as adversidades do cotidiano.
Esses filmes, mesmo que tenham um antagonista, já não tratam mais de monstros. Não há uma criatura com poderes sobrenaturais de quem fugir. “O monstro se torna uma figura a ser esfacelada ou esquecida. Não há mais necessidade da ameaça desse ser desviante, pois os filmes não precisam mais produzir um desvio para enfatizar o comportamento de uma humanidade.”
Assombro, medo e curiosidade
Para refletir sobre as características do gênero horror, o pesquisador conta que se baseou no filósofo Noël Carroll e as ideias trazidas por ele em A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração. Carroll coloca o horror como um gênero de contradições, em que o público busca pela emoção causada pelo gênero, ainda que rejeite esse tipo de emoção em seu cotidiano, ou seja, fora da ficção.
A partir dessa ideia, Felipe Borges afirma que o horror se caracteriza por um processo de afastar aproximando e aproximar afastando. Se, nos filmes tradicionais, a visão de um monstro apavora e fascina, nos curtas analisados a sensação de assombro evoca medo e curiosidade. Para o pesquisador, essa dubiedade permite que temas já explorados em gêneros como drama, faroeste e filme histórico ganhem novas significações a partir de sua expressão pelo horror: “Parece particularmente interessante pensar a memória (e a história) articulada com o aspecto paradoxal do horror: entre o ver e o não ver de seus elementos característicos”, afirma.
No trabalho, Borges veicula a ideia da pesquisadora Laura Cánepa de que o horror em produções nacionais passa por uma nova configuração, que se divide em duas vertentes: horror militante e horror social.
A primeira vertente conta com cineastas que se formaram a partir dos anos 2000, cujas produções foram influenciadas pelos fenômenos culturais vivenciados por eles nas décadas de 1980 e 1990. A sua militância se dá na defesa e valorização do horror e suas características tradicionais de gênero. Já a vertente do horror social está relacionada a realizadores cujas obras são marcadas pela pela mescla de gêneros cinematográficos, com destaque para o horror, e pela contextualização histórica e crítica social.
Independentemente da vertente, o pesquisador aponta que o horror não pode ser pensado sem um valor histórico. A partir dessa historicidade, o horror surge como uma memória que encarna questões históricas do Brasil. Nos filmes de análise, Borges explica que o assombro é encarnado na estrutura urbana, que de certa maneira aflige e causa incômodo aos indivíduos na ficção, deslocando referências do mito para a lenda urbana, do extraordinário para o cotidiano, do sobrenatural para o realista.
Ele relata que os filmes de horror, mesmo que não sejam históricos, vão remeter, por meio de seu enredo, personagens, ambientação e estética, a questões que perpassam a história e assombram o corpo social. Nesse sentido, o horror traz à tona o que não deve continuar a ser ocultado. “A defesa desse estudo é a de que o horror se manifesta no desejo pela luta quando faz ver o insuportável, quando a configuração de uma vida dominada não pode ser mais tolerada”, conclui Felipe Borges na dissertação.
*Do Laboratório Agência de Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP, editado por Marcello Rollemberg
Fonte: Jornal da USP