Pesquisadores, movimentos sociais, governo e empresas começam a formular, em Recife, plano para Complexo Econômico-Industrial da Saúde na região. Em seminário na UFPE, caminhos para retomar a indústria com inovação pensada para o SUS
Por Fabiano Tonaco Borges, especial para o Outra Saúde
Os gargalos de acesso aos cuidados em saúde na atenção primária, especializada, hospitalar e de reabilitação no Sistema Único de Saúde (SUS) são amplamente conhecidos. A puxada de tapete neoliberal no dia seguinte da promulgação da constituição de 1988 – retratados em O SUS e Estado de Bem-Estar Social: Perspectivas Pós-Pandemia (Hucitec) pelo professor Nelson Rodrigues dos Santos – asfixiou financeira e politicamente o recém-nascido SUS. A hegemonia neoliberal tem-nos empurrado goela abaixo um SUS pobre para pobres. Um dos caminhos para superar essa situação pode ser pela tecnologia produzida no Brasil – mais especificamente em solo nordestino.
Um evento, que aconteceu em 28 de julho em Recife, mostrou que o país tem enorme potencial para essa mudança. Foi II Seminário do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Positiva do Complexo Industrial da Saúde 4.0 (INCT TEC CIS 4.0), do CNPq, sediado na Universidade Federal de Pernambuco. Mas antes é preciso superar os anos de pasmaceira. A pandemia de covid-19 demostrou a “dramática dependência brasileira ao estrangeiro no Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), cuja consequência tem sido à desestruturação do atendimento às necessidades de sua população”, alertou o professor José Lamartine Soares Sobrinho, coordenador do INCT, ao abrir o evento.
Essa dependência mostrou-se um tema de segurança nacional na pandemia, porque faltaram ao Brasil os Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) para a produção de vacinas, lembrou a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação Luciana Santos em sua saudação de abertura do seminário. Ela defendeu, ainda, que o “Brasil tem que se tornar soberano e autônomo na produção de remédios, equipamentos e insumos em saúde”.
O objetivo do II Seminário do INCT TEC CIS 4.0 era “ouvir a sociedade para atender suas demandas reais, e não fazer pesquisas que fiquem dentro da universidade. Para isso a gente precisa ouvir quem está fazendo o sistema público de saúde”, defendeu a professora Monica Felts Soares, coordenadora do seminário. Ela ainda acrescentou que O INCT quer “entregar a inovação não de acordo com as linhas de pesquisa, mas de acordo com as demandas da sociedade. Então, o que é importante são as demandas reais e atuais que a sociedade precisa que a gente trabalhe para ela”.
O INCT TEC CIS 4.0 tem atualmente 92 pesquisadores de todos os locais do Brasil – mas prioritariamente do nordeste – que buscam impactar tecnologias que vão ser desenvolvidas e transferidas para o CEIS. Segundo a professora Monica, “há dois tipos de transferência: a primeira para as empresas que já existem, sejam elas privadas ou públicas; a segunda é a pela formação de startups e de spin-offs que saem das Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) e vão para o mercado. Porque a gente não vai só transferir inovação e tecnologia para as indústrias que já existem, mas a gente deseja aumentar o número de startups para uma nova industrialização do CEIS, sejam startups de softwares, dispositivos, equipamentos, medicamentos e bioinsumos”.
Ela acrescenta: “O INCT TEC CIS 4.0 tem foco no Nordeste, mas inclui outros estados da federação. Nós aceitamos pesquisadores, empresas e demandas de todos os estados brasileiros, mas temos como missão um recorte nordestino de desenvolvimento regional do CEIS para que tenhamos também igualdade de desenvolvimento regional no país”.
A nova política industrial que está sendo construída pelo governo Lula-Alckmin no Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) traz como segundo eixo de suas diretrizes o desenvolvimento do complexo econômico industrial da saúde resiliente voltado à redução das vulnerabilidades do SUS para ampliar o acesso à saúde no Brasil. Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo de Saúde do ministério da Saúde, vê a saúde como um pilar na nova industrialização do país. Ele discursou na abertura do seminário, representando a ministra da saúde Nísia Trindade, e ressaltou que o CEIS é transversal aos demais setores como o agroindustrial (segurança alimentar e nutricional), infraestrutura (saneamento, transporte e moradia), transformação digital (emprego e renda), bioeconomia (recuperação e preservação ambiental) e soberania nacional (insumos e equipamentos de saúde estratégicos à nação).
O SUS é o maior encomendador de insumos, medicamentos e equipamentos em saúde no Brasil, e ele pode ser um dínamo para a neoindustrialização. Atualmente, mesmo com a fragilidade do setor, o complexo econômico industrial da saúde brasileiro representa 10% do Produto Interno Bruto e garante a geração de nove milhões de empregos diretos e mais de 25 milhões indiretos. Os vetores de crescimento na quarta revolução industrial de interesse do SUS são as novas tecnologias da informação e bieconomia baseada na biodiversidade brasileira.
As novas tecnologias da informação na saúde estarão na vanguarda da expansão do capital no curto e médio prazo. Ela inclui dispositivos de monitoramento remoto como relógios inteligentes (smartwaches), internet das coisas médicas (Internet of Medical Things – IOMT), o desenvolvimento de exoesqueletos com o uso de Inteligência Artificial (IA), cirurgias com braços mecânicos guiadas por IA, uso de realidade aumentada, impressões 3D para reabilitação (e futuramente a impressão de órgãos), uso de assistentes virtuais para profissionais de saúde e pacientes, sistemas de suporte à vida e predição de epidemias e desfechos clínicos. Esse setor deve crescer cerca de 18% anualmente até 2030, saltando de US$ 211 bilhões (em 2022) para algo em torno de US$ 880 bilhões (em 2030).
Oportunidades infinitas vêm da nossa biodiversidade com a inovação em bioeconomia, sustentabilidade, produção de fitoterápicos, cosméticos, alimentos funcionais e medicamentos personalizados. Por exemplo, o projeto Molecular Powerhouse realizado há mais de cinco anos em Campinas pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) em parceria com a Phytobios procura moléculas completamente inéditas na nossa biodiversidade por meio de um dos aceleradores de partículas mais modernos do mundo. De acordo com a Dra. Cristina Dislich Ropke, Diretora de Inovação da Centroflora, “foi construída uma biblioteca de novas moléculas em quatro biomas: Caatinga, Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica. Estudos do CNPEM mostram a diversidade biológica da biblioteca no espaço químico de interesse farmacológico. Mais de 35% da biblioteca é completamente inédita, e uma das estratégias é procurar compostos que interagem com centros alostéricos de proteínas de doenças que não tem cura. Moléculas, soluções terapêuticas para doenças que não tem cura, elas têm sido licenciadas em negociações que passam da casa de US$ 400, US$ 500 milhões. Vocês imaginam quanto a gente está destruindo a nossa biodiversidade para, sei lá, transformar em pasto? Nada contra o Agro sustentável bem estabelecido, mas a gente tem uma ideia errada de que é esse é um negócio que traz o desenvolvimento e a diferença, quando a gente tem diamantes escondidos não só na biodiversidade vegetal, eu aqui eu estou só falando de planta, mas tem bactéria, tem fungo tem animais, tem uma série de coisas a serem descobertas”.
A medicina de precisão com IA já está mudando a forma do tratamento de doenças como o câncer. Com o auxílio da IA, faz-se compilação de todos os dados como o diagnóstico, a expressão imuno-histoquímica, mais as alterações gênicas, para definir qual o melhor remédio para o paciente, que seria a terapia-alvo. Essas tecnologias precisam transbordar para doenças negligenciadas como a Hanseníase.
O movimento social também esteve presente no II seminário do INCT TEC CIS 4.0. Poliane Medeiros, representante do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), fez uma fala contundente. Em seu discurso, ela reportou o drama das pessoas atingidas pela hanseníase, as quais “precisaram interromper o tratamento pela falta da Poliquimioterapia (PQT) que recebemos de doação de outros países”. Outro gargalo está no acesso aos exames. Segundo Poliane, um exame de eletromiografia pode levar de dois a cinco anos de fila no SUS. Esse exame é essencial para diagnosticar a forma neural da doença.
Poliane afirma, com razão, que “é inadmissível que em 2023 as pessoas ainda precisam amputar membros por sequelas de hanseníase!” Para ela, nós devemos fortalecer a atenção primária que é a porta de entrada de todos os pacientes no SUS.
Ela enfatizou a nossa dependência externa em relação a PQT doada ao Brasil. Para Poliane, “não existe saúde sem tecnologia”. Em sua fala, ela citou Alice Cruz – a relatora especial da ONU para a eliminação da discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase – que recomendou ao governo brasileiro começar a produzir a PQT, porque o país tinha condições técnicas para tal”. Poliane diz ter orgulho “em saber que esse medicamento está sendo desenvolvido por pesquisadores do INCT TEC CIS 4.0 na UFPE em parceria com Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco – LAFEPE e o mistério da saúde”.
Para Carlos Gadelha, “o Nordeste salvou a democracia no Brasil, o Nordeste salvou um Projeto Nacional de Desenvolvimento” com a eleição do presidente Lula em 2022. Segundo ele, “o primeiro INCT do complexo econômico industrial da saúde foi criado a partir de Pernambuco, a partir do Nordeste, com o grupo de professores da UFPE. Mas não é uma visão somente localista. É Política Nacional de Desenvolvimento Regional. O INCT TEC CIS 4.0 pensa o nacional, pensa o global. Quanto mais capacidade científica e tecnológica, mais nós seremos regionais, nacionais e globais, mas ao mesmo tempo é dizer: o Nordeste tem um grande valor, o Nordeste é uma riqueza. O Nordeste é um espaço novo para o desenvolvimento do Brasil”. O INCT TEC CIS irá elaborar uma carta a partir de seu II Seminário com as diretrizes para um projeto de desenvolvimento nacional com base regional do CEIS.
A ciência brasileira está preparada para trabalhar o desenvolvimento e a inovação do país. Mas ela precisa de dinheiro. O ex-senador Inácio Arruda, atual secretário de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) disse na mesa de abertura do seminário que “a ciência brasileira precisa de um plano Safra com seus R$ 300 bilhões anuais”.
Mas nós podemos começar em 2024 com um plano Safrinha de R$ 80 bilhões, o que já seria mais de oito vezes o valor destinado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC) em 2022. Que essas sementes do Nordeste tornem-se uma colheita de cidadania plena, quanto antes.
Fonte: Outra Saúde