Frente Nacional analisa as ações do Grupo de Trabalho para formulação de ações para o cuidado de populações não nativas e alerta: é preciso que o ministério da Saúde inclua representantes da sociedade para participar de decisões – e garantir que não haja estigmatização
Por Alexandre Branco-Pereira, autor convidado
Nos últimos dois anos, foram realizados dois eventos de abrangência nacional destinados a garantir o acesso, pelas populações migrantes, ao direito à participação popular na elaboração de políticas públicas de saúde e ao controle social na execução dessas políticas, assegurado pelo artigo 198 da Constituição Federal, e pela Lei nº 8.142/90. A 1ª Plenária Nacional Saúde e Migração, realizada em 2021, foi o primeiro evento realizado no Brasil com o objetivo de ser um espaço de escuta e sistematização das demandas das populações migrantes e seus aliados para o SUS. Ela contou com a participação de 383 pessoas representando 94 organizações, tendo sido aprovadas 172 propostas, consolidadas posteriormente em 37 diretrizes.
A Plenária deu a ignição para dois processos subsequentes: a discussão sobre a elaboração de ações estratégicas de atenção à saúde das populações migrantes nos níveis estaduais, como no caso de Goiás – onde está sendo desenvolvido um Plano Estadual de Atenção à Saúde da População Migrante –, e municipais, como no caso de São Paulo – onde instituiu-se um Grupo de Trabalho para formular ações estratégicas de garantia de acesso ao SUS pelas populações migrantes; e o debate, ainda que inicialmente só a nível de gestão, sobre a formulação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Populações Migrantes, Refugiadas e Apátridas, liderada pelo Serviço de Apoio Institucional e Articulação Federativa (SEINSF) do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro.
Uma nova Plenária estava prevista para ocorrer em 2023, como forma de consolidar o avanço representado pelo primeiro evento, aprofundando as escutas realizadas e amadurecendo o corpo de propostas aprovadas por meio do aumento da participação das populações migrantes. Entretanto, durante a assembleia da FENAMI do início de fevereiro, decidiu-se que o evento seria organizado no formato de uma Conferência Livre de maneira a integrar o calendário da 17ª Conferência Nacional de Saúde. Essa modalidade de evento também garantiria que as propostas seriam enviadas e apreciadas pelos delegados da 17ª CNS, além de assegurar que poderíamos enviar uma delegação ao principal evento de participação popular na estruturação de políticas públicas do Brasil. Mais de 30 organizações nacionais e internacionais se somaram na Comissão Organizadora, coordenada pela FENAMI. Também foram constituídos 13 comitês estaduais responsáveis por organizar polos presenciais de acesso à Conferência.
Além disso, o regimento da nossa Conferência Livre especificava que apenas migrantes poderiam concorrer à eleição para delegados/as. Também previu-se que a inscrição para falas deveria se dar na proporção de 5 manifestações de migrantes para cada manifestação de brasileiros. Foi assim que no dia 20 de maio, 876 pessoas participaram da Conferência Livre, distribuídas em 19 cidades de 12 estados e do Distrito Federal. Neste dia, Garry Ulysse, do Haiti, Yelitza Lafont, Efrén Villalba e Alberto Navarro, da Venezuela, e Diego Cruz, do Equador, foram eleitos para compor a primeira delegação migrante a participar de uma Conferência Nacional de Saúde defendendo diretrizes e propostas para ações de equidade para as populações migrantes no SUS. Os cinco delegados estiveram em Brasília, entre os dias 2 e 5 de julho, com os custos de alimentação, transporte e hospedagem financiados pelo Conselho Nacional de Saúde, organizador do evento. A inédita Conferência Nacional Livre de Saúde das Populações Migrantes conquistou o posto de 11ª maior conferência livre do ciclo da 17ª CNS, entre 99 conferências livres realizadas.
As diretrizes e propostas enviadas pela nossa Conferência Livre foram analisadas e aprovadas pelos quase 6 mil participantes da 17ª CNS, que aprovaram também outras 240 diretrizes e 1.190 propostas. Esse conjunto de diretrizes e propostas, oriundas de um longo processo democrático realizado nos municípios, estados e conferências livres, deverá ser contemplado no próximo ciclo de planejamento da União, servindo de subsídio para a elaboração do Plano Nacional de Saúde e do Plano Plurianual de 2024-2027 – pela primeira vez, com 4 diretrizes e 20 propostas destinadas especificamente à construção de equidade no SUS para as populações migrantes.
O Grupo de Trabalho do Ministério da Saúde
As discussões sobre a instituição de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Populações Migrantes, Refugiadas e Apátridas iniciaram-se em 2022 por iniciativa do Serviço de Apoio Institucional e Articulação Federativa (SEINSF) do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro, como mencionado acima. Um Grupo de Trabalho foi constituído à época, integrado, no entanto, apenas por gestores. Em interlocução com o SEINSF, conseguimos garantir a participação da sociedade civil, organizando diversas reuniões destinadas a coletar contribuições para o texto da minuta da política. À época, 7 diretrizes oriundas da Plenária foram integradas ao texto, que, no entanto, foi engavetado em razão do período eleitoral próximo.
Após a posse do presidente Lula, a discussão foi retomada graças à insistência da sociedade civil. No entanto, a participação foi incipiente muito em virtude das dificuldades no estabelecimento de diálogo com o Ministério da Saúde, em especial quando consideramos os movimentos organizados de migrantes. A FENAMI enviou diversos ofícios sobre o tema ao Ministério da Saúde, solicitando, entre outras coisas, a instituição de um GT, coordenado pela Secretaria Executiva do Ministério – sob a qual as outras secretarias se estruturam –, para elaborar uma proposta de Política Nacional de Saúde para as Populações Migrantes que garantisse a participação popular. Pontuamos também que estávamos em meio a um processo inédito de mobilização das populações migrantes, além de profissionais e gestores de saúde, acadêmicos e representantes de organizações da sociedade civil nacionais e internacionais, para consultá-los sobre suas propostas para as populações migrantes no SUS. No fim do mês de junho, o Ministério da Saúde publicou a Portaria GM/MS nº 763/23, que instituiu o Grupo de Trabalho com a responsabilidade de, entre outras coisas, formular a proposta da Política. Esses avanços não são apenas fruto da dádiva virtuosa dos governantes e gestores – sejam de perfil técnico ou político. Eles acontecem na esteira de um esforço intenso e igualmente inédito de organização e mobilização destinada a efetivar o acesso das populações migrantes a mecanismos de participação popular e controle social.
Apesar do inegável avanço representado pela instituição do GT, há pontos preocupantes que requerem atenção. Primeiramente, a Portaria não traz previsão de participação da sociedade civil enquanto membros titulares do grupo: estão excluídos não apenas os movimentos organizados de migrantes, por exemplo, mas também o Conselho Nacional de Saúde, cuja participação só pode se dar enquanto convidado pela coordenação do GT, sem critérios objetivos sobre como serão realizados os convites, ou sobre qual será o modelo de participação. Apenas as secretarias do próprio Ministério estão contempladas enquanto membros natos titulares do GT, o que não apenas vai na contramão da crescente mobilização que de fato criou as condições para a instituição do grupo, mas também é inconstitucional, como argumentado acima.
Além disso, a atribuição da coordenação do grupo à Secretaria de Vigilância e Saúde Ambiental (SVSA) é temerária não porque enseja questionamentos de ordem moral sobre este ou aquele gestor ou servidor, tampouco sobre a qualificação dos gestores destacados para coordenar os trabalhos, mas porque representa um direcionamento político preocupante para os trabalhos do GT. Em primeiro lugar, há um grande número de investigações acadêmicas que apontam os efeitos deletérios da associação de determinados grupos sociais a patologias específicas, derivado de recorrente desconsideração de fatores sociais, culturais, e de economia política na estruturação de sistemas de vigilância. Também sublinham o peso político da decisão de se valorizar determinados dados e abordagens focadas majoritariamente na contenção de doenças e no preparo para responder a ameaças epidemiológicas e a contextos de emergência, com pouco ou nenhum cuidado em empreender diálogo e em garantir os direitos das populações afetadas, especialmente aquelas mais vulneráveis e marginalizadas.
Um dos casos mais famosos é o dos “5 h’s” – hemofílicos, homossexuais, hookers (prostitutas), heroinômanos (viciados em heroína) e haitianos –, listados enquanto grupos de risco para contração do HIV durante a década de 1980 – e, portanto, estigmatizados pela ameaça que supostamente representavam à saúde pública. Essa abordagem representou não um aumento da eficiência na contenção do vírus, mas a tentativa de criação de bolsões de segurança de determinados grupos sociais privilegiados em detrimento de determinados grupos vulneráveis por meio de sua exclusão e estigmatização, afastando-os do acesso ao cuidado – entre outros motivos, porque o sistema de carência notória do imunizante e de intenso processo de desfinanciamento do SUS, ou entre o vírus da covid-19 e suas variantes a grupos nacionais ou étnicos, aprofundando casos de xenofobia e racismo mundo afora – inclusive contra brasileiros, associados à variante Gamma, identificada em Manaus, e conhecida à época como “variante brasileira”. Esses todos são exemplos fartamente documentados e registrados pela literatura acadêmica da saúde pública e das ciências sociais, e devem, portanto, ser considerados na estruturação de políticas públicas ciosas de boas evidências científicas.
A perspectiva da vigilância em saúde é fulcral para a estruturação de ações de equidade – como a campanha “Nacionalidade no SUS”, que lideramos, demonstrou. É responsabilidade da vigilância, por exemplo, coletar dados de nacionalidade e étnico-raciais que posteriormente irão fundamentar as ações do SUS para mitigar as desigualdades em saúde observadas, apontando em quais territórios estão concentradas as populações migrantes, quais são as patologias e os agravos mais comumente observados, e como responder a eles de maneira eficaz. Essa perspectiva deve, no entanto, responder à necessidade do provimento de atenção em saúde, seja ela básica ou especializada, tendo como um de seus paradigmas evitar considerar as populações migrantes como potenciais ameaças epidemiológicas ou como vetores de doenças. Em outras palavras, a estruturação de sistemas de vigilância deve responder à necessidade de prover uma melhor atenção à saúde das pessoas, e não o contrário, indicando onde é preciso contratar Agentes Comunitários de Saúde migrantes, onde devemos inserir programas de mediadores culturais, como é possível mobilizar essas comunidades para participar dos conselhos gestores das unidades básicas de saúde, entre outras medidas.
Além disso, políticas de saúde pública baseadas em evidências devem considerar as perspectivas epidemiológicas e sanitárias, por óbvio, mas é preciso compreender o papel que as evidências fornecidas pelas ciências humanas e sociais em saúde têm na estruturação de políticas públicas eficazes, éticas e comprometidas com a garantia de direitos das populações que atende. Ignorar o largo corpo de evidências que demonstram os perigos de conceder à vigilância epidemiológica a condução de uma política que deve ser garantidora de direitos é uma espécie de negacionismo capaz de neutralizar os efeitos benéficos ensejados pela formação do GT e pela sinalização de estruturação da Política.
Por fim, é necessário reforçar que a participação popular não é um adorno acessório à boa consecução das políticas públicas de saúde, e a qualidade de determinada política é diretamente proporcional ao nível de participação observado em seu processo de estruturação. É preciso radicalizar a democracia, como foi dito durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde. Assim, não se pode dispensar os relatos em primeira pessoa sobre as ações a serem priorizadas na Política, ou ignorar o saber acumulado e amadurecido ao longo de anos de consulta e sistematização das demandas das populações migrantes, profissionais e gestores de saúde, acadêmicos, ativistas e organizações de defesa dos direitos humanos. A sociedade civil, em especial os migrantes, devem estar contemplados na composição do GT, assim como o Conselho Nacional de Saúde. O processo deve ser sequenciado pela elaboração de uma consulta pública ampla, com tradução da minuta da Política para o espanhol, inglês, francês, crioulo haitiano, Warao e outras línguas, e o recebimento de contribuições à Política nessas mesmas línguas. O Brasil precisa de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Populações Migrantes, Refugiados e Apátridas, mas só interessa uma política que considere essas populações enquanto sujeitos de direito, a começar pelo reconhecimento do direito de participação na elaboração das ações que as afetarão.
Fonte: Outra Saúde